Enredado por suas mentiras, Dimas acaba provando do próprio veneno.
Capítulo 4
Dimas
da Silva pegava a condução no pé do morro, juntamente com a ‘gentalha desprezível’
– como ele fazia questão de verbalizar –, porém, quem descia em Copacabana era
Dimas Capanema. Como tal, ele caminhava pelo calçadão, passava pelo Arpoador e
chegava ao Leblon. Naquele dia, a turma, ou que restava dela, estava reunida na
areia: Larissa, estendida ao sol, estava acompanhada de um gringo, de dois
metros de altura; Pedrão, como de costume, tirava um cochilo; Demétrio e Lucas,
cada vez mais íntimos, trocavam figurinhas com Suzana, que estava ali para
lembrar os amigos que o casamento se realizaria nos próximos dias. Lá pelas
tantas, Jane, num raro momento de folga – o trabalho de tatuadora tomava-lhe quase
todo o tempo – apareceu com um ‘amigo’ que, muito provavelmente, não via
problema em morar no morro do Vidigal; PH não era mais visto na praia, nem pelas
redondezas, sinal claro de que se conformara com o fim do relacionamento com
Elisa e, de quebra, aceitara a nova condição social.
-
Após a cerimônia, na igreja de Nossa Senhora do Bonsucesso, a recepção será no
Iate Clube. Agora preciso ir, meus amores. Os preparativos do casamento estão
me deixando louca. – disse Suzana, ao se despedir da turma.
-
Encontrei Elisa um dia desses. – disse Demétrio, após a saída de Suzana – Como
eu desconfiava, ela foi pedir colo em Ibiza. O fim do noivado mexeu muito com minha
amiga.
Dimas
fingiu desinteresse, mas ouviu com atenção o colega dar os detalhes do
reencontro. A satisfação de saber que Elisa estava de volta ao Rio, entretanto,
se contrastou com a desagradável surpresa de encontrar, mais uma vez, Garrincha,
escarrapachado no sofá de casa.
-
O que quer aqui? Como entrou?
-
Boa noite pra tu também. Dona Badia não te deu educação, não? Vim saber como
foi o dia de trabalho. Fala tu. Vendeu tudo? Podemos fazer o acerto?
-
Não teve dia de trabalho nenhum.
-
Tu não tá colaborando, mano. Papo reto. Assim, vou ter de rever o nosso acordo.
A partir de hoje, a cozinheira passa a morar de vez na sede do movimento. Tu vai
ficar sem a mamãezinha, malandro. Só bota os olhos nela quando resolver fazer o
que tem de ser feito. Isso, por hora. Porque o bagulho pode ficar mais doido
ainda.
Dona
Santana estava na porta de casa, na companhia dos três filhos, quando, algum
tempo depois, Garrincha deixou o barraco.
-
Boa noite, dona Santana! – o traficante disse ao avistar a baiana – Como tem
passado vossa ilustre pessoa?
A
vizinha de Abadia deu de ombros. Embora contrariado, Garrincha seguiu seu
caminho. Dentro do barraco, Dimas ainda se refazia do golpe. Num repente, como
se tomasse uma decisão, há muito tempo protelada, ele caminhou até o velho
fogão a gás, abriu a emperrada porta do forno, tirou de lá o pacote de drogas,
e espalhou seu conteúdo sobre a mesa. Em seguida, separou as trouxinhas de
maconha e os saquinhos de cocaína em duas partes. Depois, colocou uma parte de
cada na mochila, que pegou no quarto, e as outras, devolveu ao pacote, que
devolveu ao forno.
-
Finalmente, o mar desistiu de lutar contra o rochedo. – disse dona Santana ao
ver o filho da vizinha passar pela porta de casa – Já não era sem tempo.
-
O que a mãe quer dizer com isso? – perguntou o filho mais moço.
-
Nada, menino. Não se mete nos meus assuntos. E vamos nos recolher. Não tem mais
nada de interessante pra se ver aqui hoje. – ela disse.
Depois,
ordenou aos filhos que a carregassem para o interior da casa, com cadeira e
tudo, como se fosse uma inválida.
-
Cuidado com isso, meninos! Tão querendo me derrubar? – ela reclamou.
Mochila
às costas, Dimas chegou ao Leblon. Não sabia exatamente o que fazer, nem por
onde começar. O tempo passou e nada. Somente a lembrança das ameaças de
Garrincha impedia que fizesse o caminho de volta para casa. Já era madrugada
quando conseguiu passar a primeira trouxinha de maconha. A partir daí, se viu
invadido pela sensação, até então desconhecida, de colocar dinheiro no bolso,
fruto do próprio esforço.
-
Bom dia! – saudou dona Santana, na janela de casa àquela hora da manhã – Ou
seria ‘boa noite’?
Dimas
jamais poderia afirmar se ouviu a vizinha dizer as palavras ou se foi delírio; depois
de passar a noite andando de um lado para o outro, não tinha mais certeza de
nada. Em casa, ele se que jogou sobre a cama, cuja dureza, desta vez, não
incomodou tanto, e vislumbrou o espaço. O barraco, caindo aos pedaços, o calor
provocado pelo sol forte que entrava pelas muitas frestas (além de alguns furos
de bala) da parede, nada pareceu incomodar. Então, adormeceu como um
trabalhador, após uma noite de labuta.
Já
era noite quando se preparou para voltar ao campo de batalha. Na saída, dona
Santana, sentada na cadeira de balanço, fez um aceno, que respondeu
amistosamente. Ao caminhar pelas ruas do Baixo Leblon notou que seus passos não
eram titubeantes e medrosos como os da noite anterior, mas firmes e decididos.
-
Taí, fiz o prometido. – disse atirando a mochila aos pés de Garrincha – A grana
tá aí. Não te devo mais nada. Agora, libera minha mãe.
-
Espera aí. – disse Garrincha mal disfarçando a surpresa – Calma! Vamos
conversar. Primeiramente, devo dizer que tô muito orgulhoso. Tu bateu um bolão,
camarada. Parabéns!
-
Dispenso elogios. Só fiz isso pra me livrar das suas ameaças.
-
Ei, pra quê essa revolta toda, mano? Mais amor no coração. Escuta só... Vou até
fazer um troço de irmão contigo. Irmão nada, de pai pra filho. O pai que tu
nunca teve. Veja bem, vou te dar essa grana, como um bônus. Em troca, tu pega
mais um pouco de mercadoria pra vender pros playboys. Só mais uma vez e nunca
mais eu toco no assunto. Combinado? Assim, eu te favoreço e tu... Que me diz?
Ao
deixar a sede do movimento, dinheiro no bolso e nova mercadoria na mochila, Dimas
se sentia tão confiante que caminhou pelas vielas do morro cumprimentando, com
simpatia e bom humor, a todos que encontrou.
Embora
a nova vida impusesse hábitos extremamente noturnos ao filho, longe de ficar
preocupada, Abadia viu a mudança de rotina como algo positivo.
-
Graças à minha santinha, meu menino botou a cabeça no lugar. Ele não diz, mas
tô desconfiada de que arranjou emprego. Sai toda noite, na mesma hora, e volta
de manhazinha, com cara de cansado, cheio de fome. – confidenciou à vizinha –
Só fico cabreira dele passar a noite inteira fora de casa. Essa cidade é muito
perigosa. Ainda mais de noite, né?
-
A cidade é muito perigosa mesmo. – disse dona Santana – Nove ou dez horas, no
máximo, boto meus meninos pra dormir.
Numa
folga do ‘trabalho’, Dimas foi ao encontro de Larissa, Lucas, Demétrio e Pedrão,
que não via há algum tempo. Jane, segundo ele soube, estava às voltas com a
clientela no ateliê de tatuagem e o namorado; Suzana fora viver com o marido,
em São João do Meriti, na Baixada Fluminense.
-
PH e Suzana viraram cidadãos da Baixada Fluminense. – comentou Demétrio.
-
Tá todo mundo indo pra essa Baixada. Que tem de bom por lá, hein?
A
indagação de Pedrão levou a turma a discutir seriamente o fenômeno. Entretanto,
a preocupação de Dimas era arranjar um meio de penetrar na casa de Elisa. Os
dois voltaram a se relacionar, nos moldes de antes, após um encontro casual no
Baixo Leblon. Em sua imaginação, a garota vivia numa cobertura na Vieira Souto,
com vista para o mar, de, no mínimo, mil metros quadrados.
-
De repente, eu poderia passar uns tempos na sua casa. Pra te fazer companhia,
claro. Que tal?
-
Sei lá, cara. Meus pais podem não gostar. Além disso, os empregados fazem
fofoca. Sabe como é essa gente, adora se meter na minha dos patrões. A última coisa
que quero é ficar mal com meus pais. A confiança deles é tudo pra mim.
Dimas
não acreditava que os futuros sogros fossem conservadores ao ponto de proibir a
filha de receber o namorado em casa, principalmente levando em conta que frequentara
as casas de Larissa e Suzana, logo que começaram a sair, sem o menor problema.
Não frequentou a casa de Jane porque ela não se dava com o pai. Também andou
pelas casas de Lucas e PH. Na casa de PH, por exemplo, ficou por quase seis meses,
com a desculpa de que seu fictício apartamento estava em obras. Obra que nunca
chegava ao fim: uma hora foi embargada pelo síndico, outra, o projeto da
reforma precisou ser refeito, noutra, o pedreiro desapareceu e como o pai, um
matuto, pagou a obra adiantadamente, o jeito foi esperar o profissional reaparecer.
Não lembrava mais de quantas invencionices lançou mão. A casa de Pedrão não
frequentou, nem fez questão; o dorminhoco vivia num bagunçado quarto e sala, em
Copacabana, onde a família o instalara, para ter um pouco de sossego.
-
Teu flat é na Garcia D’Ávila, não é?
-
Não tô morando mais lá. – disse tomado de surpresa – Mudei pra Atlântica. O
velho continua regulando a grana. Ando precisando fazer uma economia braba. Dá
pra acreditar? Aquele monte de cabeça de gado e eu...
Dimas
calou subitamente e assim permaneceu.
-
Por que a gente não vai pra tua casa? – perguntou Elisa depois de um tempo –
Pelo menos, deve ser melhor que este motel fuleiro.
-
Pô, tô lá de passagem. Tá tudo muito bagunçado. Quando eu mudar pra um hotel
melhor ou alugar um apê legal, te levo lá, combinado? Por enquanto, a gente vai
ter de se encontrar desse jeito mesmo, embora não seja o lugar ideal pra uma
garota do seu nível.
-
Quanto a isso, não me importo. Qualquer lugar é melhor que ficar sozinha
naquela cobertura...
A
menção da palavra cobertura soou como música para os ouvidos de Dimas; era a confirmação
que precisava. “Só gente muito rica mora em cobertura na Vieira Souto”, ele
pensou.
A
partir daí, não poupou esforços para agradar a herdeira. Quando o dinheiro da
venda da droga não foi mais suficiente, passou a tomar empréstimos com
Garrincha. “Quem sabe seja a hora de me tornar o chefe do morro, o dono de
tudo?”, ele murmurou embalado pela necessidade de ganhar mais grana. Se Garrincha,
um perfeito idiota, se tornou o chefe do morro, por que ele não poderia? Depois
de algum tempo atuando no Baixo Leblon, contava com respeitável clientela, o
que fortalecia a ideia de que pudesse de fato trabalhar por conta própria. O
problema era o capital para investir. “Onde e com quem arranjar grana?”, ele se
perguntava. O nome de Elisa passou pela sua mente, porém, foi logo descartado;
uma garota de família não se envolveria com o tráfico. “Tem nada a ver. Garota
fina, bem-nascida...”, pensou.
-
Tem muito filhinho de papai entrando de cabeça no ramo dos entorpecentes... –
ele arriscou, displicentemente, na primeira oportunidade – Tipo investimento pra
descolar a própria grana e se livrar da dependência dos velhos, tá ligada? Na
verdade, não sei direito. Só ouvi dizer. Mas acho que é meio essa coisa de
empreendedorismo. Não entendo bem.
-
Tipo vender droga, ou seja, fazer tráfico? – reagiu Elisa – Que loucura, cara! Isso
é crime. Dá cadeia e tudo.
-
Gente como a gente não vai presa. No máximo, passa um ou dois dias detido numa
delegacia, com ar refrigerado e tudo. Prisão é pra pobre, não é pra gente como
nós.
-
Nesse ponto, tem razão.
-
Quer dizer que toparia entrar num negócio desses? Quer dizer, numa suposição...
Papo de doido, né? Mesmo porque um negócio desses envolve muita grana. Se o meu
velho não fosse tão munheca, não regulasse tanto... Já o seu pai não impõe
condições pra liberar grana, como o meu, eu acho.
-
Ei, deixa meu pai fora disso.
-
Pô, foi mal. Mas, se fosse o caso, o negócio te interessaria?
-
A única coisa que posso dizer é que, apesar de ter pai rico, quero ganhar minha
própria grana.
-
Quem não quer, não é? Pena que precisa de capital. Não sei ao certo, mas acho
que não é pouco não. Até porque, embora seja lucrativo, é um negócio bastante
arriscado. Tem a concorrência, a repressão da polícia... Não fosse isso, eu
entrava de cabeça. E o mundo que se danasse, entendeu? Quer saber? Não tô
descartando nenhuma possibilidade. Seu Paulo Otávio tá determinado a liberar
grana somente quando eu for trabalhar com ele nas fazendas. E isso tá
totalmente fora de cogitação. Não pretendo deixar minha gata (ele deu um beijo
apaixonado em Elisa), essa cidade maravilhosa e tudo mais pra me entocar no
meio do mato. Aí, a saída é arrumar um meio de não depender do velho.
-
Existem outras maneiras de descolar uma grana. Um assalto, por exemplo. Mas não
pode ser um assalto micha, entende? Tem de ser coisa grande, tipo cinematográfico.
Se é pra entrar na coisa, tem de ser de uma vez, enfiar a cara pra valer mesmo.
– disse Elisa.
Nem
em seus pensamentos mais otimistas, Dimas imaginou que Elisa fosse capaz de tal
ideia; acreditava (ou queria muito acreditar) que a garota que estava deitada ao
seu lado na cama, embora moderna, fosse sensível, frágil, romântica, pronta
para ser uma esposa submissa, uma dondoca alienada.
-
Ei! O que foi? – reclamou Elisa – De repente, ficou mudo. Tá tudo bem?
Como
resposta, Elisa viu o namorado apressar a saída do motel; Dimas sentiu
necessidade de colocar as ideias em ordem, não tinha mais certeza de que a
garota na qual apostava todas as fichas fosse realmente filha de pais
milionários. A ideia tomou conta de seus pensamentos de forma quase obsessiva. Estaria
ele comprando ‘gato por lebre’?
No
dia seguinte, após atravessar a noite em claro, Dimas tomou o caminho do
Leblon. O destino não foi a praia, mas o prédio da Vieira Souto em que, certa
vez, vira a namorada entrar; precisava passar a história a limpo.
-
Gostaria de falar com Elisa, ela está? – perguntou pelo interfone.
-
Elisa de quê? – perguntou o porteiro.
-
Elisa... Mora na cobertura.
-
Olha, aqui não tem nenhuma Elisa que mora na cobertura. A moradora da cobertura
é uma senhora, dona Zélia. O senhor deve ter se enganado de prédio.
Diante
do silêncio de Dimas, o porteiro retomou:
-
A bem da verdade, tem uma Elisa aqui sim, mas não é moradora da cobertura. É
minha filha. Vive comigo na moradia dos empregados. Não seria ela que o moço tá
procurando?
O
porteiro deixou seu posto e caminhou até o portão.
-
O senhor... Agora me lembro. – disse
Dimas assim que o viu – O senhor esteve na praia à procura...
-
O moço tem razão. Procurava minha filha, que andava sumida. Elisa é cheia mania
de grandeza, vive se fazendo passar por moça rica, sabe? De vez em quando...
-
E ela tá em casa?
O
homem apontou na direção da rua:
-
Olha ela vindo ali. Elisa, minha filha, este moço...
-
Que é, pai? Sai do meu pé. – disse a moça – Vou usar o elevador social, tá. Nem
adianta tentar me impedir.
Intrigado
com a semelhança entre a filha do porteiro e a sua Elisa, Dimas a segurou pelo
braço.
-
Me larga. – ela disse tentando se desvencilhar – Qual é?
-
Que história é essa, Elisa? Este homem tá dizendo que é o seu pai? Mas seus
pais estão viajando pela Europa, não?
Dimas
ficou mudo por um tempo, segurando firme o braço da moça.
-
Filha do porteiro!? – disse sofregamente – Isso é piada, não é?
-
Muito bem! Acabou de descobrir meu grande segredo. Sou filha do porteiro sim.
Qual é o problema?
Dimas
teve de se esforçar para não cometer um desatino: “Elisa filha de um reles
porteiro... Como assim?”, pensou.
-
Por favor, senhor. – interveio o porteiro preocupado com os curiosos de dentro
e de fora do prédio que se aproximaram, atraídos pela discussão – Olha o
escândalo. Os moradores... Meu emprego... O senhor não...
-
Entenda, meu senhor. Esta garota me enganou. Tenho direito à explicação.
Elisa
desvencilhou-se de Dimas, caminhou na direção do hall e entrou no elevador,
desaparecendo em seguida. Dimas tentou segui-la, mas foi impedida pelo porteiro
e outros funcionários do prédio.
-
Sinto muito, meu rapaz. – disse o porteiro – Perdoa a menina. Ela não se
conforma de ter nascido pobre. Vive metida com gente grã-fina, fingindo que é
grã-fina também. Estive na praia procurando por ela, como bem lembrou. Imagina
só. Encontrei a danada metida na casa de um ladrão do governo. Já pensou? Tive
de tirar ela de lá à força. Desde então, tá mais revoltada ainda. Não sei o que
fazer. Tem hora que penso em deixar de mão, mas ela é minha filha, né?
Dimas
não viu apenas mais uma possibilidade de casamento ser frustrada, um castelo de
areia ser destruído pelas ondas, o envolvimento com Elisa ia muito além, fugia
totalmente ao seu controle.
-
Elisa não mora mais aqui. – disse o pai-porteiro quando, ainda em busca de
explicações, retornou ao prédio – Toda vez que ela apronta, o castigo é voltar
pra companhia da mãe, no interior do estado. Desde que veio morar comigo, tenho
tentado dar alguns conselhos, mas a menina é cabeça de vento, igual à mãe, que
me largou pra viver de ilusão. A menina não quer saber de nada. O senhor credita
que uma moradora aqui do prédio, dona Zélia Albuquerque de Mendonça, quis pagar
os estudos dela? Pergunta se ela se interessou... Que nada! Prefere ficar na
praia fingindo que é filha de pai rico. Pensa que assim vai encontrar um moço
cheio da nota pra tirar ela da pobreza. Tudo sonho besta, o senhor não acha?
Enquanto
Targino, esse era o nome do porteiro, falava, Dimas teve a impressão que se referia
a si e não à filha; o porteiro lembrava muito a própria mãe, a subserviência e
humildade eram idênticas. Se de fato existisse – ele pensou – um duplo de cada
pessoa, não tinha dúvida de que Elisa era o seu e Targino, por sua vez, o duplo
da mãe.
Dimas
esteve a ponto de pedir o novo endereço da namorada, porém desistiu. Não sabia
ao certo como agiria, o que diria a ela. Sabia apenas que o encontro dos dois
não se deu por acaso; havia, além de uma força atraindo um para o outro, uma
história por viver, história que talvez mudasse suas vidas para sempre.
Dias
depois, sentado num quiosque, na praia de Ipanema, Dimas pensou que estivesse sendo
vítima de alucinação, quando viu Elisa se aproximar. Foi necessário controlar o
impulso de ir ao seu encontro e confessar-se perdidamente apaixonado. O destino,
ou outra coisa que não fazia ideia do que fosse, contra sua vontade, desejos e
planos fez com que atraísse não aquilo que buscava, mas um espelho no qual se
via refletido de tal modo que se confundia: ele e Elisa desejaram encontrar alguém
que mudasse suas vidas, que os tirasse da pobreza, da indigência e os levasse
para um mundo de riquezas sem fim, longe dos tormentos e aflições da gente
comum, porém, tudo não passou de fogo-fátuo.
-
O que quer de mim? – Elisa perguntou – Vai lá. Manda a real. O velho disse que
tu quer falar comigo. Tô aqui. Mas não vem com papo furado, tá legal?
O
filho da diarista chegou ali disposto a revelar que era um pobretão sem eira
nem beira e que, portanto, estavam no mesmo barco. Entretanto, manteve o
discurso do rapaz rico, imbuído das melhores intenções, que julgava se
relacionar com uma moça de família distinta, bem educada...
-
Se tivesse dito a verdade, juro que ia compreender. Agora, tudo fica mais
difícil. Falei pros meus velhos que você era de boa família, que morava numa
bela cobertura, na Vieira Souto, que estudou nos Estados Unidos, Europa... Essas
coisas. Meus pais não querem que eu me envolva com alguma oportunista, que só
queira se dar bem, entende?
-
Ou seja, a filha do porteiro não serve pra casar com o herdeiro de fazendas,
não é?
-
Não é isso, Elisa. Veja a situação em que me colocou. Quero muito ficar contigo,
mas... Os velhos não vão permitir. Vê se entende. Não posso ir contra a vontade
deles. Infelizmente, a gente vai ter de terminar. Adeus!
Ao
final do discurso, Dimas estava tão absorvido pelo enredo do filho de
fazendeiro rico que, intimamente, acreditava em cada palavra que proferia. Nesse
momento, seguindo o script, ele levantaria completamente arrasado e tomaria a
direção da saída. No meio do caminho, olharia para trás, lançaria um último
olhar para o grande amor de sua vida, que estaria sozinha, cabisbaixa,
igualmente arrasada, faria um aceno de mão e, então, finalmente partiria. Entretanto,
nada disso aconteceu; ele nada disse, nem mesmo saiu do lugar: a desordem
mental era muito grande. Quem ele era, afinal? O filho da faxineira diarista do
morro ou do fazendeiro, criador de gado do Mato Grosso? Nem ele sabia ao certo.
Talvez não fosse nem um nem o outro, mas uma soma dos dois; mentira e verdade,
realidade e fantasia se misturavam.
-
Até quando vai manter essa farsa ridícula, hein? – disse Elisa subitamente – Ouvi
o discurso do playboy enganado pela pobretona fingindo engolir cada palavra,
mas esse papo de filho de fazendeiro, criador de gado do Mato Grosso... A quem
acha que engana, hein? Quer saber? Sempre soube que não passa de um pobretão,
trapaceiro, arrivista, um alpinista social chinfrim. Tentou dar o golpe em Larissa,
Suzana, Jane e quem mais apareceu pela frente. Até o Demétrio... E não estava
de todo enganado. Apesar de não parecer, Demétrio é o único da turma verdadeiramente
montado na grana. Perto dele, Larissa, Suzana e Jane são meras proletárias; o
pai da bicha tem até ilha particular, cara. Perdeu a chance de dar o grande
golpe, malandro. O tonto do Lucas foi mais esperto. Os dois vão casar e tudo.
Mas isso...
Elisa
fez uma pausa, depois retomou:
-
É um idiota, cara. Sua história nunca convenceu a ninguém. A turma da praia
sempre soube que tu não é filho de fazendeiro rico coisa nenhuma. A Larissa, a
Jane, a Suzana, o Demétrio, o PH... Somente o Pedrão e o Lucas, dois lesados,
engoliam essa farsa. Larissa botou detetive na sua cola e o cara deu a ficha
completa. Mas a turma, em vez de te desmascarar, preferiu se divertir com tua
cara. E eu também. Por que acha que preferi me colar no babaca do PH a ficar
contigo?
-
Mesmo depois do lance da prisão você continuou colada nele.
-
Tinha esperança que a coroa do PH fosse esperta e salvasse a grana que foi
mandada pro exterior, porém... Mulher tapada, burra. Entregou tudo na bandeja
pra polícia federal e ferrou o marido de vez.
Depois
de um tempo entregue aos próprios pensamentos, Elisa observou demoradamente o
companheiro de mesa, a essa altura reduzido a frangalhos, e, com acentuado tom
de desprezo, disse:
-
Olha a tua figura deplorável. Roupas puídas, pele maltratada, cabelo ressecado,
dentes encardidos, linguajar... Se pelo menos tivesse um jeitão de caipira... Verdade
seja dita, a história do pai rico que regula grana como forma obrigar o filho a
assumir os negócios da família é um enredo que costuma usado com relativo
sucesso em novela de televisão, mas o resto... Não. É melhor eu parar por aqui.
Não quero chutar cachorro doente.
Ver
o mundo fantástico que construíra reduzido a ruínas, fez Dimas perceber o
quanto fora ingênuo ao acreditar que bastaria usar a lábia de malandro para
convencer os riquinhos do Leblon de que faziam parte da mesma tribo.
-
Ei, cara. Isso é normal. – disse Elisa – Tem hora que a gente erra a mão. Não
foi dessa vez, porém não é o fim do mundo. Sempre se pode tentar de novo. Não
esqueça que, antes de qualquer coisa, neguinho tem de te olhar e acreditar que tu
é rico de verdade. É preciso convencer geral. Como se consegue isso? Aplicando
golpes no comércio, com cartões clonados, roubados, o que quer que seja. Não
importa. Contanto que consiga a beca certa pra se apresentar nos eventos que podem
te colocar de cara com gente interessante, que abre portas. Uma vez nesses
lugares, é muito importante agir com cautela pra não parecer intrometido,
desagradável, tá ligado? Fale o estritamente necessário, nada de dar informação
que depois venha a trazer complicações. Não se esqueça de fazer alguma
presença, ou seja, pagar uns drinques, mostrar que tem bala na agulha. E, o
principal, crie uma aura de mistério em torno de sua pessoa, não se deixe
conhecer totalmente, apareça e desapareça. E mais: não tenha preconceito ou
pudor de nenhuma espécie: droga, sexo, homem, mulher, religião, cor, raça,
vertente política, nacionalidade, nada. E, o mais importante, esteja sempre
pronto a encarar todas as situações com naturalidade. Grava essa: quando a
gente nasce do lado errado da vida, precisa aprender a se virar. Andei colada num
cara aí, mas ele deu mole e caiu na mão da cana. A mercadoria dele era top. PH
era freguês. Foi assim que a gente se conheceu.
Dimas
se sentiu num barco à deriva, ondas gigantes o arrastavam de um lado para outro.
Julgava estar enganando, mas foi enganado. Larissa, Suzana e Jane deram corda
para suas mentiras, por pura diversão. Jane, por sua vez, foi mais longe: quis
conhecer as fazendas, que sabia não existirem.
-
Aquele homem é mesmo seu pai? – perguntou depois de algum tempo.
-
Infelizmente. Mas tem lá sua utilidade. Garante moradia na Vieira Souto. Isso
deve ser levado em consideração, não acha?
-
Moradia na ala de empregados. Não se esqueça disso.
-
Às vezes o que importa não é ser é parecer, cara. Quando digo que moro na
Vieira Souto, sabe o que acontece? Todas as portas se abrem. Sabe o que é isso?
Dimas
nasceu e cresceu atolado em pobreza, feiura e podridão. A constatação fez com que
sentisse inveja de Elisa; se em vez de uma mãe faxineira tivesse um pai
porteiro de prédio, talvez as coisas tivessem sido diferentes. Pelo menos, poderia
ter crescido na zona sul. Dessa forma, não seria taxado de suburbano, favelado.
-
Apresenta aí o tal traficante pra quem tu trabalha. – disse Elisa – Embora lá. É
Garrincha o nome dele, não é? Vai que rola uma parceria, hein?
Bom domingo e excelente semana.
Esperança, fé, amor e GRATIDÃO.
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