Pesquisar este blog

outubro 27, 2024

Órgãos contaminados: o descaso com o ser humano.

Como transplantado (recebi um rim através do sistema nacional de transplantes), soube da notícia de que pacientes da fila do transplante receberam órgãos contaminados com o vírus do HIV (AIDS) com muita dor e, sobretudo, indignação. Não dá para sequer imaginar que um laboratório responsável por fazer testes nos órgãos doados simplesmente, visando lucro, não os tenha feito e os pacientes órgãos infectados.

Apesar de tudo o que vemos acontecer a cada instante à nossa volta, e conhecedor da capacidade que o ser humano tem para cometer atos contra seus próprios irmãos, sempre mantenho a esperança de que reste alguma dignidade, algum tipo de piedade que nos impeça de descer tão baixo, de sermos tão mesquinhos a ponto de, em nome do dinheiro fácil, desprezar o outro, o seu próximo, a quem devemos amar como se fossem nós mesmos.

O que passa pela cabeça de alguém quando sabe que está prejudicando um semelhante que já está fundo do poço, que está naufragado e, com a mão estendida, espera por algo que o resgate, o que traga de volta a terra firme? Desprezo, indiferença? Não dá para mensurar. Mas dá para imaginar o que sente uma pessoa que espera por um órgão, essa tábua de salvação, essa esperança de voltar a ter uma vida normal, embora ainda cheia de cuidados, pois já estive exatamente neste lugar.

Não consigo mensurar a decepção de cada um dos transplantados ao descobrir que sua esperança de voltar a viver sem tantas limitações foi negligenciada por um grupo de pessoas que, provavelmente, nunca passaram pelas privações que passa um paciente com um órgão, seja ele qual for, que não funciona como deveria ou não simplesmente não funciona. É certo que se soubessem teriam mais cuidados, não arriscariam a vida de ninguém para ganhar um valor que não será capaz de apagar o rastro de seu ato indigno.

Não pretendo julgar ninguém, mas não deixo de me colocar no lugar daqueles que ao buscarem a solução para um problema acabaram encontrando outro. Podemos dizer que o HIV não mata como no início, mas isso não resolve. O corpo precisa absorver o órgão transplantado e para isso não poderia estar sobre ameaça de um vírus,  simplesmente isso.

O que me resta é desejar que Deus ampare esses colegas transplantados (infelizmente, já houve óbito) e que encontrem força para manter o (s) tratamento (s) sem perder a fé e a esperança de que sempre podemos vencer os obstáculos que se apresentam.

Bom domingo e excelente semana.

Esperança, fé, amor e GRATIDÃO.

outubro 24, 2024

As pessoas não precisam de cabresto.

 Quando muitos estão prestes a voltar às urnas, nunca é demais lembra que, na visão dos políticos atuais, sejam de direita, de centro ou de esquerda, as pessoas não conseguem dirigir suas vidas sozinhas e, por isso, precisam ser conduzidas pela mão. Isso quando não julgam que precisam mesmo é de cabresto, aquela peça usada para animais de tração, que impedem que olhem para os lados enquanto trabalham. 

Infelizmente, cada vez mais, os políticos que têm esse tipo de visão tomam o poder porque as pessoas (eleitores) intimidados ou simplesmente com preguiça de pensar e agir se deixam levar e enganar. Nunca podemos esquecer que somos donos e senhores de nossas próprias vidas, portanto, responsáveis por nossas decisões, independente de qualquer coisa.

Nosso voto não revela tão somente a nossa escolha por esse ou aquele candidato, revela o nosso pensamento, a nossa forma de encarar o mundo e, sobretudo, como desejamos que esse mundo seja conduzido. Daí, a importância de usarmos, nesses momentos, o poder do voto como meio de tentar fazer com que a nossa vida e a vida daqueles que nunca rodeiam seja melhor.

Não tenho aqui a pretensão de ser cabo eleitoral de ninguém, o período eleitoral, felizmente, já passou. Quero apenas salientar que sempre que queremos que as coisas melhores temos que ser os primeiros agentes dessa melhora. Não podemos eternamente esperar que o outro o faça por nós o que temos o dever de fazer: escolher bem.

Bom dia!

Esperança, fé, amor e GRATIDÃO.



outubro 20, 2024

A mão invisível - Capítulo 4

Enredado por suas mentiras, Dimas acaba provando do próprio veneno.

 

Capítulo 4

 

Dimas da Silva pegava a condução no pé do morro, juntamente com a ‘gentalha desprezível’ – como ele fazia questão de verbalizar –, porém, quem descia em Copacabana era Dimas Capanema. Como tal, ele caminhava pelo calçadão, passava pelo Arpoador e chegava ao Leblon. Naquele dia, a turma, ou que restava dela, estava reunida na areia: Larissa, estendida ao sol, estava acompanhada de um gringo, de dois metros de altura; Pedrão, como de costume, tirava um cochilo; Demétrio e Lucas, cada vez mais íntimos, trocavam figurinhas com Suzana, que estava ali para lembrar os amigos que o casamento se realizaria nos próximos dias. Lá pelas tantas, Jane, num raro momento de folga – o trabalho de tatuadora tomava-lhe quase todo o tempo – apareceu com um ‘amigo’ que, muito provavelmente, não via problema em morar no morro do Vidigal; PH não era mais visto na praia, nem pelas redondezas, sinal claro de que se conformara com o fim do relacionamento com Elisa e, de quebra, aceitara a nova condição social.

- Após a cerimônia, na igreja de Nossa Senhora do Bonsucesso, a recepção será no Iate Clube. Agora preciso ir, meus amores. Os preparativos do casamento estão me deixando louca. – disse Suzana, ao se despedir da turma.

- Encontrei Elisa um dia desses. – disse Demétrio, após a saída de Suzana – Como eu desconfiava, ela foi pedir colo em Ibiza. O fim do noivado mexeu muito com minha amiga.

Dimas fingiu desinteresse, mas ouviu com atenção o colega dar os detalhes do reencontro. A satisfação de saber que Elisa estava de volta ao Rio, entretanto, se contrastou com a desagradável surpresa de encontrar, mais uma vez, Garrincha, escarrapachado no sofá de casa.

- O que quer aqui? Como entrou?

- Boa noite pra tu também. Dona Badia não te deu educação, não? Vim saber como foi o dia de trabalho. Fala tu. Vendeu tudo? Podemos fazer o acerto?

- Não teve dia de trabalho nenhum.

- Tu não tá colaborando, mano. Papo reto. Assim, vou ter de rever o nosso acordo. A partir de hoje, a cozinheira passa a morar de vez na sede do movimento. Tu vai ficar sem a mamãezinha, malandro. Só bota os olhos nela quando resolver fazer o que tem de ser feito. Isso, por hora. Porque o bagulho pode ficar mais doido ainda.

Dona Santana estava na porta de casa, na companhia dos três filhos, quando, algum tempo depois, Garrincha deixou o barraco.

- Boa noite, dona Santana! – o traficante disse ao avistar a baiana – Como tem passado vossa ilustre pessoa?

A vizinha de Abadia deu de ombros. Embora contrariado, Garrincha seguiu seu caminho. Dentro do barraco, Dimas ainda se refazia do golpe. Num repente, como se tomasse uma decisão, há muito tempo protelada, ele caminhou até o velho fogão a gás, abriu a emperrada porta do forno, tirou de lá o pacote de drogas, e espalhou seu conteúdo sobre a mesa. Em seguida, separou as trouxinhas de maconha e os saquinhos de cocaína em duas partes. Depois, colocou uma parte de cada na mochila, que pegou no quarto, e as outras, devolveu ao pacote, que devolveu ao forno.

- Finalmente, o mar desistiu de lutar contra o rochedo. – disse dona Santana ao ver o filho da vizinha passar pela porta de casa – Já não era sem tempo.

- O que a mãe quer dizer com isso? – perguntou o filho mais moço.

- Nada, menino. Não se mete nos meus assuntos. E vamos nos recolher. Não tem mais nada de interessante pra se ver aqui hoje. – ela disse.

Depois, ordenou aos filhos que a carregassem para o interior da casa, com cadeira e tudo, como se fosse uma inválida.

- Cuidado com isso, meninos! Tão querendo me derrubar? – ela reclamou.

Mochila às costas, Dimas chegou ao Leblon. Não sabia exatamente o que fazer, nem por onde começar. O tempo passou e nada. Somente a lembrança das ameaças de Garrincha impedia que fizesse o caminho de volta para casa. Já era madrugada quando conseguiu passar a primeira trouxinha de maconha. A partir daí, se viu invadido pela sensação, até então desconhecida, de colocar dinheiro no bolso, fruto do próprio esforço.

- Bom dia! – saudou dona Santana, na janela de casa àquela hora da manhã – Ou seria ‘boa noite’?

Dimas jamais poderia afirmar se ouviu a vizinha dizer as palavras ou se foi delírio; depois de passar a noite andando de um lado para o outro, não tinha mais certeza de nada. Em casa, ele se que jogou sobre a cama, cuja dureza, desta vez, não incomodou tanto, e vislumbrou o espaço. O barraco, caindo aos pedaços, o calor provocado pelo sol forte que entrava pelas muitas frestas (além de alguns furos de bala) da parede, nada pareceu incomodar. Então, adormeceu como um trabalhador, após uma noite de labuta.

Já era noite quando se preparou para voltar ao campo de batalha. Na saída, dona Santana, sentada na cadeira de balanço, fez um aceno, que respondeu amistosamente. Ao caminhar pelas ruas do Baixo Leblon notou que seus passos não eram titubeantes e medrosos como os da noite anterior, mas firmes e decididos.

- Taí, fiz o prometido. – disse atirando a mochila aos pés de Garrincha – A grana tá aí. Não te devo mais nada. Agora, libera minha mãe.

- Espera aí. – disse Garrincha mal disfarçando a surpresa – Calma! Vamos conversar. Primeiramente, devo dizer que tô muito orgulhoso. Tu bateu um bolão, camarada. Parabéns!

- Dispenso elogios. Só fiz isso pra me livrar das suas ameaças.

- Ei, pra quê essa revolta toda, mano? Mais amor no coração. Escuta só... Vou até fazer um troço de irmão contigo. Irmão nada, de pai pra filho. O pai que tu nunca teve. Veja bem, vou te dar essa grana, como um bônus. Em troca, tu pega mais um pouco de mercadoria pra vender pros playboys. Só mais uma vez e nunca mais eu toco no assunto. Combinado? Assim, eu te favoreço e tu... Que me diz?

Ao deixar a sede do movimento, dinheiro no bolso e nova mercadoria na mochila, Dimas se sentia tão confiante que caminhou pelas vielas do morro cumprimentando, com simpatia e bom humor, a todos que encontrou.

Embora a nova vida impusesse hábitos extremamente noturnos ao filho, longe de ficar preocupada, Abadia viu a mudança de rotina como algo positivo.

- Graças à minha santinha, meu menino botou a cabeça no lugar. Ele não diz, mas tô desconfiada de que arranjou emprego. Sai toda noite, na mesma hora, e volta de manhazinha, com cara de cansado, cheio de fome. – confidenciou à vizinha – Só fico cabreira dele passar a noite inteira fora de casa. Essa cidade é muito perigosa. Ainda mais de noite, né?

- A cidade é muito perigosa mesmo. – disse dona Santana – Nove ou dez horas, no máximo, boto meus meninos pra dormir.

Numa folga do ‘trabalho’, Dimas foi ao encontro de Larissa, Lucas, Demétrio e Pedrão, que não via há algum tempo. Jane, segundo ele soube, estava às voltas com a clientela no ateliê de tatuagem e o namorado; Suzana fora viver com o marido, em São João do Meriti, na Baixada Fluminense.

- PH e Suzana viraram cidadãos da Baixada Fluminense. – comentou Demétrio.

- Tá todo mundo indo pra essa Baixada. Que tem de bom por lá, hein?

A indagação de Pedrão levou a turma a discutir seriamente o fenômeno. Entretanto, a preocupação de Dimas era arranjar um meio de penetrar na casa de Elisa. Os dois voltaram a se relacionar, nos moldes de antes, após um encontro casual no Baixo Leblon. Em sua imaginação, a garota vivia numa cobertura na Vieira Souto, com vista para o mar, de, no mínimo, mil metros quadrados.

- De repente, eu poderia passar uns tempos na sua casa. Pra te fazer companhia, claro. Que tal?

- Sei lá, cara. Meus pais podem não gostar. Além disso, os empregados fazem fofoca. Sabe como é essa gente, adora se meter na minha dos patrões. A última coisa que quero é ficar mal com meus pais. A confiança deles é tudo pra mim.

Dimas não acreditava que os futuros sogros fossem conservadores ao ponto de proibir a filha de receber o namorado em casa, principalmente levando em conta que frequentara as casas de Larissa e Suzana, logo que começaram a sair, sem o menor problema. Não frequentou a casa de Jane porque ela não se dava com o pai. Também andou pelas casas de Lucas e PH. Na casa de PH, por exemplo, ficou por quase seis meses, com a desculpa de que seu fictício apartamento estava em obras. Obra que nunca chegava ao fim: uma hora foi embargada pelo síndico, outra, o projeto da reforma precisou ser refeito, noutra, o pedreiro desapareceu e como o pai, um matuto, pagou a obra adiantadamente, o jeito foi esperar o profissional reaparecer. Não lembrava mais de quantas invencionices lançou mão. A casa de Pedrão não frequentou, nem fez questão; o dorminhoco vivia num bagunçado quarto e sala, em Copacabana, onde a família o instalara, para ter um pouco de sossego.

- Teu flat é na Garcia D’Ávila, não é?

- Não tô morando mais lá. – disse tomado de surpresa – Mudei pra Atlântica. O velho continua regulando a grana. Ando precisando fazer uma economia braba. Dá pra acreditar? Aquele monte de cabeça de gado e eu...

Dimas calou subitamente e assim permaneceu.

- Por que a gente não vai pra tua casa? – perguntou Elisa depois de um tempo – Pelo menos, deve ser melhor que este motel fuleiro.

- Pô, tô lá de passagem. Tá tudo muito bagunçado. Quando eu mudar pra um hotel melhor ou alugar um apê legal, te levo lá, combinado? Por enquanto, a gente vai ter de se encontrar desse jeito mesmo, embora não seja o lugar ideal pra uma garota do seu nível.

- Quanto a isso, não me importo. Qualquer lugar é melhor que ficar sozinha naquela cobertura...

A menção da palavra cobertura soou como música para os ouvidos de Dimas; era a confirmação que precisava. “Só gente muito rica mora em cobertura na Vieira Souto”, ele pensou.

A partir daí, não poupou esforços para agradar a herdeira. Quando o dinheiro da venda da droga não foi mais suficiente, passou a tomar empréstimos com Garrincha. “Quem sabe seja a hora de me tornar o chefe do morro, o dono de tudo?”, ele murmurou embalado pela necessidade de ganhar mais grana. Se Garrincha, um perfeito idiota, se tornou o chefe do morro, por que ele não poderia? Depois de algum tempo atuando no Baixo Leblon, contava com respeitável clientela, o que fortalecia a ideia de que pudesse de fato trabalhar por conta própria. O problema era o capital para investir. “Onde e com quem arranjar grana?”, ele se perguntava. O nome de Elisa passou pela sua mente, porém, foi logo descartado; uma garota de família não se envolveria com o tráfico. “Tem nada a ver. Garota fina, bem-nascida...”, pensou.

- Tem muito filhinho de papai entrando de cabeça no ramo dos entorpecentes... – ele arriscou, displicentemente, na primeira oportunidade – Tipo investimento pra descolar a própria grana e se livrar da dependência dos velhos, tá ligada? Na verdade, não sei direito. Só ouvi dizer. Mas acho que é meio essa coisa de empreendedorismo. Não entendo bem.

- Tipo vender droga, ou seja, fazer tráfico? – reagiu Elisa – Que loucura, cara! Isso é crime. Dá cadeia e tudo.

- Gente como a gente não vai presa. No máximo, passa um ou dois dias detido numa delegacia, com ar refrigerado e tudo. Prisão é pra pobre, não é pra gente como nós.

- Nesse ponto, tem razão.

- Quer dizer que toparia entrar num negócio desses? Quer dizer, numa suposição... Papo de doido, né? Mesmo porque um negócio desses envolve muita grana. Se o meu velho não fosse tão munheca, não regulasse tanto... Já o seu pai não impõe condições pra liberar grana, como o meu, eu acho.

- Ei, deixa meu pai fora disso.

- Pô, foi mal. Mas, se fosse o caso, o negócio te interessaria?

- A única coisa que posso dizer é que, apesar de ter pai rico, quero ganhar minha própria grana.

- Quem não quer, não é? Pena que precisa de capital. Não sei ao certo, mas acho que não é pouco não. Até porque, embora seja lucrativo, é um negócio bastante arriscado. Tem a concorrência, a repressão da polícia... Não fosse isso, eu entrava de cabeça. E o mundo que se danasse, entendeu? Quer saber? Não tô descartando nenhuma possibilidade. Seu Paulo Otávio tá determinado a liberar grana somente quando eu for trabalhar com ele nas fazendas. E isso tá totalmente fora de cogitação. Não pretendo deixar minha gata (ele deu um beijo apaixonado em Elisa), essa cidade maravilhosa e tudo mais pra me entocar no meio do mato. Aí, a saída é arrumar um meio de não depender do velho.

- Existem outras maneiras de descolar uma grana. Um assalto, por exemplo. Mas não pode ser um assalto micha, entende? Tem de ser coisa grande, tipo cinematográfico. Se é pra entrar na coisa, tem de ser de uma vez, enfiar a cara pra valer mesmo. – disse Elisa.

Nem em seus pensamentos mais otimistas, Dimas imaginou que Elisa fosse capaz de tal ideia; acreditava (ou queria muito acreditar) que a garota que estava deitada ao seu lado na cama, embora moderna, fosse sensível, frágil, romântica, pronta para ser uma esposa submissa, uma dondoca alienada.

- Ei! O que foi? – reclamou Elisa – De repente, ficou mudo. Tá tudo bem?

Como resposta, Elisa viu o namorado apressar a saída do motel; Dimas sentiu necessidade de colocar as ideias em ordem, não tinha mais certeza de que a garota na qual apostava todas as fichas fosse realmente filha de pais milionários. A ideia tomou conta de seus pensamentos de forma quase obsessiva. Estaria ele comprando ‘gato por lebre’?

No dia seguinte, após atravessar a noite em claro, Dimas tomou o caminho do Leblon. O destino não foi a praia, mas o prédio da Vieira Souto em que, certa vez, vira a namorada entrar; precisava passar a história a limpo.

- Gostaria de falar com Elisa, ela está? – perguntou pelo interfone.

- Elisa de quê? – perguntou o porteiro.

- Elisa... Mora na cobertura.

- Olha, aqui não tem nenhuma Elisa que mora na cobertura. A moradora da cobertura é uma senhora, dona Zélia. O senhor deve ter se enganado de prédio.

Diante do silêncio de Dimas, o porteiro retomou:

- A bem da verdade, tem uma Elisa aqui sim, mas não é moradora da cobertura. É minha filha. Vive comigo na moradia dos empregados. Não seria ela que o moço tá procurando?

O porteiro deixou seu posto e caminhou até o portão.

- O senhor...  Agora me lembro. – disse Dimas assim que o viu – O senhor esteve na praia à procura...

- O moço tem razão. Procurava minha filha, que andava sumida. Elisa é cheia mania de grandeza, vive se fazendo passar por moça rica, sabe? De vez em quando...

- E ela tá em casa?

O homem apontou na direção da rua:

- Olha ela vindo ali. Elisa, minha filha, este moço...

- Que é, pai? Sai do meu pé. – disse a moça – Vou usar o elevador social, tá. Nem adianta tentar me impedir.

Intrigado com a semelhança entre a filha do porteiro e a sua Elisa, Dimas a segurou pelo braço.

- Me larga. – ela disse tentando se desvencilhar – Qual é?

- Que história é essa, Elisa? Este homem tá dizendo que é o seu pai? Mas seus pais estão viajando pela Europa, não?

Dimas ficou mudo por um tempo, segurando firme o braço da moça.

- Filha do porteiro!? – disse sofregamente – Isso é piada, não é?

- Muito bem! Acabou de descobrir meu grande segredo. Sou filha do porteiro sim. Qual é o problema?

Dimas teve de se esforçar para não cometer um desatino: “Elisa filha de um reles porteiro... Como assim?”, pensou.

- Por favor, senhor. – interveio o porteiro preocupado com os curiosos de dentro e de fora do prédio que se aproximaram, atraídos pela discussão – Olha o escândalo. Os moradores... Meu emprego... O senhor não...

- Entenda, meu senhor. Esta garota me enganou. Tenho direito à explicação.

Elisa desvencilhou-se de Dimas, caminhou na direção do hall e entrou no elevador, desaparecendo em seguida. Dimas tentou segui-la, mas foi impedida pelo porteiro e outros funcionários do prédio.

- Sinto muito, meu rapaz. – disse o porteiro – Perdoa a menina. Ela não se conforma de ter nascido pobre. Vive metida com gente grã-fina, fingindo que é grã-fina também. Estive na praia procurando por ela, como bem lembrou. Imagina só. Encontrei a danada metida na casa de um ladrão do governo. Já pensou? Tive de tirar ela de lá à força. Desde então, tá mais revoltada ainda. Não sei o que fazer. Tem hora que penso em deixar de mão, mas ela é minha filha, né?

Dimas não viu apenas mais uma possibilidade de casamento ser frustrada, um castelo de areia ser destruído pelas ondas, o envolvimento com Elisa ia muito além, fugia totalmente ao seu controle.

- Elisa não mora mais aqui. – disse o pai-porteiro quando, ainda em busca de explicações, retornou ao prédio – Toda vez que ela apronta, o castigo é voltar pra companhia da mãe, no interior do estado. Desde que veio morar comigo, tenho tentado dar alguns conselhos, mas a menina é cabeça de vento, igual à mãe, que me largou pra viver de ilusão. A menina não quer saber de nada. O senhor credita que uma moradora aqui do prédio, dona Zélia Albuquerque de Mendonça, quis pagar os estudos dela? Pergunta se ela se interessou... Que nada! Prefere ficar na praia fingindo que é filha de pai rico. Pensa que assim vai encontrar um moço cheio da nota pra tirar ela da pobreza. Tudo sonho besta, o senhor não acha?

Enquanto Targino, esse era o nome do porteiro, falava, Dimas teve a impressão que se referia a si e não à filha; o porteiro lembrava muito a própria mãe, a subserviência e humildade eram idênticas. Se de fato existisse – ele pensou – um duplo de cada pessoa, não tinha dúvida de que Elisa era o seu e Targino, por sua vez, o duplo da mãe.

Dimas esteve a ponto de pedir o novo endereço da namorada, porém desistiu. Não sabia ao certo como agiria, o que diria a ela. Sabia apenas que o encontro dos dois não se deu por acaso; havia, além de uma força atraindo um para o outro, uma história por viver, história que talvez mudasse suas vidas para sempre.

Dias depois, sentado num quiosque, na praia de Ipanema, Dimas pensou que estivesse sendo vítima de alucinação, quando viu Elisa se aproximar. Foi necessário controlar o impulso de ir ao seu encontro e confessar-se perdidamente apaixonado. O destino, ou outra coisa que não fazia ideia do que fosse, contra sua vontade, desejos e planos fez com que atraísse não aquilo que buscava, mas um espelho no qual se via refletido de tal modo que se confundia: ele e Elisa desejaram encontrar alguém que mudasse suas vidas, que os tirasse da pobreza, da indigência e os levasse para um mundo de riquezas sem fim, longe dos tormentos e aflições da gente comum, porém, tudo não passou de fogo-fátuo.

- O que quer de mim? – Elisa perguntou – Vai lá. Manda a real. O velho disse que tu quer falar comigo. Tô aqui. Mas não vem com papo furado, tá legal?

O filho da diarista chegou ali disposto a revelar que era um pobretão sem eira nem beira e que, portanto, estavam no mesmo barco. Entretanto, manteve o discurso do rapaz rico, imbuído das melhores intenções, que julgava se relacionar com uma moça de família distinta, bem educada...

- Se tivesse dito a verdade, juro que ia compreender. Agora, tudo fica mais difícil. Falei pros meus velhos que você era de boa família, que morava numa bela cobertura, na Vieira Souto, que estudou nos Estados Unidos, Europa... Essas coisas. Meus pais não querem que eu me envolva com alguma oportunista, que só queira se dar bem, entende?

- Ou seja, a filha do porteiro não serve pra casar com o herdeiro de fazendas, não é?

- Não é isso, Elisa. Veja a situação em que me colocou. Quero muito ficar contigo, mas... Os velhos não vão permitir. Vê se entende. Não posso ir contra a vontade deles. Infelizmente, a gente vai ter de terminar. Adeus!

Ao final do discurso, Dimas estava tão absorvido pelo enredo do filho de fazendeiro rico que, intimamente, acreditava em cada palavra que proferia. Nesse momento, seguindo o script, ele levantaria completamente arrasado e tomaria a direção da saída. No meio do caminho, olharia para trás, lançaria um último olhar para o grande amor de sua vida, que estaria sozinha, cabisbaixa, igualmente arrasada, faria um aceno de mão e, então, finalmente partiria. Entretanto, nada disso aconteceu; ele nada disse, nem mesmo saiu do lugar: a desordem mental era muito grande. Quem ele era, afinal? O filho da faxineira diarista do morro ou do fazendeiro, criador de gado do Mato Grosso? Nem ele sabia ao certo. Talvez não fosse nem um nem o outro, mas uma soma dos dois; mentira e verdade, realidade e fantasia se misturavam.

- Até quando vai manter essa farsa ridícula, hein? – disse Elisa subitamente – Ouvi o discurso do playboy enganado pela pobretona fingindo engolir cada palavra, mas esse papo de filho de fazendeiro, criador de gado do Mato Grosso... A quem acha que engana, hein? Quer saber? Sempre soube que não passa de um pobretão, trapaceiro, arrivista, um alpinista social chinfrim. Tentou dar o golpe em Larissa, Suzana, Jane e quem mais apareceu pela frente. Até o Demétrio... E não estava de todo enganado. Apesar de não parecer, Demétrio é o único da turma verdadeiramente montado na grana. Perto dele, Larissa, Suzana e Jane são meras proletárias; o pai da bicha tem até ilha particular, cara. Perdeu a chance de dar o grande golpe, malandro. O tonto do Lucas foi mais esperto. Os dois vão casar e tudo. Mas isso...

Elisa fez uma pausa, depois retomou:

- É um idiota, cara. Sua história nunca convenceu a ninguém. A turma da praia sempre soube que tu não é filho de fazendeiro rico coisa nenhuma. A Larissa, a Jane, a Suzana, o Demétrio, o PH... Somente o Pedrão e o Lucas, dois lesados, engoliam essa farsa. Larissa botou detetive na sua cola e o cara deu a ficha completa. Mas a turma, em vez de te desmascarar, preferiu se divertir com tua cara. E eu também. Por que acha que preferi me colar no babaca do PH a ficar contigo?

- Mesmo depois do lance da prisão você continuou colada nele.

- Tinha esperança que a coroa do PH fosse esperta e salvasse a grana que foi mandada pro exterior, porém... Mulher tapada, burra. Entregou tudo na bandeja pra polícia federal e ferrou o marido de vez.

Depois de um tempo entregue aos próprios pensamentos, Elisa observou demoradamente o companheiro de mesa, a essa altura reduzido a frangalhos, e, com acentuado tom de desprezo, disse:

- Olha a tua figura deplorável. Roupas puídas, pele maltratada, cabelo ressecado, dentes encardidos, linguajar... Se pelo menos tivesse um jeitão de caipira... Verdade seja dita, a história do pai rico que regula grana como forma obrigar o filho a assumir os negócios da família é um enredo que costuma usado com relativo sucesso em novela de televisão, mas o resto... Não. É melhor eu parar por aqui. Não quero chutar cachorro doente.

Ver o mundo fantástico que construíra reduzido a ruínas, fez Dimas perceber o quanto fora ingênuo ao acreditar que bastaria usar a lábia de malandro para convencer os riquinhos do Leblon de que faziam parte da mesma tribo.

- Ei, cara. Isso é normal. – disse Elisa – Tem hora que a gente erra a mão. Não foi dessa vez, porém não é o fim do mundo. Sempre se pode tentar de novo. Não esqueça que, antes de qualquer coisa, neguinho tem de te olhar e acreditar que tu é rico de verdade. É preciso convencer geral. Como se consegue isso? Aplicando golpes no comércio, com cartões clonados, roubados, o que quer que seja. Não importa. Contanto que consiga a beca certa pra se apresentar nos eventos que podem te colocar de cara com gente interessante, que abre portas. Uma vez nesses lugares, é muito importante agir com cautela pra não parecer intrometido, desagradável, tá ligado? Fale o estritamente necessário, nada de dar informação que depois venha a trazer complicações. Não se esqueça de fazer alguma presença, ou seja, pagar uns drinques, mostrar que tem bala na agulha. E, o principal, crie uma aura de mistério em torno de sua pessoa, não se deixe conhecer totalmente, apareça e desapareça. E mais: não tenha preconceito ou pudor de nenhuma espécie: droga, sexo, homem, mulher, religião, cor, raça, vertente política, nacionalidade, nada. E, o mais importante, esteja sempre pronto a encarar todas as situações com naturalidade. Grava essa: quando a gente nasce do lado errado da vida, precisa aprender a se virar. Andei colada num cara aí, mas ele deu mole e caiu na mão da cana. A mercadoria dele era top. PH era freguês. Foi assim que a gente se conheceu.

Dimas se sentiu num barco à deriva, ondas gigantes o arrastavam de um lado para outro. Julgava estar enganando, mas foi enganado. Larissa, Suzana e Jane deram corda para suas mentiras, por pura diversão. Jane, por sua vez, foi mais longe: quis conhecer as fazendas, que sabia não existirem.

- Aquele homem é mesmo seu pai? – perguntou depois de algum tempo.

- Infelizmente. Mas tem lá sua utilidade. Garante moradia na Vieira Souto. Isso deve ser levado em consideração, não acha?

- Moradia na ala de empregados. Não se esqueça disso.

- Às vezes o que importa não é ser é parecer, cara. Quando digo que moro na Vieira Souto, sabe o que acontece? Todas as portas se abrem. Sabe o que é isso?

Dimas nasceu e cresceu atolado em pobreza, feiura e podridão. A constatação fez com que sentisse inveja de Elisa; se em vez de uma mãe faxineira tivesse um pai porteiro de prédio, talvez as coisas tivessem sido diferentes. Pelo menos, poderia ter crescido na zona sul. Dessa forma, não seria taxado de suburbano, favelado.

- Apresenta aí o tal traficante pra quem tu trabalha. – disse Elisa – Embora lá. É Garrincha o nome dele, não é? Vai que rola uma parceria, hein?



Bom domingo e excelente semana.

Esperança, fé, amor e GRATIDÃO.

 

 

 

 

 

 

outubro 18, 2024

Investimentos com retorno garantido.

Muito se fala em investimentos financeiros. Há muita gente por aí que se especializa em estudos buscando descobrir o que rende mais e em que tipo de aplicação pouco dinheiro pode, da noite para o dia, se transformar numa bolada e te deixar milionário, sonho acalentado por praticamente todos os mortais.

Nada mais fácil de entender, não é mesmo? Afinal de contas, vivemos num mundo descaradamente materialista em que o dinheiro é a mola mestra, sem ele não conseguimos dar um passo. Porém, como disse Jesus, "nem só de pão vive o homem". Temos muitas outras necessidades as quais o dinheiro não pode comprar.

Uma dessas necessidades que o dinheiro não compra é o amor das pessoas que queremos bem. Amor esse que pode ser carnal, mas também pode vir na forma de uma amizade em que vale a pena investir. Sim, a palavra é essa mesma. Podemos e devemos investir no amor, na amizade, no companheirismo sem medo de sofrer qualquer prejuízo.

Quando investimos em bons sentimentos o retorno é sempre certo. Não precisamos temer. Mesmo quando sofremos alguma decepção, e elas são possíveis de acontecerem, não devemos nos entristecer, pois o bom sentimento investido voltará a nós de uma forma ou de outra antes que possamos perceber.

Bom final de semana.

Esperança. fé, amor e GRATIDÃO.

outubro 13, 2024

A mão invisível - Capítulo 3

Em meio a mentiras e esquemas, Dimas acaba caindo no golpe de Garrincha e fica em suas mãos; se fizer a vontade do traficante morre.

Capítulo 3

Garrincha montou guarda na porta da casa de Dimas, numa forma clara de intimidação. A movimentação, como não poderia deixar de ser, despertou a atenção de dona Santana, e de toda a vizinhança. Abadia, no entanto, sempre ocupada com as faxinas, nada percebeu.

“Talvez meu destino seja mesmo o tráfico”, Dimas refletiu; fugiu o quanto pôde, porém não restava outra saída senão encarar a realidade. Além disso, andava cismado que a qualquer momento a turma da praia descobriria que a história do pai criador de gado do Mato Grosso não passava de invenção e que, na verdade, se chamava Dimas da Silva, filho de mãe-solteira, faxineira-diarista e, cereja do bolo, morador de comunidade pobre do subúrbio.

O enredo do filho de fazendeiro rico permitiu que frequentasse as altas rodas, experimentasse comidas finas, bebesse champanhe, visitasse balneários da moda e, não podia esquecer, sem gastar um centavo que fosse. Afinal, de que outra forma teria tido acesso ao mundo dos ricos sem lançar mão de muita astúcia, mentiras e estratagemas? Por sorte, desde que inventara a história do pai rico, poucas vezes se vira em maus lençóis. Apenas uma vez, quando Jane demonstrou desejo de conhecer a fazenda do pai, chegou a ficar preocupado. A insistência da garota o levou a se atentar pelo fato de que ao criar a história do pai rico não imaginara nada além de um monte de cabeças de gado espalhadas numa grande extensão de terra. Nem ao menos fazia ideia de que o tão falado Pantanal ficasse no Mato Grosso do Sul e não no Mato Grosso, como afirmava. Na verdade, ele nem fazia ideia da existência dos dois estados. Jane, alheia a tudo isso, se via mergulhando nos rios, nuazinha em pelo, tomando leite nas tetas das vacas, comendo frutas colhidas diretamente do pé, cavalgando, enfim, interagindo com os animais nativos e com todo o ambiente.

- Como pode abrir mão daquele paraíso, maluco? – disse Jane.

A saída foi a de sempre.

- Pô, amor. Sabe que tô estremecido com o velho, né? O clima não tá legal. Esse não é um bom momento, sacou? Olha... Mas quando eu voltar às boas com o velho, eu prometo que te levo lá.

No fim das contas, para seu alívio, Jane desistiu da viagem; de problemas com o pai ela entendia bem.

- Suzaninha vai casar. – anunciou Demétrio, para espanto geral.

- Que danadinha! – reagiu Larissa, deixando entrever uma ponta de despeito – Pensei que, no máximo, Suzana se envolveria com algum personagem dos romances que lê. Já que o PH...

- O bofe é de carne e osso, meu amor. – garantiu Demétrio – Um verdadeiro Apolo. Mas como nada é perfeito, que ninguém me ouça, tão dizendo por aí que não passa de um pobretão. O pai tem uma lojinha de autopeças, em São João do Meriti. Alguém tem ideia de onde fica isso?

A novidade não caiu bem para Dimas; era ele quem deveria estar no lugar do noivo. Desistiu muito facilmente da garota feiosa e insossa. O único consolo era que, pelo que conhecia do pai da noiva, o renomado médico, doutor Antero Borges, que acabara de ser eleito, pelo Rio de Janeiro, para a câmara federal, jamais daria vida boa ao genro.

- Sou um homem do trabalho. Todos os dias, às seis da manhã já estou atendendo no hospital. – ouvira o quase sogro dizer certa vez.

- Não tá com dor de cotovelo, Dimas? – provocou Demétrio – Afinal de contas, pegou a Suzana. Quer dizer, Suzana, Larissa, Jane...

- Tira o meu nome e, no lugar, coloca o teu. – reagiu Larissa.

- Que papo é esse, Dê? – disse Lucas – Tá me traindo, é?

A intervenção de Lucas, embora o tom fosse de brincadeira, surpreendeu a turma. O próprio Demétrio, que não perdia a chance de fazer comentários, pareceu desconsertado. Entretanto, antes que alguém tivesse tempo de dizer qualquer coisa, as atenções foram atraídas para um senhor, de aparência bastante humilde, que se aproximou da turma.

- Com licença. Desculpa atrapalhar. O moço daquele quiosque falou que a moça desse retrato andava por aqui. – o homem disse apontando na direção do quiosque de Manduca – Alguém viu?

A foto passou de mão em mão. “O que uma foto de Elisa tá fazendo nas mãos desse homem?” – foi a pergunta que todos se fizeram, silenciosamente.

- Quem é o senhor? – disse Larissa rompendo o silêncio – O que deseja?

- Precisava muito de notícias dessa menina. – ele disse – Coisa de urgência.

- Elisa tá na casa do namorado. – disse Demétrio.

- O senhor poderia, por favor, dizer o endereço? É coisa de muita urgência mesmo.

- Afinal, quem diabos é o senhor? – perguntou Larissa, impacientemente – Ninguém aqui tá autorizado a dar informações. O senhor tá atrapalhando...

O tom áspero usado por Larissa fez aumentar o constrangimento e o embaraço do pobre homem que, sem demora, pediu desculpa pelo incomodo causado, tomando o caminho do calçadão pisando a areia fofa, debaixo do sol escaldante.

- “Desculpa atrapalhar o descanso dos moços”. – zombou Demétrio.

- Que assunto ele pode ter com a Elisa? – questionou Dimas – Alguém faz ideia?

- Deve ser empregado da família. – arriscou Pedrão – Não viu o uniforme que ele usava?

- Olha o Pedrão! – disse Lucas – Depois dizem que ele dorme o tempo todo.

- E não é que faz sentido? – especulou Demétrio – Esse homem, provavelmente, é um ex-empregado da família de Elisa, que pediu demissão, voltou pra terrinha, gastou toda a grana do acerto e agora tá de volta, querendo reaver o emprego. Só pode ser isso, turma. Um motorista lá de casa fez a mesma coisa. Pediu pra ser despedido, imaginem, porque tava chovendo na terra dele. Pouco tempo depois pediu o emprego de volta porque a chuva não foi o suficiente pra molhar a terra e fazer a plantação crescer. Dá pra acreditar?

No final do dia, seguindo o roteiro, Dimas simulou a caminhada até Copacabana, onde pegou a condução. Ao tentar entrar em casa, entretanto, viu-se encurralado pelo bando de Garrincha.

- Para de se fazer de desentendido, maluco. Vem comigo. – disse Garrincha surgindo do meio do banco, pois estava oculto – Temos que levar um papo.

- Pô, cara. Não vai dar. A velha me ligou. Tá passando mal. Acho que vou precisar levar no pronto-socorro e tudo.

- Vem comigo ou prefere ter a conversa aqui mesmo, na frente da vizinhança?

Dona Santana que, como de costume, estava sentada na porta de casa, ladeada pelos filhos, sorriu de satisfação ao ver o filho da vizinha, cabisbaixo, obedecer à ordem do traficante. Pelo caminho, no olhar daqueles que encontrava, Dimas viu um misto de espanto e prazer por vê-lo encrencado com o movimento; sempre orgulhoso e esnobe, não contava com a simpatia geral.

- Cadê a grana, maluco? – disse Garrincha tão logo chegaram à sede do movimento – Ando com o caixa baixo. Tô precisando me fortalecer. E aquela grana...

- Já disse que devolvo a mercadoria. Tá lá. Não toquei em nada.

- Já falei que não aceito devolução. Quero a grana, camarada!

- Entende o meu lado, Garrincha.

- Chega de embromação, camarada. Se não arrumar a grana, a coisa vai feder pro teu lado. De repente, posso, sei lá, te encrencar com os home. Sabe que tenho meus contatos. Nesse caso, até dona Badia entraria no rolo.

- Deixa minha mãe fora disso. Tenho lá minhas diferenças ela, mas... Pô, cara, você conhece a luta daquela mulher.

- Olha só. O filho desalmado tá com peninha da mamãezinha? Quem diria? Só depende de tu. Só de tu. Tô te dando a chance de entrar pro movimento. Se fosse tu, agarrava com unhas e dentes. É a solução pra todos os teus problemas. Só tu não vê.

Dona Santana ainda estava de plantão na porta de casa quando Dimas, depois de mais de duas horas de verdadeira tortura, retornou à casa da mãe. “Não foi dessa vez que eu fui pra a vala, velha enxerida”, ele teve vontade de gritar. Em vez disso, entrou em casa, de cabeça baixa. Não imaginava que o amigo de infância o atrairia para uma armadilha; Garrincha somente fornecera a droga para tê-lo nas mãos, agora tinha certeza disso. Se pudesse contar com a mãe, mas ela vivia dura. Em último caso, poderia vender o barraco e com a grana quitar a dívida. Assim, se livraria do pesadelo.

- Nunca mais chegava. – disse Abadia assim que viu o filho entrou em casa – Tava preocupada.

- Que saco! Sai do meu pé, assombração. – ele disse.

Atravessou a noite em claro pensando em alguma saída. Nunca dera atenção aos alertas da mãe, que insistia para que não se envolvesse com a gente do tráfico; no fundo, sempre dificuldade de levar a sério os conselhos da criatura de cabeça estreita que só dizia besteira e choramingava pelos cantos.

- Cadê a manteiga? Como eu posso comer pão sem, pelo menos, manteiga? Porque geleia...

O questionamento foi feito diante do café que a mãe, como fazia todos os dias, deixara preparado. A velha geladeira, caridade de uma das patroas, pifou de vez. “Sem geladeira, não tem manteiga”, raciocinou. Também pifou a televisão, o velho aparelho de tubo, que chegou da mesma forma que a geladeira. Aliás, tudo ali era proveniente de caridade: a mesa, as cadeiras, o armário, o sofá, que a mãe usava para dormir, a cama aonde dormia, o fogão, enfim, descarte, lixo.

Dimas divertiu-se imaginando a mãe recebendo aquela tranqueira, com sua humildade doentia. E se deu conta de que nunca na vida usara algo que fosse de primeira-mão, comprado diretamente da loja. As roupas e os sapatos, alguns de marca, que usava provinham de doações das patroas da mãe que tinham filhos, sobrinhos ou netos que regulavam a sua idade.

Ao sair de casa, Dimas não viu a enxerida dona Santana na porta de casa. Desejou, ardentemente, receber a notícia de que ela tivesse morrido sufocada pela língua, ou se mudara com ‘as filhinhas’, para bem longe. Chegou à praia, por volta de meio-dia. A novidade era Príncipe Carlos que fazia embaixadinhas, em frente ao quiosque do pai, envergando o uniforme do Flamengo.

- Aproveita, minha gente, pra tirar self com o futuro craque. É só aproximar. Não se acanhem. Príncipe Carlos vai atender todo mundo. Vamos lá. Meu filho ainda não fechou com nenhum clube, mas os maiores tão disputando seu passe.

Apesar do esforço de Manduca, ninguém se aproximou para fazer self com o futuro craque do futebol. Em seguida, Dimas se juntou à turma. PH estava por lá arrasado com a situação do pai, que se agravava a cada dia.

- Força, mano. – disse Lucas – Seu velho vai provar que tudo isso não passa de mal-entendido.

- Sei não, cara. Existem documentos e filmagens que provam o envolvimento. O velho deu mole. Agora tá todo mundo encrencado. Minha mãe tá se esforçando pra manter a família unida, mas tá brabo. As contas bancárias e os bens tão bloqueados.

- As contas do exterior também? – quis saber Demétrio.

- Não tem conta no exterior.

- Tô bege. – prosseguiu Demétrio – Teu velho não mandou a grana pra paraísos ficais...? Que tipo de corrupto é esse, meu povo? Taí, acho que tá na hora de criarem um curso pra formar corruptos. Se é que já não existe, né?

O comentário causou mal-estar não somente em PH, mas em toda a turma. Lucas se esforçou para consertar o estrago convidando o colega para pegar onda, porém, PH ignorou o convite; impossível pensar em alguma coisa que não fosse a prisão do pai e, consequentemente, a derrocada da família: sem grana, os empregados precisaram ser dispensados e a mãe estava cozinhando, lavando e passando roupa, enfim, cuidando da casa, o que antes seria impensável.

- No meio de tudo isso a Elisa simplesmente desapareceu. Nem o telefone ela atende. E o pior é que não tenho a menor ideia de onde ela mora. Alguém sabe?

Ninguém da turma sabia o endereço de Elisa ou tinha qualquer outra informação a seu respeito; tudo o que sabiam fora dito por ela mesma, ou seja, quase nada.

- Elisa é mesmo muito reservada. – disse PH.

- E não esquece que foi você que apresentou a garota pra turma. – disse Demétrio.

O restante da turma fez coro com Demétrio: antes de aparecer na praia, na companhia de PH, Elisa era completamente desconhecida.

- Quer saber? Saquei tudo. – disse Pedrão mostrando, mais uma vez, seu lado Sherlock Holmes – Elisa é uma multimilionária e foi sequestrada por aquele homenzinho esquisito que teve aqui na praia. Vai por mim.

Dimas não fez questão de tomar parte da conversa, no entanto, manteve-se atento o tempo todo. A informação do sumiço de Elisa acendeu o alerta; talvez os ventos estivessem começando a soprar a seu favor.

Dias depois, jornais e revistas davam conta de que novas acusações pesavam sobre o empresário Pedro Henrique Soares Alves. Um freguês comentou com o dono da banca de revistas que a família do ‘empresário corrupto’, afundada em dívidas, fora obrigada a trocar o espaçoso apartamento do Leblon por um quarto e sala, num lugar afastado do centro de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. O comentário levou Dimas a não ter mais dúvida de que o destino estava mesmo do seu lado; Elisa, quando voltasse da viagem – tinha como certo que o sumiço não passava de uma forma elegante de ela romper o compromisso –, jamais reataria o noivado com o ‘morador da Baixada’, filho de presidiário, preso por crime do colarinho branco, bem verdade, porém, presidiário de qualquer forma. Em contrapartida, e para todos os efeitos, ele era filho de um dos maiores criadores de gado do Mato Grosso, e do Brasil, ou seja, um excelente partido, detalhe que, certamente, contaria a seu favor na hora em que os pais de Elisa descobrissem que a filha estava dividida entre o ‘herdeiro de fazendas de gado’ e o ‘filho do presidiário’.

Entretanto, desde que se imiscuíra entre os riquinhos da praia, apresentando-se como fosse um deles – admirava-se da facilidade com que os convencera –, era obrigado a inventar meios para fugir de pagar contas ou assumir compromissos que envolvessem despesas de qualquer ordem. O manjado golpe dos cartões bloqueados, devido a algum acontecimento extraordinário, e o fato de andar sem dinheiro, em espécie, pois, segundo afirmava, gente do interior tinha o costume de mandar ‘anotar no caderno’ para pagar depois, eram as desculpas preferidas. Dessa forma, explorou o quanto pôde Larissa, Suzana, Jane e várias outras. Durante os relacionamentos com as três amigas da praia, por exemplo, tinha sempre desculpas na ponta da língua. Suzana e Jane nunca estranhavam o fato de o namorado estar sempre desprevenido. Na verdade, pareciam sentir prazer em bancar os programas. O mesmo não acontecia com Larissa.

- Gosto de receber flores, joias caras, que abram a porta do carro, que puxem a cadeira e, o principal, que paguem a conta. – Larissa fazia questão de deixar claro – Sem essa de mulher moderna. Sou mulherzinha mesmo. Quero ser bancada. E sou cara, queridinho. Pra me manter o homem tem de abrir a carteira. Do contrário, fico avulsa mesmo.

A saída foi se afastar da garota que, das três, era a preferida. Na real, chegou a gostar de Larissa, não tanto quanto estava gostando de Elisa, mas o bastante para ficar profundamente abalado com o fim do namoro.

PH continuou frequentando a praia. No entanto, os constantes problemas causados pela grana curta e a prisão do pai, somadas ao sumiço de Elisa, o tornaram, na opinião da turma, um chato insuportável. Além disso, Larissa, Pedrão, Lucas e mesmo o descolado Demétrio não o tratavam da mesma forma que antes. Dimas, seguindo a onda, experimentou o gostinho de esnobar o rival, pelo mesmo motivo que, com certeza, também seria esnobado, se conhecessem sua verdadeira condição social. Não demorou muito, o ex riquinho não deu mais o ar da graça.

Dimas mudou de ideia: não mais vislumbrava um casamento por interesse, mas a união feliz de dois apaixonados. Não tinha dúvida de que Elisa estivesse descansando num resort da moda, na companhia dos pais. Por outro lado, conscientizou-se de que não poderia continuar usando as velhas desculpas para justificar a eterna falta de grana. Cedo ou tarde teria de provar que fazia parte da classe dos endinheirados. Dessa vez, disposto a impressionar, planejou que assim que a garota retornasse a convidaria para um jantar romântico, num restaurante bacana. Nesse dia, alugaria um carro de luxo, usaria uma beca elegante, que tomaria emprestada com o Kiko – um conhecido do morro que trabalhava com figurino para cinema e quebrava seus galhos toda vez que precisava se apresentar bem em festas e eventos importantes –, e, com a Duda, travesti com salão montado no morro, daria um bom trato no visual: cabelo, barba, limpeza de pele, unhas, ou seja, um ‘upgrade’ para apagar qualquer possível vestígio de pobreza. Mas como financiaria o jantar? Faltava grana até para manter a conexão de internet do celular. O aparelho, proveniente de receptação, até fazia boa figura diante dos colegas, mas, na maior do tempo, servia apenas para receber chamada. A mãe, quando viu aquele aparelho vistoso, desconfiou de sua procedência. No entanto, pouco interessava os pruridos de honestidade da mãe; o importante era ter um aparelho digno do filho de um fazendeiro rico para apresentar. Além do celular, roupas, tênis, sapatos, chinelos, óculos de sol, adereços em geral, nem precisavam ser originais ou mesmo de primeira mão, desde que fizessem boa figura, claro.

- Por que não avisou, mãe? Eu ia te buscar lá embaixo.

Abadia sorriu embevecida por ver o filho, que a esculachava o tempo todo, oferecer ajuda. A explicação para o ataque de generosidade estava nas sacolas repletas de roupas, calçados e artigos masculinos, quase sempre de marcas caras, que trazia da casa das patroas. Nessas ocasiões, única por sinal, Dimas não reclamava do fato de a mãe ser uma simplória diarista; das doações que ela recebia extraía os figurinos do personagem que interpretava na vida.

Ao entrar em casa, naquele início de noite, Dimas deu de cara com Garrincha, escarrapachado no sofá. A mãe, que preparava alguma coisa no fogão, diferentemente do que fazia todos os dias, não tomou conhecimento de sua chegada.

- Que bom que chegou a tempo de jantar comigo, brother. Nunca mais deu notícias. Daí, eu vim saber como andam as modas. Vamos lá fora. – disse Garrincha, já de pé – Enquanto dona Badia prepara o rango, a gente troca uma ideia.

Do lado de fora da casa, Garrincha continuou:

- Dona Badia é mulher de responsabilidade. Coisa rara neste mundo. Pedi pra fazer um rango pro pessoal do movimento e ela topou na hora. Admiro gente assim, pau pra toda obra, sabe como é?

- Minha mãe... Jantar pro pessoal do movimento... Que conversa é essa? – estranhou Dimas.

- De repente, tive essa ideia. Aposto que se amarrou, né? Daqui a pouco, o bando tá chegando aí. Hoje é o aniversário do Pelado. Quero fazer um afago no muleque. Ele tá com a gente desde quase bebê. Sabia que ele foi abandonado pela mãe ‘cracuda’ e que nem sabe quem é o pai, né?

- Que papo é esse, Garrincha? O morro inteiro sabe que o garoto foi abandonado pelado, numa viela. Qual é a novidade? E essa história de aniversário? Por que tem de ser na minha casa?

- Qual é, irmão? Deixa escândalo. Esqueceu que tá em falta com o movimento?

- Já disse que vou resolver.

- Quando? No dia de ‘são nunca’? Acabou o tempo, acabou o caô, meu bom. Daqui pra frente, vai ser do meu jeito. Pra começo de conversa, quero dona Badia no movimento. Acabei de decidir. A gente come muito mal por lá. Como ela tem fama de boa cozinheira, pensei: por que não recrutar a progenitora do amigo Dimas pra ser a cozinheira? Ideia do caralho, não acha?

O barulho provocado pela aproximação do bando que, como anunciou Garrincha, vinha participar do jantar, impediu Dimas de reagir.

- Olha a alegria do Pelado. – disse Garrincha – O muleque tá que não se aguenta. Primeira festa de aniversário que ganha na vida. Tenho ele como um filho, sabia?

Pelado, garoto de cerca de quatorze anos, vinha à frente do bando, ostentando o fuzil que acabara de ganhar do protetor.

- Pode entrar que a casa é nossa, meu povo. – disse Garrincha abrindo a porta da casa para dar passagem ao bando – Entra e se abanca.

Dimas tentou ficar do lado de fora do barraco, mas foi constrangido a entrar, por Garrincha. Dentro do barraco, num discurso improvisado, o chefe do bando destacou as qualidades do aniversariante e sua história de garoto abandonado, salvo pelo movimento que, ao contrário do que diziam as más línguas, tinha preocupações sociais.

- A gente pega essa garotada ociosa e faz o quê? Dá ocupação, tira da vagabundagem...

O discurso só foi interrompido quando a dona da casa anunciou que a comida estava pronta para ser servida.

- Muito boas falas, minha santa senhora. – disse Garrincha – Tá todo mundo com a barriga nas costas. Olha a cara deles. O que tá esperando pra cair de boca, macacada?

Apesar de ruidoso, o grupo teve receio de ‘atacar’. Então, Garrincha ordenou que dona Abadia servisse os pratos.

- E aí, Dimas? – disse Garrincha ao notar que o filho da dona da casa não se servira – Não vai dizer que precisa que a mamãezinha faça seu prato?

- Desculpa, filho. Pensei que... – disse Abadia – Mas pode deixar. Eu vou fazer seu prato. Faço isso a vida inteira, né?

- Não precisa, mãe. Tô sem fome.

- Tem problema não, dona Badia. Se o garoto da zona sul não quer se envolver com os favelados é melhor que sobra mais, né não?

O bando, que comia em silêncio, irrompeu em grande gargalhada, somente interrompida quando, de repente, dona Santana entrou na casa, acompanhada dos filhos.

- O que é isso, Badia? Deu de fazer festa e não convidar a vizinhança?

- Não tem festa nenhuma, dona Santana. É só...

- A dona da casa não convidou – disse Garrincha interrompendo Abadia –, mas eu, Garrincha, convido a senhora e as suas, quero dizer, seus filhinhos, pra participar do jantar de aniversário do Pelado. Pode se abancar que o rango tá liberado.

- Que novidade é essa, cabra? Deu pra invadir casa de trabalhador?

- Falou bem, dona Santana, porque aqui só tem trabalhador. Inclusive, gostaria de informar, em primeira mão, que a dona Badia, grande representante da classe trabalhadora deste país, será, a partir de amanhã, a cozinheira do movimento.

- Brigado pela deferência, seu Garrincha. Mas eu não posso não. Tenho compromisso a semana inteira com as madames da zona sul. – disse Abadia, sem digerir o que acabara de ouvir – Deus me livre deixar as patroas na mão. Elas são muito boas pra mim. E o trabalho é meu ganha-pão. Como é que vou viver sem as minhas faxinas?

- Isso não é problema meu, dona Badia. – respondeu Garrincha – Teu filho tá me devendo. Aliás, tá devendo pro movimento. E como tem se negado a comprimir o compromisso feito sujeito homem, a senhora, como mãe dele, vai... Aliás, a presença do movimento aqui hoje, além de comemorar o aniversário do estimado Pelado (o adolescente sorriu de orelha a orelha, mostrando os dentes encavalados), tem o objetivo de experimentar o tempero da senhora. E pelo jeito o bando aprovou, com louvor, não é não?

O bando, em nova algazarra, não economizou elogios ao ‘rango’ de dona ‘Badia’.

- Diante de toda essa manifestação, a senhora tá mais que aprovada. E a partir de amanhã, dá expediente na sede do movimento.

- Isso quer dizer que tua mãe vai pagar por mais uma besteira que tu fez, Dimas? Se emenda não? – disse dona Santana – Badia não tem nada que ver com tuas trapalhadas, rapaz. O único erro dela é trabalhar de sol a sol pra te sustentar.

- Se mete nisso não, velha fuxiqueira. Vai cuidar de suas ‘filhinhas’. – disse Garrincha – Bora, pessoal. A gente já fez o que tinha pra fazer aqui. Até amanhã, dona Badia. E nada de dar furo, hein? A saúde do teu filhinho tá em tuas mãos. Se é que a senhora me entende. Além do mais, não vai ficar bem eu bater na porta das ‘madames da zona sul’ à tua procura, né? O que a senhora me diz?

Tão logo Garrincha saiu com o bando, Dimas correu para a sede do movimento; tencionava reverter a situação.

- Deixa minha velha fora disso, cara.  – ele implorou, ajoelhando aos pés do traficante – Sabe que é com as faxinas que ela paga as contas, coloca o rango na mesa, compra remédio... Sem isso, ela não tem como viver.

- Não tem conversa, camarada. Minha decisão é soberana e não tem chororô. Se quiser um conselho: aceita que dói menos.

- Alivia pra velha, cara. – insistiu Dimas – Ela é uma mulher do bem. Nunca fez mal pra ninguém. Veja a figura triste e acabada que é.

- Se o filho dela não vê, por que eu tenho que ver? E levanta daí. Deixa de ser otário. Age como sujeito homem. Pega a mercadoria e cai na pista. Tenho certeza de que em pouco tempo tu consegue a grana pra me pagar e ainda fica fortalecido. Vai poder até tirar onda. É só agir com a cabeça. Metido no meio dos playboys como é tu tá com a faca e o queijo na mão, camarada. Só toma cuidado pros hôme não te pegar. E se acontecer, oh, tu não me conhece, nem nunca me viu. Sabe o que acontece com X9, não sabe?

Garrincha engatilhou a arma, que trazia do lado, e disparou para o alto, prometendo atirar para valer da próxima vez. Dimas saiu da sede do movimento tão perturbado que não notou que dona Santana estava na porta de casa, esperando seu retorno. Pela manhã, da cama, ouviu a conversa da mãe, no ultrapassado aparelho celular, com uma das patroas.

- Hoje, infelizmente, não posso ir, dona Zélia. Não vou poder mesmo. A senhora vai desculpar. Não tá acontecendo nada comigo, não senhora. É coisa minha. Eu sei que seu filho, doutor Bartolomeu, vem do estrangeiro e a senhora precisa da casa em ordem. Ele é médico muito importante, faz tempo que não visita o Brasil, a senhora me falou. Mas, olha, conversa com a dona Alerte. Talvez seja melhor botar outra faxineira no meu lugar. Acho que não vou poder voltar tão cedo. Às vezes as coisas tomam um rumo que a gente não espera, dona Zélia. Desculpa o mau jeito, mas vou ter que desligar.

“O problema é meu, mãe. Deixa que eu resolvo”, Dimas ensaiou dizer. Não teve forças. Durante a infância, alimentava a fantasia de que de uma hora para outra alguém apareceria do nada e o resgataria da vida desgraçada que levava ao lado da mãe. Na adolescência, passou a imaginar que o pai, que nunca conhecera, era um milionário que surgiria do nada para abrir-lhe as portas de um mundo de riquezas e encantos. Mais tarde, entendeu que o pai idealizado jamais bateria à sua porta e que somente mudaria de vida por meio de algum plano mirabolante ou um golpe de sorte. E, pela primeira vez, considerou a possibilidade de entrar para o tráfico. No entanto, a vida marginal não interessava; queria grana, poder, mas também liberdade, visibilidade. Então, o pai que nunca deu as caras ou quis saber dele ganhou vida através do criador de um gado do Mato Grosso, chamado Paulo Otávio Capanema, transformando o favelado Dimas da Silva, em Dimas Capanema, herdeiro de inúmeras fazendas de gado.

Bom domingo e excelente semana.

Esperança, fé, amor e GRATIDÃO.

 

outubro 12, 2024

12 de outubro - pureza e santidade.

 Jesus disse que precisamos ter a pureza de uma criança para entrar no reino dos céus. Ao mesmo tempo, a igreja nos ensina que Maria, a mãe de Jesus, foi assunta aos céus, de corpo e alma. Neste dia 12 de outubro quando, no Brasil, celebramos o dia da padroeira, Nossa Senhora Aparecida, também comemoramos o dia das crianças. 

Nada mais justo, não é mesmo? Afinal de contas, a partir do ensinamento do mestre sabemos que a pureza das crianças as torna aptas para entrar no reino dos céus, para onde sua mãe fora levada em corpo e espírito.

Independente de qualquer coisa, é sempre tempo de investirmos em nossa pureza de alma, em buscar não nos tornar santos, mas, pelo menos, nos aproximar de algo que nos torne menos presos às coisas do mundo.

Nosso caminho no mundo pode ser menos árido se, em algum momento, pararmos para prestar atenção naquilo que realmente vale a pena, naquilo que toca os nossos corações de forma tal que nos transforme em agentes da paz e do amor que tanto necessitamos em nossos dias.

Ser criança não é agir de maneira ingênua ou descompromissada, pelo contrário, é ver o mundo e as pessoas que vivem ao nosso lado como parte de nós mesmos, como seres que merecem todo o bem e toda a graça.

Que nos aproximemos cada vez mais da criança que existe dentro de nós que, com certeza, nos levará a habitar os céus.

Bom final de semana.

Esperança, fé, amor e GRATIDÃO.


outubro 06, 2024

A mão invisível - 2° Capítulo.

Neste segundo capítulo do livro 'A mão invisível', Dimas, após sofrer mais uma decepção em sua busca por uma noiva rica, conhece Elisa e vê nela uma nova oportunidade de atingir seu objetivo.

 

Capítulo 2

 

O incômodo que Dimas (da Silva) sentia quando via PH rodeado de garotas, em parte, se dava pelo fato de acreditar que todas fossem filhas de milionários – aliás, ele pensava isso de praticamente toda garota da zona sul –, e também porque, tão logo acabava a curtição com o riquinho, elas simplesmente desapareciam da área e, consequentemente, de seu radar. Naquele momento, entretanto, o que realmente estava tirando-lhe o sono era a dívida que tinha com Manduca; usara todo o arsenal de desculpas de que dispunha, porém, diferentemente das outras vezes, não estava surtindo efeito.

- Não tem outro jeito, Manduca. – disse Jana – A gente vai ter de acionar o Valdomiro.

- Acha mesmo necessário? – reagiu Manduca – Não é precipitado, não?

Acionar o Valdomiro, figura que estava sempre por ali, sob o disfarce de mero banhista, significava encrenca à vista. Afinal de contas, não era novidade para ninguém que toda vez que surgiam problemas entre donos de quiosques e fregueses, ou quem quer que fosse, Valdo, como era mais conhecido, aparecesse, acompanhado de seu grupo, para ‘resolver’ a parada. A cara de poucos amigos, emoldurada pelo peitoral, naturalmente avantajado, a barriga proeminente e a sunga vermelha, sua marca registrada, que se destacava na pele retinta, o cabelo oxigenado, somados a voz rouca e os chamativos óculos espelhados, compunham a imagem que metia medo por si só.

- O garoto vai resolver a parada antes disso, Jana. – disse Manduca, com ar preocupado – Ele não é louco de faltar com a palavra.

Desconfiado de que o tempo fechasse, Dimas tratou de desaparecer não somente do quiosque, mas da praia e arredores. Somente uns quinze dias depois, ele retornou. Para todos os efeitos, no entanto, a ausência se deu devido a uma viagem de emergência que fizera para casa dos pais, no Mato Grosso.

- Desculpa aí. Não tive tempo nem cabeça pra avisar. Um chamado da família... Nunca se sabe, né? Mas graças a Deus, agora tá tudo bem.

- E a minha grana? – perguntou Manduca, pouco interessado em fofoca de família – A tolerância chegou ao fim, companheiro. Se não trouxe a grana, sinto muito, mas o Valdo vai entrar em ação. Liga pra ele, Jana. Diz que é aquele assunto que a gente já...

Jana pegou o aparelho celular no bolso do avental, porém, antes que completasse a ligação, viu o freguês inadimplente colocar o pacote que trazia consigo sobre o balcão do quiosque.

- Aqui tá o pagamento. – disse Dimas.

Em seguida, ele apresentou um relógio de bolso, modelo antigo, preso a uma corrente dourada,

- Essa joia pertenceu ao meu bisavô, depois ao meu avô, que passou pro meu pai, que acabou de passar pra mim. Tá na família há várias gerações. Peça única. Vale uma nota preta. Minha avó paterna conta que a avó dela garantia que foi Dom Pedro II que deu de presente para o bisavô dela. Só pra ter uma ideia da importância da peça. Ah, ia me esquecendo, a corrente é ouro puro.

- E o que isso tem a ver com a tua dívida? – perguntou Jana.

- Tudo a ver, dona Jana. Quero que fiquem com essa, joia pra saldar meu débito. Apesar de tudo o que representa pra mim, meu pai e toda a minha família.

- Isso é ouro de verdade? – perguntou Jana.

- É o que minha avó diz, dona Jana. Seja como for, pode estar certa de que ele vale, pelo menos, umas cem vezes o valor da minha dívida na barraca. Mas fique claro que é só um empenho que tô fazendo. Acima de tudo, este relógio tem valor sentimental, sabe? Tão logo o velho negocie um lote de bois e libere uma grana, eu vou pegar de volta. Aliás, ele nem pode sonhar que empenhei essa relíquia. Na verdade, o velho acha que o relógio tá bem seguro no cofre da fazenda.

Valdomiro chegou ao quiosque, com seu séquito, despertando a atenção de todos. Tão logo viu o relógio, o ‘leão de chácara’ esqueceu as ameaças e cresceu os olhos.

- Vamo fazer um rolo. – ele disse a Dimas num à parte – Quanto tu quer?

Jana percebeu o interesse de Valdo e se adiantou:

- Se o relógio é tão valioso, Manduca, então a gente...

- A gente aceita, né, Jana? – confirmou Manduca – Mas, veja bem, se não morrer na grana logo, passo adiante. O Valdo tá interessado, não é Valdo?

Livre da pressão, Dimas retomou a caçada. No entanto, o sempre bem informado Demétrio não tinha boas notícias: PH acabara de apresentar Elisa à família.

- Todo mundo ficou deslumbrado. O que não me surpreende. Elisa é um encanto de garota. E do jeito que as coisas estão indo o casamento é questão de tempo. Mas tô arrasado, sabe? Nunca pensei que o PH faria isso comigo. Só não corto os pulsos porque a garota é linda. Linda nada, ela é deslumbrante. Não acha?

- Sei lá. Nem conheço direito. – disfarçou Dimas.

- Azar o seu. Perdeu o momento em que o casal sensação firmou compromisso, num luau animadíssimo, aqui na praia. Foi um escândalo.

- A família da garota veio?

- Família!? Não tem ‘família’, apenas o pai e a mãe, que estão fazendo um tour pela Europa, não tá sabendo? É filha única, a sortuda.

“Filha única!”, repetiu Dimas, em pensamento; o fato de os pais da garota, de quem sabia apenas o primeiro nome, estarem viajando pela Europa, somado ao fato de ser filha única, só fez aumentar o interesse. Não havia mais dúvida de que Elisa possuía todos os requisitos para ser a esposa que procurava.

- E o casamento? – ele sondou – Tem ideia de quando vai ser?

- Elisa faz questão de casar somente na presença dos pais; quer uma grande festa. O problema é que os pais não voltam tão cedo. A mãe deve aproveitar a viagem pra fazer um tratamento de saúde. Tratamento esse que eu desconfio seja, na verdade, uma levantada básica.

Enquanto Demétrio falava, a bandeiras despregadas, Dimas planejava: PH, volúvel como ninguém, logo se ligaria em outra garota e deixaria o caminho livre. No mais, torcia para que o tratamento da mãe da garota levasse tempo suficiente para que pudesse melar o namoro. O único senão era que por mais que se esforçasse a garota continuava ignorando sua pessoa. Foi então que, estrategicamente, ele grudou em Demétrio; acreditava que dessa forma se aproximaria da garota.

- Legal seu lance com o Demétrio. – Elisa comentou certo dia – Tão juntos há muito tempo?

- Qual é? Nada a ver. – Dimas reagiu ao notar que o ‘tiro havia saído pela culatra’ – A gente é só amigos. Não que eu tenha preconceito. Apesar de ter sido criado no interior do Mato Grosso, sou liberal. Acho que cada deve viver do jeito que quer. Mas, espera aí, sou espada, cara.

O desapontamento, porém, trouxe certa satisfação; independente de qualquer coisa, a garota notara sua presença. Desfeito o mal entendido, estabeleceu-se alguma intimidade entre eles. A proximidade despertou ciúmes em PH, um incentivo para que se tornasse presença constante em todos os lugares frequentados pelo casal.

- Para me de secar, cara. – reclamou Elisa – Não sai do meu pé.

- O que eu posso fazer? Você me deixa louco. Penso em você o tempo todo. Acho até que... – defendeu-se Dimas – E depois o PH tá noutra, não notou?

Num canto da sala, munido do inseparável violão, o riquinho dedilhava uma música, rodeado de garotas. A perturbação de Elisa diante da cena deixou claro para Dimas que a relação não andava bem. Razão mais que suficiente para que intensificasse ainda mais o assédio. A garota mordeu a isca e, em pouco tempo, nasceu um ‘rolo’, que se transformaria num relacionamento secreto. Os encontros, porém, não satisfizeram Dimas. “Sem essa de ser o ‘outro’. Meu lance é casamento, preto no branco”, ele pensou.

- A parada com o PH é pra casamento, não é? Por isso não, eu também caso contigo, até agora mesmo se quiser. Bora pra um cartório. A gente é maior de idade. Nada impede.

- Você é louco? – reagiu Elisa – Ninguém casa assim. Pra viver de quê? Morar onde?

- Na cobertura de seus velhos, ora. Não vive reclamando de solidão? Pensa comigo: a gente fica morando na cobertura de seus pais até eles voltarem da Europa. Nesse tempo, eu me entendo com meu velho e a grana volta a cair na minha conta. Garanto que ele vai ficar superfeliz quando souber que resolvi virar um homem sério. Além disso, a família toda vai te adorar. Não tenho dúvida que seu Paulo vai comprar uma big cobertura pra gente, como presente de casamento. É claro que eu faço questão que seja na Vieira Souto, pra você ficar perto de seus pais. E então? Topa?

Despeito de todo esforço, Elisa não abriu mão do noivado com PH. Dimas, então, entendeu que seria necessário buscar um meio mais eficiente de tirar o rival do caminho, sobretudo depois que Elisa revelou o desejo de se mudar para a casa dele. “Elisa tem algum interesse em manter esse relacionamento que não tô atinando qual seja”, ele especulou, depois de, em vão, tentar fazê-la desistir da mudança. Com isso, os encontros, antes frequentes, praticamente deixaram de acontecer; Elisa alegava dificuldades para se livrar da marcação cerrada dos sogros, dos cunhadinhos, até mesmo dos empregados da casa e, claro, do noivinho apaixonado.

Sentindo que estava perdendo a chance de conquistar a milionária, Dimas viu que era necessário agir. Depois de muita maquinação, surgiu a ideia que lhe pareceu perfeita: atrair PH para uma emboscada. Na verdade, seria um assalto simulado, onde o rival levaria um tiro fatal. Afinal, estava pronto para o tudo ou nada.

Durante a caminhada por Copacabana, dias depois, ao passar diante de uma banca de jornal, uma manchete chamou atenção: “O empresário Pedro Henrique Soares Alves foi despertado por volta das seis horas desta manhã com agentes da Polícia Federal em sua porta. Os policiais cumpriam um mandado de busca e apreensão, em mais uma rodada da operação deflagrada com o objetivo de apurar evidências de superfaturamento em obras do governo. O empresário é suspeito de fazer parte da quadrilha que vem fraudando os cofres públicos. Fontes dão conta de que no apartamento foram encontrados indícios que compravam os crimes”.

A reportagem, que se encerrava informando que o empresário fora levado preso pelos agentes, poderia ter passado despercebida, pois se tratava de mais um escândalo de corrupção, envolvendo políticos e empresários, tão comuns no Brasil, não fosse o preso da vez ninguém menos que o pai de PH, seu empecilho na conquista de Elisa. Passado o efeito surpresa, Dimas tentou mensurar o terremoto que a notícia provocaria. Não foi difícil intuir que acabara de encontrar o melhor meio de se livrar do rival; seria mais que óbvio que Elisa, assim que tivesse conhecimento do escândalo, poria fim ao noivado. Ainda que não fosse por si seria pelos pais que, com certeza, não aceitariam vê-la unida ao filho de um corrupto, publicamente denunciado.

Quando retomou a caminhada, Dimas assobiava, cantava, enfim, não cabia em si de contentamento; o destino resolvera seu problema, sem que precisasse se comprometer.

- Tá todo mundo chocado com a notícia. – disse Pedrão assim que viu Dimas – Maior vacilo do velho do PH, não é não? O lado bom de tudo é que a Elisa tá firme do lado do PH.

O semblante de Dimas, antes reluzente de felicidade, murchou, como flor em dia de sol escaldante; não podia conceber que Elisa continuasse metida na casa de PH, depois de tudo.

- O que tá fazendo aí? – ele cobrou – Sai daí antes que seus pais tomem conhecimento dessa patifaria, Elisa. Gente como nós não se mete com ladrão, mesmo que seja do colarinho branco.

Os argumentos de nada valeram; Elisa encerrou a ligação decidida a permanecer ao lado noivo que, segundo suas palavras, precisava de apoio.

Em casa, Dimas encontrou a mãe desesperada: a caixa que, por anos, guardou nos fundos do guarda-roupa simplesmente desaparecera.

- Caixa, guarda-roupa... Não sei do que tá falando, sua louca. Além do mais, o que eu faria com uma caixa que não vale nada?

Abadia não revelou detalhes sobre o conteúdo da caixa, ou mesmo que, muitas vezes, teve necessidade de se desfazer dela, porém, não teve coragem. “Sem o relógio, tudo se apaga. É como se o que vivi não tivesse passado de um sonho”, ela pensou.

- Fala, escrota. – continuou Dimas, impaciente diante do silêncio da mãe – Abre o jogo. Por que a caixa era tão importante? O que tinha dentro dela? Presentinho de algum amante, velha assanhada?

- Não é isso, filho. Uma patroa mandou jogar no lixo, mas achei bonita e resolvi guardar. Mas não tem a menor importância. Vai ver joguei fora e esqueci. Acho que foi isso.

Dimas sabia que a mãe era cheia de esquisitices, no entanto, vê-la tão perturbada o levou a pensar que o relógio tivesse pertencido ao pai, que nunca conheceu. A ideia de ter um pai nunca foi de fato considerada. Antes, sempre fora descartada, pois acreditava que certamente seria uma figura tão desprezível quanto a mãe. “Nem vale a pena pensar nessa hipótese. Sem dúvida, é um miserável, um indigente que vive pelos becos de alguma favela, arrastando um corpo doente”, ele pensou, mantendo os olhos fixados na mãe, que permanecia à sua frente. Por vezes, até tinha vontade de ser um filho que, em vez de exigir o que mãe não podia lhe dar, que cuidasse dela, que a livrasse de arrastar o corpo frágil pelos becos e ladeiras do morro, sempre a caminho das exaustivas faxinas. Porém, a revolta o dominava a cada dia mais, superando qualquer possibilidade de afeição.

Mais tarde, completamente esquecido do estorvo que recebera como mãe, Dimas se voltou para a questão que estava tirando-lhe o sono: a insistência de Elisa em manter o relacionamento com PH, mesmo depois que o pai do rapaz fora preso, acusado de corrupção. Nenhuma argumentação era convincente bastante para fazer a garota mudar de ideia. Quando apelou para os pais, a resposta que ouviu foi que eles não tinham o hábito de fazer julgamentos precipitados. “Por enquanto, são apenas meras acusações”, teria dito o pai, certo de que tudo não passava de um mal entendido.

Como fazia nos momentos de crise, Dimas tomou o caminho da sede do movimento. Mais uma vez, ele relevou a Garrincha ter encontrado a garota que o livraria da pobreza.

- Então, qual é o grilo? – disse Garrincha – Casa com a moça e vai desfrutar da vida boa, camarada. Seja feliz. O que tá esperando?

- Que um babaca saia do meu caminho.

Depois um tempo, ele completou:

- Não preciso dizer que conto com o mano pra isso, não é?

- Qual é, cara? Que papo doido é esse? Tá me tirando, é? Eu apenas comercializo entorpecente, não sou matador de aluguel.

- Não é bem apagar o cara que eu pretendo. Tenho um plano. Ouve isso: eu planto uma muamba na mochila do cara, aviso a cana, que vai, dá o flagrante, e enquadra. Sacou? Simples assim. Sem morte, sem complicação.

- E, pelo que entendi, tu quer que eu forneça a ‘mercadoria’ do flagrante. Acertei?

- Justamente.

O olhar de Garrincha, subitamente, ganhou um brilho diferente: ainda não sabia como, mas algo dizia que ali estava a oportunidade que sempre buscou para arrebanhar o amigo de infância para o tráfico.

- Tu sabe que bagulho não dá em árvore, né? – ele disse – Esclarece aí: quem vai morrer na grana? O playboy é que não vai ser, né?

- Aí é que tá o lance. Pago quando casar com a ricaça. Não vai demorar, garanto. A gata já tá na minha. Dessa vez não falha.

- Sei não, cara. Esse tipo de coisa tem muita implicação. E se der errado? Não posso me arriscar numa loucura com pouca chance de dar certo.

- Em nome da nossa velha amizade, cara. – apelou Dimas – A gente se conhece desde criança. Sabe que não vou dar furo contigo.

- Vai lá. – disse Garrincha, depois de simular que estava pensando seriamente no assunto – Mas tem uma condição. Aliás, duas condições. A primeira é que não quero meu nome envolvido e, a segunda, se o plano falhar ou a mercadoria extraviar, o pagamento só pode ser feito com trabalho na boca. Ou seja, tu vem trabalhar aqui. Tamo entendido?

Confiante no sucesso do plano, Dimas concordaria com aquelas e quaisquer outras condições que Garrincha impusesse; o que interessava era tirar PH do caminho, nada mais.

- Quando eu pego a mercadoria? – ele perguntou, com incontida euforia.

- Calma! Vou precisar de um tempo. Uma semana, pelo menos. Tô esperando um carregamento pra esses dias, se nada falhar. A repressão tá endurecendo cada vez mais, tá ligado? Todo cuidado ainda é pouco.

Enquanto esperou pela ‘mercadoria’, Dimas continuou frequentando a praia do Leblon. Elisa não apareceu por lá, nem atendeu aos seus insistentes telefonemas, o que fez com que o desejo de eliminar o rival aumentasse consideravelmente.

- Elisa praticamente já faz parte da família do PH. O casamento ainda não rolou porque PH-pai continua preso. Assim que resolverem essa parada...

O comentário de Pedrão reforçou a urgência da execução do plano. Para que isso acontecesse, porém, o rival precisava aparecer na praia. Só assim poderia armar o flagrante. A possibilidade de plantar a droga em sua casa chegou a ser considerada, mas foi abandonada; acabaria levantando suspeita.

Quase um mês se passou sem que o casal desse as caras na praia. O sumiço deixava claro que o relacionamento seguia firme. “Perdeu, malandro! Desiste e parte pra outra”, Dimas se aconselhou; não era a primeira vez que se via obrigado a desistir de uma garota. Dessa vez, entretanto, sentia que fosse algo mais que o simples desejo de se dar bem; Elisa não representava somente uma ponte para uma vida melhor. Na verdade, estava gamado de um jeito que nunca estivera por nenhuma outra garota. A constatação o deixou, mais que assustado, mortificado; não fazia parte dos planos se apaixonar. A esposa milionária seria mero trampolim para atingir as altas esferas da sociedade, nada mais que isso. Uma vez casado, tiraria o máximo que pudesse da garota, dos pais e de quem mais estivesse dando sopa por perto. Então, pularia fora. “O casamento é um negócio. Essa garota não pode estragar meus planos. Não pode”, ele murmurou alheio ao papo que rolava solto entre Suzana, Larissa e Jane, em rara aparição. As três, em momentos distintos, foram seus alvos. Jane, das três, era a única que ele ainda tinha esperança de levar para o altar. Não por acaso, a mais rica das três. Infelizmente, a tatuadora insistia em morar num barraco, no Vidigal, como se fosse uma pessoa comum, recusando a montanha de dinheiro do pai. “Pensando bem, não custa tentar mais pouco”, ele pensou. E, num esforço para se livrar do fantasma de Elisa, ele se preparou para mais uma investida sobre Jane. No final do dia, em vez de ir para casa, tomou o caminho do Vidigal, e por lá acabou ficando.

- Tava pensando aqui, amor. A gente tá morando junto há um tempo e eu nem conheço sua família. Sabe como é, sou do interior... Lá não é como aqui. A gente faz questão de conhecer a família da namorada, pedir a permissão do pai... Queria fazer a coisa certa, tá ligada? Quando vai me apresentar pra família?

- Deixa minha família fora disso, por favor. – disse Jane, evitando o assunto a qualquer custo.

No entanto, obstinado a se aproximar da família da namorada, sobretudo do futuro sogro, Dimas vestiu a melhor beca que tinha e foi até a casa, uma bela mansão, no Alto da Boa Vista. Somente depois de enfrentar uma verdadeira barreira humana, ele conseguiu ser recebido. Para sua surpresa, o pai da garota se mostrou feliz de saber que a filha estava namorando um rapaz ajuizado, preocupado em conhecer sua família.

- Foi Janinha que te mandou me procurar? – o empresário perguntou.

- Sim e não. – Dimas gaguejou – Ela ainda tá meio sem jeito. Sabe como é...

- Sei sim. Minha filha é cabeça-dura. Saiu a mim. Não nego. Também não sou fácil. Cadê ela? Não veio com você?

Desejoso de ter a filha de volta a casa, o empresário Alaor Cavalcante agarrou a oportunidade de reaproximação. E, sem desconfiar das intenções do futuro genro, abriu-lhe as portas da casa e do coração. Dimas se deslumbrou com tudo: a mansão, os carros, os frigoríficos e seus escritórios, centenas de empregados, prontos para servi-lo tão logo oficializasse a união com a herdeira, e mais o que não viu, mas sabia que existia: tudo seria seu, bastava convencer Jane a conviver pacificamente com o pai e, claro, aceitar seu precioso dinheirinho.

Há meses sem notícias, Abadia – após perambular à sua procura pelas ruas de Ipanema e Leblon, como fazia quando ele, criança, sumia de casa – temia que o pior tivesse acontecido.

- Meu Dimas nunca ficou tanto tempo sem dar notícia, dona Santana. – ela desabafou com a vizinha – Tô muito preocupada.

- Vazo ruim não quebra, mulher. E notícia ruim voa. Se tivesse acontecendo alguma desgraça a gente já sabia. Não se aperreia. Dimas tá é de desfrute com alguma moça rica da zona sul. Vai por mim. Mas se é pra te aliviar seu coração, eu mando os meninos dar uma averiguada por aí. Aliás, eu vou mandar logo dar olhada no IML. Não que eu teja agourando o menino. Nunca se sabe, não é?

A conversa das vizinhas foi interrompida pela chegada repentina de Pelado, garoto que, após ser abandonado pela mãe, fora criado pelas vielas do morro de onde, naturalmente, acabou capturado pelo tráfico.

- Que qui quer aqui, muleque? – adiantou-se dona Santana – Toma seu rumo. Coisa feia ficar ouvindo conversa.

- Garrincha mandou dizer que o negócio do Dimas tá esperando por ele lá no movimento, dona Badia. É pra ele ir buscar. – disse o garoto, desaparecendo em seguida.

- Que tipo de negócio teu filho tem com essa gente? – indagou dona Santana.

Abadia não soube o que responder.

Enquanto isso, acreditando estar praticando uma boa ação, Dimas chegava ao barraco-estúdio de tatuagem de Jane, na companhia do futuro sogro. 

- Fora daqui. – disse Jane, assim que viu o pai entrar em casa, acompanhado do namorado – Fora da minha casa, os dois.

Diante da violenta reação de Jane, não restou outra saída para o caça-dotes senão voltar para o único lugar que de fato tinha na vida, a casa da mãe. 

- Por onde andou, filho? Por que ficou tanto tempo sem dar notícia? Não faz ideia de quanta coisa ruim passou pela minha cabeça. – disse a mãe – Parece tão magro. Tem se alimentado direito? Senta aí. O que quer comer? Diz que eu faço num minuto.

O arremedo de filho-pródigo não se deu ao trabalho de justificar a longa ausência. Na cabeça martelava o fato de ter, pela segunda vez, perdido a chance de levar Jane para o altar.

A fossa foi grande. Não exatamente por Jane, mas por Elisa; não tinha como negar que a garota conquistara seu coração de tal maneira que não mais se sentia motivado a procurar candidatas nas quais vislumbrasse a possibilidade de realizar seu intento de subir na vida.

- Garrincha deixou aí esse pacote. – disse Abadia fazendo as recomendações de sempre, ou seja, que o filho não devia se envolver com a gente do tráfico, pois sabia muito bem no que ia dar – Não esquece o que aconteceu com o Vaguinho...

Dimas deixou a mãe falando sozinha e correu para a sede o movimento, aonde chegou pagando para o amigo de infância.

- Qual é, meu? Tá me tirando de otário? – reagiu Garrincha – Baixa a bola! Acha que tenho todo o tempo do mundo? Não esqueça que eu cedi a mercadoria com a condição de, se a parada desse errado, tu trabalhar comigo. E, pelo jeito, deu ruim, não deu?

- Não é bem isso. Tive uns contratempos. O pai do cara, acredite se quiser, foi preso nesse negócio aí de crime do colarinho branco. Deu no jornal e tudo. Aí, o maluco vazou da praia. Tá morto de vergonha do lance do pai. Até porque, a galera não perdoa. Cai em cima sem dó nem piedade. Daí, eu não tive como executar o plano, tá ligado?

- Tenho nada a ver com isso. Pra mim, vale o combinado. E combinado não sai caro.

- Alivia aí, irmão. O que eu vou fazer com a mercadoria?

- Dá seus pulos, se vira.  A mercadoria de volta, eu não aceito. Se não vai mais foder com a vida do riquinho, bom pra ele. Mas pensa no lado bom da coisa. Agora tu tem material pra fazer uma grana. E, veja bem, sem precisar dessa babaquice que é azarar gatinha rica.

- Pela nossa amizade, Sinval. Sabe que vida de traficante não tem nada a ver comigo e nem contigo, que eu sei muito bem. Seu lance era fazer carreira no exército, lembra?  E eu quero ser bacana, viver nas altas rodas. Tráfico tá fora de questão.

- Não tem esse papo de Sinval, exército, porra nenhuma. Sou o Garrincha, traficante, sujeito homem. E me orgulho disso pra caramba. E isso aqui é quebrada de morro, não é prainha de playboy não!  Se não arrumar a grana, vai rodar. Tenho dito. – decretou Garrincha.

 

Bom domingo e excelente semana.

Esperança, fé, amor e GRATIDÃO.