Neste segundo capítulo do livro 'A mão invisível', Dimas, após sofrer mais uma decepção em sua busca por uma noiva rica, conhece Elisa e vê nela uma nova oportunidade de atingir seu objetivo.
Capítulo 2
O
incômodo que Dimas (da Silva) sentia quando via PH rodeado de garotas, em
parte, se dava pelo fato de acreditar que todas fossem filhas de milionários –
aliás, ele pensava isso de praticamente toda garota da zona sul –, e também
porque, tão logo acabava a curtição com o riquinho, elas simplesmente
desapareciam da área e, consequentemente, de seu radar. Naquele momento, entretanto,
o que realmente estava tirando-lhe o sono era a dívida que tinha com Manduca;
usara todo o arsenal de desculpas de que dispunha, porém, diferentemente das
outras vezes, não estava surtindo efeito.
-
Não tem outro jeito, Manduca. – disse Jana – A gente vai ter de acionar o
Valdomiro.
-
Acha mesmo necessário? – reagiu Manduca – Não é precipitado, não?
Acionar
o Valdomiro, figura que estava sempre por ali, sob o disfarce de mero banhista,
significava encrenca à vista. Afinal de contas, não era novidade para ninguém
que toda vez que surgiam problemas entre donos de quiosques e fregueses, ou
quem quer que fosse, Valdo, como era mais conhecido, aparecesse, acompanhado de
seu grupo, para ‘resolver’ a parada. A cara de poucos amigos, emoldurada pelo
peitoral, naturalmente avantajado, a barriga proeminente e a sunga vermelha,
sua marca registrada, que se destacava na pele retinta, o cabelo oxigenado, somados
a voz rouca e os chamativos óculos espelhados, compunham a imagem que metia
medo por si só.
-
O garoto vai resolver a parada antes disso, Jana. – disse Manduca, com ar
preocupado – Ele não é louco de faltar com a palavra.
Desconfiado
de que o tempo fechasse, Dimas tratou de desaparecer não somente do quiosque,
mas da praia e arredores. Somente uns quinze dias depois, ele retornou. Para
todos os efeitos, no entanto, a ausência se deu devido a uma viagem de
emergência que fizera para casa dos pais, no Mato Grosso.
-
Desculpa aí. Não tive tempo nem cabeça pra avisar. Um chamado da família...
Nunca se sabe, né? Mas graças a Deus, agora tá tudo bem.
-
E a minha grana? – perguntou Manduca, pouco interessado em fofoca de família – A
tolerância chegou ao fim, companheiro. Se não trouxe a grana, sinto muito, mas o
Valdo vai entrar em ação. Liga pra ele, Jana. Diz que é aquele assunto que a
gente já...
Jana
pegou o aparelho celular no bolso do avental, porém, antes que completasse a
ligação, viu o freguês inadimplente colocar o pacote que trazia consigo sobre o
balcão do quiosque.
-
Aqui tá o pagamento. – disse Dimas.
Em
seguida, ele apresentou um relógio de bolso, modelo antigo, preso a uma
corrente dourada,
-
Essa joia pertenceu ao meu bisavô, depois ao meu avô, que passou pro meu pai,
que acabou de passar pra mim. Tá na família há várias gerações. Peça única.
Vale uma nota preta. Minha avó paterna conta que a avó dela garantia que foi
Dom Pedro II que deu de presente para o bisavô dela. Só pra ter uma ideia da
importância da peça. Ah, ia me esquecendo, a corrente é ouro puro.
-
E o que isso tem a ver com a tua dívida? – perguntou Jana.
-
Tudo a ver, dona Jana. Quero que fiquem com essa, joia pra saldar meu débito. Apesar
de tudo o que representa pra mim, meu pai e toda a minha família.
-
Isso é ouro de verdade? – perguntou Jana.
-
É o que minha avó diz, dona Jana. Seja como for, pode estar certa de que ele vale,
pelo menos, umas cem vezes o valor da minha dívida na barraca. Mas fique claro
que é só um empenho que tô fazendo. Acima de tudo, este relógio tem valor
sentimental, sabe? Tão logo o velho negocie um lote de bois e libere uma grana,
eu vou pegar de volta. Aliás, ele nem pode sonhar que empenhei essa relíquia.
Na verdade, o velho acha que o relógio tá bem seguro no cofre da fazenda.
Valdomiro
chegou ao quiosque, com seu séquito, despertando a atenção de todos. Tão logo
viu o relógio, o ‘leão de chácara’ esqueceu as ameaças e cresceu os olhos.
-
Vamo fazer um rolo. – ele disse a Dimas num à parte – Quanto tu quer?
Jana
percebeu o interesse de Valdo e se adiantou:
-
Se o relógio é tão valioso, Manduca, então a gente...
-
A gente aceita, né, Jana? – confirmou Manduca – Mas, veja bem, se não morrer na
grana logo, passo adiante. O Valdo tá interessado, não é Valdo?
Livre
da pressão, Dimas retomou a caçada. No entanto, o sempre bem informado Demétrio
não tinha boas notícias: PH acabara de apresentar Elisa à família.
-
Todo mundo ficou deslumbrado. O que não me surpreende. Elisa é um encanto de
garota. E do jeito que as coisas estão indo o casamento é questão de tempo.
Mas tô arrasado, sabe? Nunca pensei que o PH faria isso comigo. Só não corto os
pulsos porque a garota é linda. Linda nada, ela é deslumbrante. Não acha?
-
Sei lá. Nem conheço direito. – disfarçou Dimas.
-
Azar o seu. Perdeu o momento em que o casal sensação firmou compromisso, num
luau animadíssimo, aqui na praia. Foi um escândalo.
-
A família da garota veio?
-
Família!? Não tem ‘família’, apenas o pai e a mãe, que estão fazendo um tour pela Europa, não tá sabendo? É filha única, a sortuda.
“Filha
única!”, repetiu Dimas, em pensamento; o fato de os pais da garota, de quem
sabia apenas o primeiro nome, estarem viajando pela Europa, somado ao fato de
ser filha única, só fez aumentar o interesse. Não havia mais dúvida de que
Elisa possuía todos os requisitos para ser a esposa que procurava.
-
E o casamento? – ele sondou – Tem ideia de quando vai ser?
-
Elisa faz questão de casar somente na presença dos pais; quer uma grande festa.
O problema é que os pais não voltam tão cedo. A mãe deve aproveitar a viagem pra
fazer um tratamento de saúde. Tratamento esse que eu desconfio seja, na verdade,
uma levantada básica.
Enquanto
Demétrio falava, a bandeiras despregadas, Dimas planejava: PH, volúvel como
ninguém, logo se ligaria em outra garota e deixaria o caminho livre. No mais,
torcia para que o tratamento da mãe da garota levasse tempo suficiente para que
pudesse melar o namoro. O único senão era que por mais que se esforçasse a
garota continuava ignorando sua pessoa. Foi então que, estrategicamente, ele
grudou em Demétrio; acreditava que dessa forma se aproximaria da garota.
-
Legal seu lance com o Demétrio. – Elisa comentou certo dia – Tão juntos há
muito tempo?
-
Qual é? Nada a ver. – Dimas reagiu ao notar que o ‘tiro havia saído pela
culatra’ – A gente é só amigos. Não que eu tenha preconceito. Apesar de ter
sido criado no interior do Mato Grosso, sou liberal. Acho que cada deve viver
do jeito que quer. Mas, espera aí, sou espada, cara.
O
desapontamento, porém, trouxe certa satisfação; independente de qualquer coisa,
a garota notara sua presença. Desfeito o mal entendido, estabeleceu-se alguma
intimidade entre eles. A proximidade despertou ciúmes em PH, um incentivo para
que se tornasse presença constante em todos os lugares frequentados pelo casal.
-
Para me de secar, cara. – reclamou Elisa – Não sai do meu pé.
-
O que eu posso fazer? Você me deixa louco. Penso em você o tempo todo. Acho até
que... – defendeu-se Dimas – E depois o PH tá noutra, não notou?
Num
canto da sala, munido do inseparável violão, o riquinho dedilhava uma música,
rodeado de garotas. A perturbação de Elisa diante da cena deixou claro para
Dimas que a relação não andava bem. Razão mais que suficiente para que intensificasse
ainda mais o assédio. A garota mordeu a isca e, em pouco tempo, nasceu um
‘rolo’, que se transformaria num relacionamento secreto. Os encontros, porém,
não satisfizeram Dimas. “Sem essa de ser o ‘outro’. Meu lance é casamento,
preto no branco”, ele pensou.
- A parada com o PH é pra casamento, não é? Por isso não, eu também caso contigo,
até agora mesmo se quiser. Bora pra um cartório. A gente é maior de idade. Nada
impede.
-
Você é louco? – reagiu Elisa – Ninguém casa assim. Pra viver de quê? Morar
onde?
-
Na cobertura de seus velhos, ora. Não vive reclamando de solidão? Pensa comigo:
a gente fica morando na cobertura de seus pais até eles voltarem da Europa. Nesse
tempo, eu me entendo com meu velho e a grana volta a cair na minha conta. Garanto
que ele vai ficar superfeliz quando souber que resolvi virar um homem sério.
Além disso, a família toda vai te adorar. Não tenho dúvida que seu Paulo vai
comprar uma big cobertura pra gente, como presente de casamento. É claro que eu
faço questão que seja na Vieira Souto, pra você ficar perto de seus pais. E
então? Topa?
Despeito
de todo esforço, Elisa não abriu mão do noivado com PH. Dimas, então, entendeu
que seria necessário buscar um meio mais eficiente de tirar o rival do caminho,
sobretudo depois que Elisa revelou o desejo de se mudar para a casa dele. “Elisa
tem algum interesse em manter esse relacionamento que não tô atinando qual seja”,
ele especulou, depois de, em vão, tentar fazê-la desistir da mudança. Com isso,
os encontros, antes frequentes, praticamente deixaram de acontecer; Elisa alegava
dificuldades para se livrar da marcação cerrada dos sogros, dos cunhadinhos,
até mesmo dos empregados da casa e, claro, do noivinho apaixonado.
Sentindo
que estava perdendo a chance de conquistar a milionária, Dimas viu que era
necessário agir. Depois de muita maquinação, surgiu a ideia que lhe pareceu
perfeita: atrair PH para uma emboscada. Na verdade, seria um assalto simulado,
onde o rival levaria um tiro fatal. Afinal, estava pronto para o tudo ou nada.
Durante
a caminhada por Copacabana, dias depois, ao passar diante de uma banca de jornal,
uma manchete chamou atenção: “O empresário Pedro Henrique Soares Alves foi
despertado por volta das seis horas desta manhã com agentes da Polícia Federal em
sua porta. Os policiais cumpriam um mandado de busca e apreensão, em mais uma
rodada da operação deflagrada com o objetivo de apurar evidências de
superfaturamento em obras do governo. O empresário é suspeito de fazer parte da
quadrilha que vem fraudando os cofres públicos. Fontes dão conta de que no
apartamento foram encontrados indícios que compravam os crimes”.
A
reportagem, que se encerrava informando que o empresário fora levado preso
pelos agentes, poderia ter passado despercebida, pois se tratava de mais um
escândalo de corrupção, envolvendo políticos e empresários, tão comuns no
Brasil, não fosse o preso da vez ninguém menos que o pai de PH, seu empecilho
na conquista de Elisa. Passado o efeito surpresa, Dimas tentou mensurar o
terremoto que a notícia provocaria. Não foi difícil intuir que acabara de
encontrar o melhor meio de se livrar do rival; seria mais que óbvio que Elisa,
assim que tivesse conhecimento do escândalo, poria fim ao noivado. Ainda que
não fosse por si seria pelos pais que, com certeza, não aceitariam vê-la unida
ao filho de um corrupto, publicamente denunciado.
Quando
retomou a caminhada, Dimas assobiava, cantava, enfim, não cabia em si de
contentamento; o destino resolvera seu problema, sem que precisasse se
comprometer.
-
Tá todo mundo chocado com a notícia. – disse Pedrão assim que viu Dimas – Maior
vacilo do velho do PH, não é não? O lado bom de tudo é que a Elisa tá firme do
lado do PH.
O
semblante de Dimas, antes reluzente de felicidade, murchou, como flor em dia de
sol escaldante; não podia conceber que Elisa continuasse metida na casa de PH,
depois de tudo.
-
O que tá fazendo aí? – ele cobrou – Sai daí antes que seus pais tomem
conhecimento dessa patifaria, Elisa. Gente como nós não se mete com ladrão,
mesmo que seja do colarinho branco.
Os
argumentos de nada valeram; Elisa encerrou a ligação decidida a permanecer ao
lado noivo que, segundo suas palavras, precisava de apoio.
Em
casa, Dimas encontrou a mãe desesperada: a caixa que, por anos, guardou nos
fundos do guarda-roupa simplesmente desaparecera.
-
Caixa, guarda-roupa... Não sei do que tá falando, sua louca. Além do mais, o que
eu faria com uma caixa que não vale nada?
Abadia
não revelou detalhes sobre o conteúdo da caixa, ou mesmo que, muitas vezes, teve
necessidade de se desfazer dela, porém, não teve coragem. “Sem o relógio, tudo
se apaga. É como se o que vivi não tivesse passado de um sonho”, ela pensou.
-
Fala, escrota. – continuou Dimas, impaciente diante do silêncio da mãe – Abre o
jogo. Por que a caixa era tão importante? O que tinha dentro dela? Presentinho de
algum amante, velha assanhada?
-
Não é isso, filho. Uma patroa mandou jogar no lixo, mas achei bonita e resolvi
guardar. Mas não tem a menor importância. Vai ver joguei fora e esqueci. Acho
que foi isso.
Dimas
sabia que a mãe era cheia de esquisitices, no entanto, vê-la tão perturbada o
levou a pensar que o relógio tivesse pertencido ao pai, que nunca conheceu. A ideia
de ter um pai nunca foi de fato considerada. Antes, sempre fora descartada,
pois acreditava que certamente seria uma figura tão desprezível quanto a mãe. “Nem
vale a pena pensar nessa hipótese. Sem dúvida, é um miserável, um indigente que
vive pelos becos de alguma favela, arrastando um corpo doente”, ele pensou,
mantendo os olhos fixados na mãe, que permanecia à sua frente. Por vezes, até tinha
vontade de ser um filho que, em vez de exigir o que mãe não podia lhe dar, que cuidasse
dela, que a livrasse de arrastar o corpo frágil pelos becos e ladeiras do morro,
sempre a caminho das exaustivas faxinas. Porém, a revolta o dominava a cada dia
mais, superando qualquer possibilidade de afeição.
Mais
tarde, completamente esquecido do estorvo que recebera como mãe, Dimas se
voltou para a questão que estava tirando-lhe o sono: a insistência de Elisa em
manter o relacionamento com PH, mesmo depois que o pai do rapaz fora preso,
acusado de corrupção. Nenhuma argumentação era convincente bastante para fazer
a garota mudar de ideia. Quando apelou para os pais, a resposta que ouviu foi
que eles não tinham o hábito de fazer julgamentos precipitados. “Por enquanto,
são apenas meras acusações”, teria dito o pai, certo de que tudo não passava de
um mal entendido.
Como
fazia nos momentos de crise, Dimas tomou o caminho da sede do movimento. Mais
uma vez, ele relevou a Garrincha ter encontrado a garota que o livraria da
pobreza.
-
Então, qual é o grilo? – disse Garrincha – Casa com a moça e vai desfrutar da
vida boa, camarada. Seja feliz. O que tá esperando?
-
Que um babaca saia do meu caminho.
Depois
um tempo, ele completou:
-
Não preciso dizer que conto com o mano pra isso, não é?
-
Qual é, cara? Que papo doido é esse? Tá me tirando, é? Eu apenas comercializo
entorpecente, não sou matador de aluguel.
-
Não é bem apagar o cara que eu pretendo. Tenho um plano. Ouve isso: eu planto uma
muamba na mochila do cara, aviso a cana, que vai, dá o flagrante, e enquadra. Sacou?
Simples assim. Sem morte, sem complicação.
-
E, pelo que entendi, tu quer que eu forneça a ‘mercadoria’ do flagrante.
Acertei?
-
Justamente.
O
olhar de Garrincha, subitamente, ganhou um brilho diferente: ainda não sabia
como, mas algo dizia que ali estava a oportunidade que sempre buscou para arrebanhar
o amigo de infância para o tráfico.
-
Tu sabe que bagulho não dá em árvore, né? – ele disse – Esclarece aí: quem vai
morrer na grana? O playboy é que não vai ser, né?
-
Aí é que tá o lance. Pago quando casar com a ricaça. Não vai demorar, garanto.
A gata já tá na minha. Dessa vez não falha.
-
Sei não, cara. Esse tipo de coisa tem muita implicação. E se der errado? Não
posso me arriscar numa loucura com pouca chance de dar certo.
-
Em nome da nossa velha amizade, cara. – apelou Dimas – A gente se conhece desde
criança. Sabe que não vou dar furo contigo.
-
Vai lá. – disse Garrincha, depois de simular que estava pensando seriamente no
assunto – Mas tem uma condição. Aliás, duas condições. A primeira é que não
quero meu nome envolvido e, a segunda, se o plano falhar ou a mercadoria
extraviar, o pagamento só pode ser feito com trabalho na boca. Ou seja, tu vem
trabalhar aqui. Tamo entendido?
Confiante
no sucesso do plano, Dimas concordaria com aquelas e quaisquer outras condições
que Garrincha impusesse; o que interessava era tirar PH do caminho, nada mais.
-
Quando eu pego a mercadoria? – ele perguntou, com incontida euforia.
-
Calma! Vou precisar de um tempo. Uma semana, pelo menos. Tô esperando um
carregamento pra esses dias, se nada falhar. A repressão tá endurecendo cada
vez mais, tá ligado? Todo cuidado ainda é pouco.
Enquanto
esperou pela ‘mercadoria’, Dimas continuou frequentando a praia do Leblon. Elisa
não apareceu por lá, nem atendeu aos seus insistentes telefonemas, o que fez
com que o desejo de eliminar o rival aumentasse consideravelmente.
-
Elisa praticamente já faz parte da família do PH. O casamento ainda não rolou
porque PH-pai continua preso. Assim que resolverem essa parada...
O
comentário de Pedrão reforçou a urgência da execução do plano. Para que isso
acontecesse, porém, o rival precisava aparecer na praia. Só assim poderia armar
o flagrante. A possibilidade de plantar a droga em sua casa chegou a ser
considerada, mas foi abandonada; acabaria levantando suspeita.
Quase
um mês se passou sem que o casal desse as caras na praia. O sumiço deixava
claro que o relacionamento seguia firme. “Perdeu, malandro! Desiste e parte pra
outra”, Dimas se aconselhou; não era a primeira vez que se via obrigado a
desistir de uma garota. Dessa vez, entretanto, sentia que fosse algo mais que o
simples desejo de se dar bem; Elisa não representava somente uma ponte para uma
vida melhor. Na verdade, estava gamado de um jeito que nunca estivera por
nenhuma outra garota. A constatação o deixou, mais que assustado, mortificado;
não fazia parte dos planos se apaixonar. A esposa milionária seria mero trampolim
para atingir as altas esferas da sociedade, nada mais que isso. Uma vez casado,
tiraria o máximo que pudesse da garota, dos pais e de quem mais estivesse dando
sopa por perto. Então, pularia fora. “O casamento é um negócio. Essa garota não
pode estragar meus planos. Não pode”, ele murmurou alheio ao papo que rolava
solto entre Suzana, Larissa e Jane, em rara aparição. As três, em momentos
distintos, foram seus alvos. Jane, das três, era a única que ele ainda tinha
esperança de levar para o altar. Não por acaso, a mais rica das três. Infelizmente,
a tatuadora insistia em morar num barraco, no Vidigal, como se fosse uma pessoa
comum, recusando a montanha de dinheiro do pai. “Pensando bem, não custa tentar
mais pouco”, ele pensou. E, num esforço para se livrar do fantasma de Elisa, ele
se preparou para mais uma investida sobre Jane. No final do dia, em vez de ir
para casa, tomou o caminho do Vidigal, e por lá acabou ficando.
-
Tava pensando aqui, amor. A gente tá morando junto há um tempo e eu nem conheço
sua família. Sabe como é, sou do interior... Lá não é como aqui. A gente faz
questão de conhecer a família da namorada, pedir a permissão do pai... Queria
fazer a coisa certa, tá ligada? Quando vai me apresentar pra família?
-
Deixa minha família fora disso, por favor. – disse Jane, evitando o assunto a
qualquer custo.
No
entanto, obstinado a se aproximar da família da namorada, sobretudo do futuro
sogro, Dimas vestiu a melhor beca que tinha e foi até a casa, uma bela mansão,
no Alto da Boa Vista. Somente depois de enfrentar uma verdadeira barreira humana,
ele conseguiu ser recebido. Para sua surpresa, o pai da garota se mostrou feliz
de saber que a filha estava namorando um rapaz ajuizado, preocupado em conhecer
sua família.
-
Foi Janinha que te mandou me procurar? – o empresário perguntou.
-
Sim e não. – Dimas gaguejou – Ela ainda tá meio sem jeito. Sabe como é...
-
Sei sim. Minha filha é cabeça-dura. Saiu a mim. Não nego. Também não sou fácil.
Cadê ela? Não veio com você?
Desejoso
de ter a filha de volta a casa, o empresário Alaor Cavalcante agarrou a oportunidade
de reaproximação. E, sem desconfiar das intenções do futuro genro, abriu-lhe as
portas da casa e do coração. Dimas se deslumbrou com tudo: a mansão, os carros,
os frigoríficos e seus escritórios, centenas de empregados, prontos para
servi-lo tão logo oficializasse a união com a herdeira, e mais o que não viu,
mas sabia que existia: tudo seria seu, bastava convencer Jane a conviver
pacificamente com o pai e, claro, aceitar seu precioso dinheirinho.
Há
meses sem notícias, Abadia – após perambular à sua procura pelas ruas de
Ipanema e Leblon, como fazia quando ele, criança, sumia de casa – temia que o
pior tivesse acontecido.
-
Meu Dimas nunca ficou tanto tempo sem dar notícia, dona Santana. – ela desabafou
com a vizinha – Tô muito preocupada.
-
Vazo ruim não quebra, mulher. E notícia ruim voa. Se tivesse acontecendo alguma
desgraça a gente já sabia. Não se aperreia. Dimas tá é de desfrute com alguma moça
rica da zona sul. Vai por mim. Mas se é pra te aliviar seu coração, eu mando os
meninos dar uma averiguada por aí. Aliás, eu vou mandar logo dar olhada no IML.
Não que eu teja agourando o menino. Nunca se sabe, não é?
A
conversa das vizinhas foi interrompida pela chegada repentina de Pelado, garoto
que, após ser abandonado pela mãe, fora criado pelas vielas do morro de onde,
naturalmente, acabou capturado pelo tráfico.
-
Que qui quer aqui, muleque? – adiantou-se dona Santana – Toma seu rumo. Coisa
feia ficar ouvindo conversa.
-
Garrincha mandou dizer que o negócio do Dimas tá esperando por ele lá no
movimento, dona Badia. É pra ele ir buscar. – disse o garoto, desaparecendo em
seguida.
-
Que tipo de negócio teu filho tem com essa gente? – indagou dona Santana.
Abadia
não soube o que responder.
Enquanto
isso, acreditando estar praticando uma boa ação, Dimas chegava ao
barraco-estúdio de tatuagem de Jane, na companhia do futuro sogro.
-
Fora daqui. – disse Jane, assim que viu o pai entrar em casa, acompanhado do
namorado – Fora da minha casa, os dois.
Diante
da violenta reação de Jane, não restou outra saída para o caça-dotes senão voltar
para o único lugar que de fato tinha na vida, a casa da mãe.
-
Por onde andou, filho? Por que ficou tanto tempo sem dar notícia? Não faz ideia
de quanta coisa ruim passou pela minha cabeça. – disse a mãe – Parece tão
magro. Tem se alimentado direito? Senta aí. O que quer comer? Diz que eu faço
num minuto.
O
arremedo de filho-pródigo não se deu ao trabalho de justificar a longa
ausência. Na cabeça martelava o fato de ter, pela segunda vez, perdido a chance
de levar Jane para o altar.
A
fossa foi grande. Não exatamente por Jane, mas por Elisa; não tinha como negar
que a garota conquistara seu coração de tal maneira que não mais se sentia
motivado a procurar candidatas nas quais vislumbrasse a possibilidade de
realizar seu intento de subir na vida.
-
Garrincha deixou aí esse pacote. – disse Abadia fazendo as recomendações de
sempre, ou seja, que o filho não devia se envolver com a gente do tráfico, pois
sabia muito bem no que ia dar – Não esquece o que aconteceu com o Vaguinho...
Dimas
deixou a mãe falando sozinha e correu para a sede o movimento, aonde chegou
pagando para o amigo de infância.
-
Qual é, meu? Tá me tirando de otário? – reagiu Garrincha – Baixa a bola! Acha
que tenho todo o tempo do mundo? Não esqueça que eu cedi a mercadoria com a
condição de, se a parada desse errado, tu trabalhar comigo. E, pelo jeito, deu
ruim, não deu?
-
Não é bem isso. Tive uns contratempos. O pai do cara, acredite se quiser, foi
preso nesse negócio aí de crime do colarinho branco. Deu no jornal e tudo. Aí,
o maluco vazou da praia. Tá morto de vergonha do lance do pai. Até porque, a
galera não perdoa. Cai em cima sem dó nem piedade. Daí, eu não tive como
executar o plano, tá ligado?
-
Tenho nada a ver com isso. Pra mim, vale o combinado. E combinado não sai caro.
-
Alivia aí, irmão. O que eu vou fazer com a mercadoria?
-
Dá seus pulos, se vira. A mercadoria de
volta, eu não aceito. Se não vai mais foder com a vida do riquinho, bom pra
ele. Mas pensa no lado bom da coisa. Agora tu tem material pra fazer uma grana.
E, veja bem, sem precisar dessa babaquice que é azarar gatinha rica.
-
Pela nossa amizade, Sinval. Sabe que vida de traficante não tem nada a ver
comigo e nem contigo, que eu sei muito bem. Seu lance era fazer carreira no
exército, lembra? E eu quero ser bacana,
viver nas altas rodas. Tráfico tá fora de questão.
- Não tem esse papo de Sinval, exército, porra nenhuma. Sou o Garrincha, traficante, sujeito homem. E me orgulho disso pra caramba. E isso aqui é quebrada de morro, não é prainha de playboy não! Se não arrumar a grana, vai rodar. Tenho dito. – decretou Garrincha.