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outubro 20, 2024

A mão invisível - Capítulo 4

Enredado por suas mentiras, Dimas acaba provando do próprio veneno.

 

Capítulo 4

 

Dimas da Silva pegava a condução no pé do morro, juntamente com a ‘gentalha desprezível’ – como ele fazia questão de verbalizar –, porém, quem descia em Copacabana era Dimas Capanema. Como tal, ele caminhava pelo calçadão, passava pelo Arpoador e chegava ao Leblon. Naquele dia, a turma, ou que restava dela, estava reunida na areia: Larissa, estendida ao sol, estava acompanhada de um gringo, de dois metros de altura; Pedrão, como de costume, tirava um cochilo; Demétrio e Lucas, cada vez mais íntimos, trocavam figurinhas com Suzana, que estava ali para lembrar os amigos que o casamento se realizaria nos próximos dias. Lá pelas tantas, Jane, num raro momento de folga – o trabalho de tatuadora tomava-lhe quase todo o tempo – apareceu com um ‘amigo’ que, muito provavelmente, não via problema em morar no morro do Vidigal; PH não era mais visto na praia, nem pelas redondezas, sinal claro de que se conformara com o fim do relacionamento com Elisa e, de quebra, aceitara a nova condição social.

- Após a cerimônia, na igreja de Nossa Senhora do Bonsucesso, a recepção será no Iate Clube. Agora preciso ir, meus amores. Os preparativos do casamento estão me deixando louca. – disse Suzana, ao se despedir da turma.

- Encontrei Elisa um dia desses. – disse Demétrio, após a saída de Suzana – Como eu desconfiava, ela foi pedir colo em Ibiza. O fim do noivado mexeu muito com minha amiga.

Dimas fingiu desinteresse, mas ouviu com atenção o colega dar os detalhes do reencontro. A satisfação de saber que Elisa estava de volta ao Rio, entretanto, se contrastou com a desagradável surpresa de encontrar, mais uma vez, Garrincha, escarrapachado no sofá de casa.

- O que quer aqui? Como entrou?

- Boa noite pra tu também. Dona Badia não te deu educação, não? Vim saber como foi o dia de trabalho. Fala tu. Vendeu tudo? Podemos fazer o acerto?

- Não teve dia de trabalho nenhum.

- Tu não tá colaborando, mano. Papo reto. Assim, vou ter de rever o nosso acordo. A partir de hoje, a cozinheira passa a morar de vez na sede do movimento. Tu vai ficar sem a mamãezinha, malandro. Só bota os olhos nela quando resolver fazer o que tem de ser feito. Isso, por hora. Porque o bagulho pode ficar mais doido ainda.

Dona Santana estava na porta de casa, na companhia dos três filhos, quando, algum tempo depois, Garrincha deixou o barraco.

- Boa noite, dona Santana! – o traficante disse ao avistar a baiana – Como tem passado vossa ilustre pessoa?

A vizinha de Abadia deu de ombros. Embora contrariado, Garrincha seguiu seu caminho. Dentro do barraco, Dimas ainda se refazia do golpe. Num repente, como se tomasse uma decisão, há muito tempo protelada, ele caminhou até o velho fogão a gás, abriu a emperrada porta do forno, tirou de lá o pacote de drogas, e espalhou seu conteúdo sobre a mesa. Em seguida, separou as trouxinhas de maconha e os saquinhos de cocaína em duas partes. Depois, colocou uma parte de cada na mochila, que pegou no quarto, e as outras, devolveu ao pacote, que devolveu ao forno.

- Finalmente, o mar desistiu de lutar contra o rochedo. – disse dona Santana ao ver o filho da vizinha passar pela porta de casa – Já não era sem tempo.

- O que a mãe quer dizer com isso? – perguntou o filho mais moço.

- Nada, menino. Não se mete nos meus assuntos. E vamos nos recolher. Não tem mais nada de interessante pra se ver aqui hoje. – ela disse.

Depois, ordenou aos filhos que a carregassem para o interior da casa, com cadeira e tudo, como se fosse uma inválida.

- Cuidado com isso, meninos! Tão querendo me derrubar? – ela reclamou.

Mochila às costas, Dimas chegou ao Leblon. Não sabia exatamente o que fazer, nem por onde começar. O tempo passou e nada. Somente a lembrança das ameaças de Garrincha impedia que fizesse o caminho de volta para casa. Já era madrugada quando conseguiu passar a primeira trouxinha de maconha. A partir daí, se viu invadido pela sensação, até então desconhecida, de colocar dinheiro no bolso, fruto do próprio esforço.

- Bom dia! – saudou dona Santana, na janela de casa àquela hora da manhã – Ou seria ‘boa noite’?

Dimas jamais poderia afirmar se ouviu a vizinha dizer as palavras ou se foi delírio; depois de passar a noite andando de um lado para o outro, não tinha mais certeza de nada. Em casa, ele se que jogou sobre a cama, cuja dureza, desta vez, não incomodou tanto, e vislumbrou o espaço. O barraco, caindo aos pedaços, o calor provocado pelo sol forte que entrava pelas muitas frestas (além de alguns furos de bala) da parede, nada pareceu incomodar. Então, adormeceu como um trabalhador, após uma noite de labuta.

Já era noite quando se preparou para voltar ao campo de batalha. Na saída, dona Santana, sentada na cadeira de balanço, fez um aceno, que respondeu amistosamente. Ao caminhar pelas ruas do Baixo Leblon notou que seus passos não eram titubeantes e medrosos como os da noite anterior, mas firmes e decididos.

- Taí, fiz o prometido. – disse atirando a mochila aos pés de Garrincha – A grana tá aí. Não te devo mais nada. Agora, libera minha mãe.

- Espera aí. – disse Garrincha mal disfarçando a surpresa – Calma! Vamos conversar. Primeiramente, devo dizer que tô muito orgulhoso. Tu bateu um bolão, camarada. Parabéns!

- Dispenso elogios. Só fiz isso pra me livrar das suas ameaças.

- Ei, pra quê essa revolta toda, mano? Mais amor no coração. Escuta só... Vou até fazer um troço de irmão contigo. Irmão nada, de pai pra filho. O pai que tu nunca teve. Veja bem, vou te dar essa grana, como um bônus. Em troca, tu pega mais um pouco de mercadoria pra vender pros playboys. Só mais uma vez e nunca mais eu toco no assunto. Combinado? Assim, eu te favoreço e tu... Que me diz?

Ao deixar a sede do movimento, dinheiro no bolso e nova mercadoria na mochila, Dimas se sentia tão confiante que caminhou pelas vielas do morro cumprimentando, com simpatia e bom humor, a todos que encontrou.

Embora a nova vida impusesse hábitos extremamente noturnos ao filho, longe de ficar preocupada, Abadia viu a mudança de rotina como algo positivo.

- Graças à minha santinha, meu menino botou a cabeça no lugar. Ele não diz, mas tô desconfiada de que arranjou emprego. Sai toda noite, na mesma hora, e volta de manhazinha, com cara de cansado, cheio de fome. – confidenciou à vizinha – Só fico cabreira dele passar a noite inteira fora de casa. Essa cidade é muito perigosa. Ainda mais de noite, né?

- A cidade é muito perigosa mesmo. – disse dona Santana – Nove ou dez horas, no máximo, boto meus meninos pra dormir.

Numa folga do ‘trabalho’, Dimas foi ao encontro de Larissa, Lucas, Demétrio e Pedrão, que não via há algum tempo. Jane, segundo ele soube, estava às voltas com a clientela no ateliê de tatuagem e o namorado; Suzana fora viver com o marido, em São João do Meriti, na Baixada Fluminense.

- PH e Suzana viraram cidadãos da Baixada Fluminense. – comentou Demétrio.

- Tá todo mundo indo pra essa Baixada. Que tem de bom por lá, hein?

A indagação de Pedrão levou a turma a discutir seriamente o fenômeno. Entretanto, a preocupação de Dimas era arranjar um meio de penetrar na casa de Elisa. Os dois voltaram a se relacionar, nos moldes de antes, após um encontro casual no Baixo Leblon. Em sua imaginação, a garota vivia numa cobertura na Vieira Souto, com vista para o mar, de, no mínimo, mil metros quadrados.

- De repente, eu poderia passar uns tempos na sua casa. Pra te fazer companhia, claro. Que tal?

- Sei lá, cara. Meus pais podem não gostar. Além disso, os empregados fazem fofoca. Sabe como é essa gente, adora se meter na minha dos patrões. A última coisa que quero é ficar mal com meus pais. A confiança deles é tudo pra mim.

Dimas não acreditava que os futuros sogros fossem conservadores ao ponto de proibir a filha de receber o namorado em casa, principalmente levando em conta que frequentara as casas de Larissa e Suzana, logo que começaram a sair, sem o menor problema. Não frequentou a casa de Jane porque ela não se dava com o pai. Também andou pelas casas de Lucas e PH. Na casa de PH, por exemplo, ficou por quase seis meses, com a desculpa de que seu fictício apartamento estava em obras. Obra que nunca chegava ao fim: uma hora foi embargada pelo síndico, outra, o projeto da reforma precisou ser refeito, noutra, o pedreiro desapareceu e como o pai, um matuto, pagou a obra adiantadamente, o jeito foi esperar o profissional reaparecer. Não lembrava mais de quantas invencionices lançou mão. A casa de Pedrão não frequentou, nem fez questão; o dorminhoco vivia num bagunçado quarto e sala, em Copacabana, onde a família o instalara, para ter um pouco de sossego.

- Teu flat é na Garcia D’Ávila, não é?

- Não tô morando mais lá. – disse tomado de surpresa – Mudei pra Atlântica. O velho continua regulando a grana. Ando precisando fazer uma economia braba. Dá pra acreditar? Aquele monte de cabeça de gado e eu...

Dimas calou subitamente e assim permaneceu.

- Por que a gente não vai pra tua casa? – perguntou Elisa depois de um tempo – Pelo menos, deve ser melhor que este motel fuleiro.

- Pô, tô lá de passagem. Tá tudo muito bagunçado. Quando eu mudar pra um hotel melhor ou alugar um apê legal, te levo lá, combinado? Por enquanto, a gente vai ter de se encontrar desse jeito mesmo, embora não seja o lugar ideal pra uma garota do seu nível.

- Quanto a isso, não me importo. Qualquer lugar é melhor que ficar sozinha naquela cobertura...

A menção da palavra cobertura soou como música para os ouvidos de Dimas; era a confirmação que precisava. “Só gente muito rica mora em cobertura na Vieira Souto”, ele pensou.

A partir daí, não poupou esforços para agradar a herdeira. Quando o dinheiro da venda da droga não foi mais suficiente, passou a tomar empréstimos com Garrincha. “Quem sabe seja a hora de me tornar o chefe do morro, o dono de tudo?”, ele murmurou embalado pela necessidade de ganhar mais grana. Se Garrincha, um perfeito idiota, se tornou o chefe do morro, por que ele não poderia? Depois de algum tempo atuando no Baixo Leblon, contava com respeitável clientela, o que fortalecia a ideia de que pudesse de fato trabalhar por conta própria. O problema era o capital para investir. “Onde e com quem arranjar grana?”, ele se perguntava. O nome de Elisa passou pela sua mente, porém, foi logo descartado; uma garota de família não se envolveria com o tráfico. “Tem nada a ver. Garota fina, bem-nascida...”, pensou.

- Tem muito filhinho de papai entrando de cabeça no ramo dos entorpecentes... – ele arriscou, displicentemente, na primeira oportunidade – Tipo investimento pra descolar a própria grana e se livrar da dependência dos velhos, tá ligada? Na verdade, não sei direito. Só ouvi dizer. Mas acho que é meio essa coisa de empreendedorismo. Não entendo bem.

- Tipo vender droga, ou seja, fazer tráfico? – reagiu Elisa – Que loucura, cara! Isso é crime. Dá cadeia e tudo.

- Gente como a gente não vai presa. No máximo, passa um ou dois dias detido numa delegacia, com ar refrigerado e tudo. Prisão é pra pobre, não é pra gente como nós.

- Nesse ponto, tem razão.

- Quer dizer que toparia entrar num negócio desses? Quer dizer, numa suposição... Papo de doido, né? Mesmo porque um negócio desses envolve muita grana. Se o meu velho não fosse tão munheca, não regulasse tanto... Já o seu pai não impõe condições pra liberar grana, como o meu, eu acho.

- Ei, deixa meu pai fora disso.

- Pô, foi mal. Mas, se fosse o caso, o negócio te interessaria?

- A única coisa que posso dizer é que, apesar de ter pai rico, quero ganhar minha própria grana.

- Quem não quer, não é? Pena que precisa de capital. Não sei ao certo, mas acho que não é pouco não. Até porque, embora seja lucrativo, é um negócio bastante arriscado. Tem a concorrência, a repressão da polícia... Não fosse isso, eu entrava de cabeça. E o mundo que se danasse, entendeu? Quer saber? Não tô descartando nenhuma possibilidade. Seu Paulo Otávio tá determinado a liberar grana somente quando eu for trabalhar com ele nas fazendas. E isso tá totalmente fora de cogitação. Não pretendo deixar minha gata (ele deu um beijo apaixonado em Elisa), essa cidade maravilhosa e tudo mais pra me entocar no meio do mato. Aí, a saída é arrumar um meio de não depender do velho.

- Existem outras maneiras de descolar uma grana. Um assalto, por exemplo. Mas não pode ser um assalto micha, entende? Tem de ser coisa grande, tipo cinematográfico. Se é pra entrar na coisa, tem de ser de uma vez, enfiar a cara pra valer mesmo. – disse Elisa.

Nem em seus pensamentos mais otimistas, Dimas imaginou que Elisa fosse capaz de tal ideia; acreditava (ou queria muito acreditar) que a garota que estava deitada ao seu lado na cama, embora moderna, fosse sensível, frágil, romântica, pronta para ser uma esposa submissa, uma dondoca alienada.

- Ei! O que foi? – reclamou Elisa – De repente, ficou mudo. Tá tudo bem?

Como resposta, Elisa viu o namorado apressar a saída do motel; Dimas sentiu necessidade de colocar as ideias em ordem, não tinha mais certeza de que a garota na qual apostava todas as fichas fosse realmente filha de pais milionários. A ideia tomou conta de seus pensamentos de forma quase obsessiva. Estaria ele comprando ‘gato por lebre’?

No dia seguinte, após atravessar a noite em claro, Dimas tomou o caminho do Leblon. O destino não foi a praia, mas o prédio da Vieira Souto em que, certa vez, vira a namorada entrar; precisava passar a história a limpo.

- Gostaria de falar com Elisa, ela está? – perguntou pelo interfone.

- Elisa de quê? – perguntou o porteiro.

- Elisa... Mora na cobertura.

- Olha, aqui não tem nenhuma Elisa que mora na cobertura. A moradora da cobertura é uma senhora, dona Zélia. O senhor deve ter se enganado de prédio.

Diante do silêncio de Dimas, o porteiro retomou:

- A bem da verdade, tem uma Elisa aqui sim, mas não é moradora da cobertura. É minha filha. Vive comigo na moradia dos empregados. Não seria ela que o moço tá procurando?

O porteiro deixou seu posto e caminhou até o portão.

- O senhor...  Agora me lembro. – disse Dimas assim que o viu – O senhor esteve na praia à procura...

- O moço tem razão. Procurava minha filha, que andava sumida. Elisa é cheia mania de grandeza, vive se fazendo passar por moça rica, sabe? De vez em quando...

- E ela tá em casa?

O homem apontou na direção da rua:

- Olha ela vindo ali. Elisa, minha filha, este moço...

- Que é, pai? Sai do meu pé. – disse a moça – Vou usar o elevador social, tá. Nem adianta tentar me impedir.

Intrigado com a semelhança entre a filha do porteiro e a sua Elisa, Dimas a segurou pelo braço.

- Me larga. – ela disse tentando se desvencilhar – Qual é?

- Que história é essa, Elisa? Este homem tá dizendo que é o seu pai? Mas seus pais estão viajando pela Europa, não?

Dimas ficou mudo por um tempo, segurando firme o braço da moça.

- Filha do porteiro!? – disse sofregamente – Isso é piada, não é?

- Muito bem! Acabou de descobrir meu grande segredo. Sou filha do porteiro sim. Qual é o problema?

Dimas teve de se esforçar para não cometer um desatino: “Elisa filha de um reles porteiro... Como assim?”, pensou.

- Por favor, senhor. – interveio o porteiro preocupado com os curiosos de dentro e de fora do prédio que se aproximaram, atraídos pela discussão – Olha o escândalo. Os moradores... Meu emprego... O senhor não...

- Entenda, meu senhor. Esta garota me enganou. Tenho direito à explicação.

Elisa desvencilhou-se de Dimas, caminhou na direção do hall e entrou no elevador, desaparecendo em seguida. Dimas tentou segui-la, mas foi impedida pelo porteiro e outros funcionários do prédio.

- Sinto muito, meu rapaz. – disse o porteiro – Perdoa a menina. Ela não se conforma de ter nascido pobre. Vive metida com gente grã-fina, fingindo que é grã-fina também. Estive na praia procurando por ela, como bem lembrou. Imagina só. Encontrei a danada metida na casa de um ladrão do governo. Já pensou? Tive de tirar ela de lá à força. Desde então, tá mais revoltada ainda. Não sei o que fazer. Tem hora que penso em deixar de mão, mas ela é minha filha, né?

Dimas não viu apenas mais uma possibilidade de casamento ser frustrada, um castelo de areia ser destruído pelas ondas, o envolvimento com Elisa ia muito além, fugia totalmente ao seu controle.

- Elisa não mora mais aqui. – disse o pai-porteiro quando, ainda em busca de explicações, retornou ao prédio – Toda vez que ela apronta, o castigo é voltar pra companhia da mãe, no interior do estado. Desde que veio morar comigo, tenho tentado dar alguns conselhos, mas a menina é cabeça de vento, igual à mãe, que me largou pra viver de ilusão. A menina não quer saber de nada. O senhor credita que uma moradora aqui do prédio, dona Zélia Albuquerque de Mendonça, quis pagar os estudos dela? Pergunta se ela se interessou... Que nada! Prefere ficar na praia fingindo que é filha de pai rico. Pensa que assim vai encontrar um moço cheio da nota pra tirar ela da pobreza. Tudo sonho besta, o senhor não acha?

Enquanto Targino, esse era o nome do porteiro, falava, Dimas teve a impressão que se referia a si e não à filha; o porteiro lembrava muito a própria mãe, a subserviência e humildade eram idênticas. Se de fato existisse – ele pensou – um duplo de cada pessoa, não tinha dúvida de que Elisa era o seu e Targino, por sua vez, o duplo da mãe.

Dimas esteve a ponto de pedir o novo endereço da namorada, porém desistiu. Não sabia ao certo como agiria, o que diria a ela. Sabia apenas que o encontro dos dois não se deu por acaso; havia, além de uma força atraindo um para o outro, uma história por viver, história que talvez mudasse suas vidas para sempre.

Dias depois, sentado num quiosque, na praia de Ipanema, Dimas pensou que estivesse sendo vítima de alucinação, quando viu Elisa se aproximar. Foi necessário controlar o impulso de ir ao seu encontro e confessar-se perdidamente apaixonado. O destino, ou outra coisa que não fazia ideia do que fosse, contra sua vontade, desejos e planos fez com que atraísse não aquilo que buscava, mas um espelho no qual se via refletido de tal modo que se confundia: ele e Elisa desejaram encontrar alguém que mudasse suas vidas, que os tirasse da pobreza, da indigência e os levasse para um mundo de riquezas sem fim, longe dos tormentos e aflições da gente comum, porém, tudo não passou de fogo-fátuo.

- O que quer de mim? – Elisa perguntou – Vai lá. Manda a real. O velho disse que tu quer falar comigo. Tô aqui. Mas não vem com papo furado, tá legal?

O filho da diarista chegou ali disposto a revelar que era um pobretão sem eira nem beira e que, portanto, estavam no mesmo barco. Entretanto, manteve o discurso do rapaz rico, imbuído das melhores intenções, que julgava se relacionar com uma moça de família distinta, bem educada...

- Se tivesse dito a verdade, juro que ia compreender. Agora, tudo fica mais difícil. Falei pros meus velhos que você era de boa família, que morava numa bela cobertura, na Vieira Souto, que estudou nos Estados Unidos, Europa... Essas coisas. Meus pais não querem que eu me envolva com alguma oportunista, que só queira se dar bem, entende?

- Ou seja, a filha do porteiro não serve pra casar com o herdeiro de fazendas, não é?

- Não é isso, Elisa. Veja a situação em que me colocou. Quero muito ficar contigo, mas... Os velhos não vão permitir. Vê se entende. Não posso ir contra a vontade deles. Infelizmente, a gente vai ter de terminar. Adeus!

Ao final do discurso, Dimas estava tão absorvido pelo enredo do filho de fazendeiro rico que, intimamente, acreditava em cada palavra que proferia. Nesse momento, seguindo o script, ele levantaria completamente arrasado e tomaria a direção da saída. No meio do caminho, olharia para trás, lançaria um último olhar para o grande amor de sua vida, que estaria sozinha, cabisbaixa, igualmente arrasada, faria um aceno de mão e, então, finalmente partiria. Entretanto, nada disso aconteceu; ele nada disse, nem mesmo saiu do lugar: a desordem mental era muito grande. Quem ele era, afinal? O filho da faxineira diarista do morro ou do fazendeiro, criador de gado do Mato Grosso? Nem ele sabia ao certo. Talvez não fosse nem um nem o outro, mas uma soma dos dois; mentira e verdade, realidade e fantasia se misturavam.

- Até quando vai manter essa farsa ridícula, hein? – disse Elisa subitamente – Ouvi o discurso do playboy enganado pela pobretona fingindo engolir cada palavra, mas esse papo de filho de fazendeiro, criador de gado do Mato Grosso... A quem acha que engana, hein? Quer saber? Sempre soube que não passa de um pobretão, trapaceiro, arrivista, um alpinista social chinfrim. Tentou dar o golpe em Larissa, Suzana, Jane e quem mais apareceu pela frente. Até o Demétrio... E não estava de todo enganado. Apesar de não parecer, Demétrio é o único da turma verdadeiramente montado na grana. Perto dele, Larissa, Suzana e Jane são meras proletárias; o pai da bicha tem até ilha particular, cara. Perdeu a chance de dar o grande golpe, malandro. O tonto do Lucas foi mais esperto. Os dois vão casar e tudo. Mas isso...

Elisa fez uma pausa, depois retomou:

- É um idiota, cara. Sua história nunca convenceu a ninguém. A turma da praia sempre soube que tu não é filho de fazendeiro rico coisa nenhuma. A Larissa, a Jane, a Suzana, o Demétrio, o PH... Somente o Pedrão e o Lucas, dois lesados, engoliam essa farsa. Larissa botou detetive na sua cola e o cara deu a ficha completa. Mas a turma, em vez de te desmascarar, preferiu se divertir com tua cara. E eu também. Por que acha que preferi me colar no babaca do PH a ficar contigo?

- Mesmo depois do lance da prisão você continuou colada nele.

- Tinha esperança que a coroa do PH fosse esperta e salvasse a grana que foi mandada pro exterior, porém... Mulher tapada, burra. Entregou tudo na bandeja pra polícia federal e ferrou o marido de vez.

Depois de um tempo entregue aos próprios pensamentos, Elisa observou demoradamente o companheiro de mesa, a essa altura reduzido a frangalhos, e, com acentuado tom de desprezo, disse:

- Olha a tua figura deplorável. Roupas puídas, pele maltratada, cabelo ressecado, dentes encardidos, linguajar... Se pelo menos tivesse um jeitão de caipira... Verdade seja dita, a história do pai rico que regula grana como forma obrigar o filho a assumir os negócios da família é um enredo que costuma usado com relativo sucesso em novela de televisão, mas o resto... Não. É melhor eu parar por aqui. Não quero chutar cachorro doente.

Ver o mundo fantástico que construíra reduzido a ruínas, fez Dimas perceber o quanto fora ingênuo ao acreditar que bastaria usar a lábia de malandro para convencer os riquinhos do Leblon de que faziam parte da mesma tribo.

- Ei, cara. Isso é normal. – disse Elisa – Tem hora que a gente erra a mão. Não foi dessa vez, porém não é o fim do mundo. Sempre se pode tentar de novo. Não esqueça que, antes de qualquer coisa, neguinho tem de te olhar e acreditar que tu é rico de verdade. É preciso convencer geral. Como se consegue isso? Aplicando golpes no comércio, com cartões clonados, roubados, o que quer que seja. Não importa. Contanto que consiga a beca certa pra se apresentar nos eventos que podem te colocar de cara com gente interessante, que abre portas. Uma vez nesses lugares, é muito importante agir com cautela pra não parecer intrometido, desagradável, tá ligado? Fale o estritamente necessário, nada de dar informação que depois venha a trazer complicações. Não se esqueça de fazer alguma presença, ou seja, pagar uns drinques, mostrar que tem bala na agulha. E, o principal, crie uma aura de mistério em torno de sua pessoa, não se deixe conhecer totalmente, apareça e desapareça. E mais: não tenha preconceito ou pudor de nenhuma espécie: droga, sexo, homem, mulher, religião, cor, raça, vertente política, nacionalidade, nada. E, o mais importante, esteja sempre pronto a encarar todas as situações com naturalidade. Grava essa: quando a gente nasce do lado errado da vida, precisa aprender a se virar. Andei colada num cara aí, mas ele deu mole e caiu na mão da cana. A mercadoria dele era top. PH era freguês. Foi assim que a gente se conheceu.

Dimas se sentiu num barco à deriva, ondas gigantes o arrastavam de um lado para outro. Julgava estar enganando, mas foi enganado. Larissa, Suzana e Jane deram corda para suas mentiras, por pura diversão. Jane, por sua vez, foi mais longe: quis conhecer as fazendas, que sabia não existirem.

- Aquele homem é mesmo seu pai? – perguntou depois de algum tempo.

- Infelizmente. Mas tem lá sua utilidade. Garante moradia na Vieira Souto. Isso deve ser levado em consideração, não acha?

- Moradia na ala de empregados. Não se esqueça disso.

- Às vezes o que importa não é ser é parecer, cara. Quando digo que moro na Vieira Souto, sabe o que acontece? Todas as portas se abrem. Sabe o que é isso?

Dimas nasceu e cresceu atolado em pobreza, feiura e podridão. A constatação fez com que sentisse inveja de Elisa; se em vez de uma mãe faxineira tivesse um pai porteiro de prédio, talvez as coisas tivessem sido diferentes. Pelo menos, poderia ter crescido na zona sul. Dessa forma, não seria taxado de suburbano, favelado.

- Apresenta aí o tal traficante pra quem tu trabalha. – disse Elisa – Embora lá. É Garrincha o nome dele, não é? Vai que rola uma parceria, hein?



Bom domingo e excelente semana.

Esperança, fé, amor e GRATIDÃO.

 

 

 

 

 

 

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