Hoje apresento a vocês o primeiro capítulo de meu livro 'A mão invisível', que conta as agruras do jovem Dimas, em sua desesperada luta para viver num mundo de luxos e mordomias, que lhe foi negado ao nascer pobre e favelado.
Capítulo 1
Na
comunidade pobre do subúrbio do Rio de Janeiro, onde a vida pulsava em seu
ritmo próprio, um jovem saiu de um tosco barraco, não muito diferente daqueles que
o circundavam, e, esforçando-se para ignorar os obstáculos que a cada passo surgiram
à sua frente – a ladeira íngreme demais, as valas negras que precisavam ser
transpostas, a pobreza, o desencanto e o abandono –, atingiu o pé do morro. Após
longa espera na desorganizada fila, ele embarcou na condução e, mais ou menos uma
hora depois, desceu a certa altura da Avenida Atlântica. Os pés, quase
automaticamente, o levaram ao calçadão, de onde observou, com deleite, o oceano
azul, o movimento das ondas e a faixa de areia, àquela hora apinhada de
banhistas, grupos de turistas – sobretudo gringos –, vendedores ambulantes,
enfim, a atmosfera de Copacabana do verão de 2010.
Diante
da exuberante vista, após se alongar, o jovem colocou os óculos de sol, que trazia
sobre a cabeça em forma de tiara, e, em seguida, misturou-se à multidão que fazia
jogging, pedalava, patinava, andava de skate tentando convencer-se de que fosse
um legítimo morador da área, pois, em seus devaneios, residia num prédio bacana
daqueles bem ali do outro lado da pista.
A
essa altura, Copacabana ficou para trás, dando lugar à Ipanema. Algumas
passadas depois, o jovem pisou as areias da praia do Leblon. Antes de se
aproximar da turma de amigos, porém, recapitulou o roteiro que trazia
memorizado: para todos os efeitos, era filho de um rico proprietário de terras
do Mato Grosso.
-
Tô passando o maior perrengue. O velho anda meio na bronca, tá ligado? Quer que
eu volte pra fazenda. Dá pra encarar? Coisa de louco, não é não?
O
desabafo se deu no dia em que finalmente conseguiu se aproximar dos ‘riquinhos
do Leblon’, maneira como se referia ao pessoal da praia, turma de jovens, quase
todos na casa dos vinte anos, com o objetivo de convencê-los de que faziam
parte do mesmo grupo social.
-
Tá no maior jogo-duro. Disse que só volta a liberar grana quando eu estiver
trabalhando nas fazendas. E não tá de brincadeira não. Há meses não manda a
mesada. Por isso, tive de desfazer de meus dois amores: o carango e a motoca.
Doeu o coração, tá ligado? O consolo é que com a grana continuo levando minha
vidinha, curtindo legal. Mas até quando?
-
Não cai na pilha do velho, cara. – disse um loirinho, cara de bicho-grilo,
enquanto apertava o terceiro baseado – O meu tentou esse lance comigo. Não me
deixei dobrar.
O
comentário foi o bastante para que o jovem já se sentisse integrado à turma, que
era composta por Paulo Henrique, o loirinho, mais conhecido como PH, estudante de
direito, que nunca ia à escola; Jane, estudante de artes, tipo doidona: cabelo
vermelho, tatuagens e piercings compunham seu visual; Pedrão, um tipo meio
obeso que passava o tempo dormindo na areia e que há anos fazia cursinho
pré-vestibular; Suzana, formada em Letras, que usava pesados óculos de grau, sempre
de livro na mão, fazendo tipo intelectual; Lucas, surfista amador, estudante de
arquitetura, tipo boa gente; Larissa, estudante de odontologia, na verdade, uma
devoradora de homens; Demétrio, estudante de teatro, assumidamente gay, a
diversão da turma; e outros que chegavam, papeavam, bebiam, fumavam e se
afastavam. Os encontros aconteciam na faixa de areia próxima ao quiosque do Manduca,
o Carlos Emanuel de Jesus, ‘negão gente fina’ que dizia ter sido afamado jogador
de futebol. Naquele momento, no entanto, Manduca buscava, de forma quase
obsessiva emplacar o filho, o adolescente Príncipe Carlos, no elenco de base do
Flamengo, time em que confessava, não sem esconder a mágoa, não ter chegado a jogar.
O filho, em quem depositava a esperança de que realizasse esse sonho, era fruto
de seu casamento com Janaína, que fazia questão de apresentar a todos ali na
praia como a mulher que abandonara promissora carreira de modelo para viver ao
seu lado.
-
Essa loira é louca por mim. – alardeava, quando não estava cuidando do futuro
profissional do rebento – Largou fama e dinheiro pra ficar com esse negão. Quer
prova de amor maior? Pena que logo depois eu sofri a contusão que me obrigou a
parar de jogar.
Janaína,
que guardava poucos vestígios de um passado glorioso, trabalhava na barraca. Para
lá, depois dos treinos, também ia Príncipe Carlos. Quem via o futuro craque do
Flamengo em ação nas areias garantia que tinha dois ‘pés esquerdos’; o que
chamava atenção, sem sombra de dúvida, era apenas o título de príncipe.
-
Filho de rei é príncipe, certo? – dizia Manduca, acrescentando que em seus
áureos dias de jogador fora coroado ‘o rei dos gramados brasileiros’.
-
Qual é, Manduca? Rei é o Pelé.– retrucavam.
-
Veja bem, meu irmão, o Pelé, Edson Arantes do Nascimento, é o rei do futebol e
eu, Carlos Emanuel de Jesus, vulgo Manduca, sou o rei dos gramados brasileiros.
Dá pra entender ou tá difícil?
Independente
de qualquer coisa, Manduca já calculava os altos salários que o filho faria
jus. Príncipe Carlos teria a vida que o pai deveria ter tido em sua época de
jogador, mas a contusão impediu. Entretanto, a preocupação naquele momento era
que desde que apareceu na praia, o filho do fazendeiro do Mato Grosso comprava
fiado no quiosque. Na hora de pagar, no entanto, sempre alegava que pagaria tão
logo a mesada caísse em sua conta.
-
E aí, malandro? Cadê a grana?
-
Nada, Manduca. O velho ainda tá fazendo jogo duro comigo. Mas pode ficar
descansado. Assim que a grana cair na conta, tá na sua mão.
-
A tolerância tá acabando. Não vou ficar no prejuízo porque o papai tá regulando
a grana. Não vou mesmo. – disse Manduca.
Ao
perceber que o freguês desaparecera entre os banhistas, acrescentou alteou a
voz e acrescentou:
-
Trate de dar teus pulos, ouviu?
-
Esse papo de pai fazendeiro é cascata, paixão. Vai por mim.
-
Será, Jana? O garoto tem toda pinta de filho de bacana.
“Quer
saber de uma coisa? Não vou dar as caras durante um tempo”, pensou o falso rico;
não tinha a menor ideia de como arranjaria a grana para saldar o débito no
quiosque. A decisão, entretanto, atrapalhava seus planos; elegeu a praia como o
lugar ideal para conhecer a garota que, segundo acreditava, mudaria sua vida,
razão principal de ter se metido entre os ‘filhinhos de papai’. Larissa, Suzana
e Jane, as garotas da turma, cada uma por sua vez, foram seus alvos; com as
três, viveu relacionamentos com vistas a um casamento por interesse. Suzana e
Larissa, segundo apurou, eram filhas de empreiteiros, com obras em várias
esferas governamentais. Jane, por sua vez, a única que fez seus olhos brilharem
de verdade, pois o pai era um poderoso industrial do ramo das carnes. A
descoberta o levou a acreditar ter encontrado a verdadeira ‘galinha dos ovos de
ouro’.
O
convite de Jane para que conhecesse sua casa foi recebido como o sinal de que
tudo se encaminhava para a realização de seu grande objetivo. Para que nada
desse errado, o jovem preparou, com extremo cuidado, o que diria aos futuros
sogros. Antes de qualquer coisa, falaria das hipotéticas fazendas do pai e que,
como filho mais velho, mais cedo ou mais tarde, estaria no comando de tudo.
-
Minha Jane finalmente encontrou o rapaz certo. – diria o pai de Jane, após
ouvir seu relato.
Entretanto,
no dia marcado, sentado no lado do carona, estranhou quando o carro da namorada
tomou a direção do Vidigal.
-
Pra onde a gente tá indo, amor? A casa de sua família... Não diga... Boca numa
hora dessas... Pô, cara. Não é legal chegar turbinado num encontro com a
família. Falta de...
Jane
seguiu em frente, sem nada responder e, pouco adiante, estacionou o carro em
frente a um sobrado, que ficava no pé da ladeira.
-
Não vai descer? – ela perguntou, já fora do carro – Desistiu de conhecer a
minha casa?
Naquele
dia, o ‘caça-fortuna’ soube que a namorada vivia num sobradinho no Vidigal,
misto de estúdio de tatuagem e moradia, pois abrira mão da grana da família
para viver dos modestos ganhos que obtinha como tatuadora iniciante; não queria
ser sustentada por um homem (o pai) que fizera fortuna matando animais
indefesos. “Protetora de animais criados para abate. Que maluquice! Onde eu fui
me meter?”, ele ruminava enquanto descia a pé as ladeiras do Vidigal, pouco
interessado no sofrimento dos animais ou de quem quer que fosse; o importante
era a grana, viesse de onde viesse.
-
Tá mais que na hora desse menino arrumar um emprego, Badia. Para de dar vida
boa pra ele. Depois de certa idade, filho tem ajudar nas despesas da casa.
O
alerta partiu de dona Santana, inconformada com a ‘vida boa’ que a vizinha
proporcionava ao filho. Mulata, corpulenta, baiana de Feira de Santana, a viúva
– pelo menos, era o que afirmava – era mãe de três filhos: Genildo, Genilson e
Genivaldo, “homens machos e trabalhadores”, como propalava aos quatro ventos,
orgulhosa de ter ensinado a eles, desde cedo, a encarar o trabalho, sem
desconfiar das piadas e dos insultos que os filhos ‘machos e trabalhadores’
enfrentavam pelos becos do morro.
-
Meus meninos, além de labutar o dia inteiro na rua, limpam a casa, cozinham,
lavam e passam, fazem mercado... E ai deles que não façam de boa-vontade, e no
capricho. Mando fazer tudo de novo. Enquanto não fica do meu gosto não dou a
tarefa por acabada. Não suporto gente preguiçosa, nem de desmazelo. Eu sei o
que passei quando o Ednaldo partiu dessa pra melhor me deixando sozinha com os
três. Genivaldo ainda mamava no peito. Mourejei demais nessa vida, Badia. Mas o
tempo da peleja já passou. Agora eu quero é descanso.
A
falta de interesse do filho para arranjar emprego, somados aos seus arroubos de
menino mimado, realmente causavam preocupação. No entanto, como mãe abnegada,
Abadia acreditava que o comportamento fosse apenas uma fase. Logo ele se
conscientizaria de que devia garantir o próprio sustento, como todo mundo. Para
seu desgosto, nem mesmo pelos estudos o filho demonstrava interesse; esnobou
sucessivos convites para participar de projetos que poderiam lhe garantir
encaminhamento para trabalhos e recusou bolsas de estudo ‘por não querer esmola
de ninguém’, como fazia questão de frisar.
-
Devia ter seguido meu exemplo, Badia. – continuou a baiana – Hoje estaria
vivendo, não digo como eu, mas, pelo menos, sem tanto aperreio, sem tanta
consumição.
-
Criei esse menino sem pai, dona Santana. Por isso, sempre tive medo de ser
enérgica demais. Mas não há de ser nada. Tenho fé na minha santinha que ele
ainda vai tomar jeito.
Abadia
nunca esqueceu o período em que o filho andou na companhia de Vagner da
Conceição, o Vaguinho, o garoto que acabou morto pelos comparsas, que o
acusaram de traição. Abadia proporcionaria, caso pudesse, a vida de facilidades
que o filho tanto ambicionava, para livrá-lo da ameaça de ter o mesmo destino. Porém,
tinha a oferecer apenas um barraco, sem conforto, e uma comida magra; sempre
tivera dificuldade para colocar o básico dentro de casa. O filho chegou a ficar
sem estudar, por falta de vaga em escolas públicas perto de casa. As roupas e
calçados que usava eram doados pelas patroas, ou garimpados em bazares de
igrejas e brechós.
-
Por que eu tinha que nascer pobre, hein? Por que não me abortou? Seria melhor eu
não ter nascido.
-
Não fala assim, filho. Deus castiga. Minha avó dizia que o destino da gente é
traçado antes de nascer; uns nascem pra ter boa-vida, venturas e alegrias,
outros, pra passar por perrengues, atropelos e dificuldades sem fim. Ela tava
certa. Sempre foi assim. Nunca vai mudar.
As
palavras da mãe deixaram o jovem tão enfurecido, que ele atirou o prato de
comida no chão, derrubou mesa, cadeiras e mais o que viu pela frente. Diante
daquele ataque de fúria, Abadia, mais uma vez, se sentiu totalmente impotente. A
mesma impotência que experimentou no dia em que descobriu que estava grávida.
-
Não vem com esse papo de gravidez. – reagiu o namorado ao ser comunicado que
seria pai – Nunca te prometi nada. Descuidou? O problema é seu.
-
Pensei que a gente tivesse namorando.
-
Pensou errado. Olha aqui, garota, veja lá o que vai fazer, hein? Eu sou muito
jovem pra estragar a minha vida por causa de uma bobagem de gravidez. Não conta
comigo. Tava tudo bom, mas sinto muito se foi sério pra você. Pra mim, nunca
passou de namorico.
A
jovem Abadia ouviu as duras palavras do namorado em estado de choque: difícil
acreditar que o rapaz bonito que conhecera durante os jogos de futebol no
campinho da favela fosse capaz de agir daquela forma.
-
É bonitinha... Ficava me dando bola... Eu sou homem, caramba! – ele disse.
Já
ia longe, quando retornou e, sem descer da motocicleta, entregou-lhe o objeto
que retirou do bolso da jaqueta.
-
Pega. Vende e usa o dinheiro pra se livrar disso. Vai ser melhor pra todo
mundo. Vai por mim.
E
partiu, sem olhar para trás. Abadia ficou plantada no meio do campinho de terra
batida, naquela hora totalmente deserto, com o objeto na mão, sem saber o que
fazer ou para onde ir. Na cabeça uma certeza: com os pais não poderia contar. “Escuta
bem o que digo: se filha minha pegar barriga, vai direto pra rua. Não tem
conversa. Já tem boca demais pra sustentar nesta casa”, ela recordou as
palavras do pai.
Enquanto
deu, Abadia manteve a gravidez em segredo. Quando a barriga começou a aparecer,
concluiu que a solução era seguir o conselho do namorado. Não seria a primeira
garota no mundo a se livrar de uma gravidez indesejada. Com esse pensamento,
ela resolveu procurar dona Mena, senhora que vivia num casebre no alto do morro,
conhecida como ‘fazedeira de anjos’.
-
Peguei barriga, dona. – ela disse, envergonhada – Meu namorado me deixou e meu
pai disse que vai me jogar no meio da rua.
-
Quem mandô ocê aqui? – tartamudeou a mulher, que parecia uma selvagem – Tô aqui
no meu canto, ocês vem mi procurá. Aí, faço o qui mi pede... O risco é por
conta de quem pede o sirviço. Num quero sabê se é certo ou errado, pecado ou
não. E se ocê fizé passage, espero a noite chegá e jogo o corpo no mato, pros
arubú comê.
Abadia
se manteve em silêncio; os pés pareciam colados ao chão.
-
Se qué si livrá du incômo, a gente dá um jeito. – prosseguiu a mulher, da porta
do casebre – A muleca tem pataca? Promodiquê num é di graça não.
Abadia
combinou de voltar no dia seguinte. Embora a ideia de estar prestes a condenar
a própria alma ao fogo do inferno a enchesse de temor, não era menor o medo de
ser atirada no meio da rua, grávida e sem ter para onde ir. Pela manhã, depois
de uma noite em claro, tomou o rumo da casa de dona Mena, a fazedeira de anjo’,
levando o ‘presente’ que recebera do namorado; como ele sugerira, para pagar pelo
aborto.
No
interior do barraco, Abadia não encontrou nada diferente do que se via do lado
de fora, ou seja, um amontoado de cacarecos, dentre eles, um móvel que parecia
uma cama, mas que, na verdade, tratava-se de uma tosca maca. Apesar de viver
numa casa tão miserável quanto a da parteira – o pai era um simples biscateiro,
que arrastava um ‘burro sem rabo’ morro acima e morro abaixo, e mal ganhava
para botar o básico na mesa, para alimentar os sete filhos –, ela sentiu o peso
da atmosfera miserável do ambiente.
-
Deita aí. Sunga o vistido, tira a calçola e abre bem as perna. Se prepara
promodiquê vai duê. – disse a mulher apontando a maca.
Abadia
deitou na maca, porém, assim que foi tocada pelas grosseiras mãos da ‘fazedeira
de anjo’, saltou para o chão e saiu porta afora, em desabalada corrida.
-
Que consumição é essa, Badia? – perguntou a mãe quando a viu entrar em casa,
completamente transtornada – Não acha que já tá na hora de falá o que tá
acontecendo?
Esquecida
de todos os riscos, Abadia abriu o coração. A mãe, dentro do possível, buscou ser
compreensiva. Entretanto, o pai, confirmando a ameaça muitas vezes repetida,
escorraçou-a de casa.
Mais
de vinte anos depois, ela estava diante do filho, que esteve a um passo de
abortar, tentando impedir que, como fazia a cada crise, ele procurasse Sinval
Donizete dos Santos, mais conhecido como Garrincha, chefe do tráfico no morro. Nessas
ocasiões, para evitar que o filho se envolvesse com o tráfico, Abadia se sentia
propensa a revelar a suspeita de que o antigo namorado, seu pai, fosse morador
da zona sul. No entanto, não arriscava; nunca soubera nem mesmo seu nome
completo, o endereço ou a que família pertencia; os encontros se davam apenas
quando o rapaz aparecia no morro para jogar futebol com os filhos das empregadas
da mãe.
Tomada
pelas lembranças, Abadia foi até o guarda-roupa e pegou o ‘presente’, a única
recordação do passado, já quase apagado na memória.
-
Se eu tivesse alguma pista do paradeiro dele, passaria por cima de todas as
mágoas, ressentimentos, o que fosse e ia atrás. Mas ele não ia se interessar
pelo filho, depois de tanto tempo. Me deixou justamente porque falei que tava
grávida.
Mais
tarde, Abadia jogou um surrado casaco sobre os ombros e saiu pelas vielas da
comunidade disposta a impedir que o filho fizesse o que tanto temia. “Alguém há
de ter visto o rumo que ele tomou”, ela pensou. Ninguém vira sombra do filho. Pouco
depois, sem ter mais onde procurar, ela tomou o caminho de volta para casa;
teria faxina na manhã seguinte. Não estava podendo com estripulias; a saúde não
andava boa, já sentia o peso dos anos, que não eram tantos assim, ainda nem
chegara aos cinquenta. No entanto, a aparência era de muito mais, em parte, devido
às asperezas e agruras que a vida sempre lhe impusera.
Como
suspeitava, o filho fora ao encontro de Garrincha, o amigo de infância que,
recusado pelo exército – como seu homônimo, ele tinha as pernas tortas –, viu
no tráfico o único meio de pertencer a uma organização em que pudesse angariar
respeito e, com sorte, galgar postos de comando. O filho de Abadia evitava ser
visto na companhia de ‘gente do movimento’; temia que atrapalhasse seus planos
de ascensão social. “Vai que um dia resolvem investigar minha vida e descobrem
que andei metido com essa gente? Aí, eu me ferro”, ele pensava. A preocupação
se estendia à mãe, que aturava por extrema incapacidade de se manter sozinho, e
a toda a comunidade, que ignorava, solenemente; não suportava aquela gente
pobre, feia e malcheirosa. No dia em que atingisse o topo da pirâmide apagaria
da memória que tivera a infelicidade de ter nascido do ventre de uma mulher miserável,
tacanha e insignificante. “Tanta mulher no mundo e eu tinha de ser filho de uma
reles diarista, que não consegue nem mesmo botar uma comida decente na mesa. É
muita falta de sorte”, ele lamentava.
-
Muita calma nessa hora, papai. – disse Garrincha ao ver o amigo aspirar o pó,
avidamente – Que tá pegando? Fala comigo. Qual é o enredo? Tá difícil encontrar
ricaça por aí, né?
-
Colei na gata que cabe direitinho no meu plano, mas descobri que ela é brigada
com o pai, que prefere viver na pobreza. Calculou o meu azar?
Garrincha
sorriu de satisfação; nunca levou a sério o plano do amigo. Entretanto, ao
perceber que sua reação pudesse ser notada, ele desfez o sorriso.
-
A garota tava dando condição, cara. Tava no caminho certo. Aí, surgiu o lance de
que não se dá com o pai e faz questão de dispensar a grana dele.
-
Deixa dessa bobagem de ficar correndo atrás de mulher rica, mano. Tu pode
conseguir grana pra viver vida de bacana aqui mesmo na comunidade. Não é papo.
É a real. Tu tem penetração entre os playboy, cara. Já calculou a grana que
pode faturar?
O
filho de Abadia mantinha viva na memória a lembrança do amigo Vaguinho, covardemente
assassinado pelos comparsas, porque ousou sonhar com uma vida melhor. Além
disso, para todos os efeitos, era filho de fazendeiro, dono de quase metade do
Mato Grosso.
-
Esquece isso, maluco. Da mesma forma que não consegui entrar pro exército, tu
também...
-
Tem nada a ver. Além do mais, não é sonho, caramba. Quando o sujeito não nasce
rico a única saída é apelar pra um bom casamento. Isso tá mais que provado, entendeu?
-
Isso funciona é com mulher, cara. Não vale pra macho. Se pelo menos, tu andasse
com coroa ou veado... Tem muito veado rico que dá vida boa pra garotão boa
pinta assim como tu, tá ligado?
A
insinuação transformou o papo numa divertida troca de socos e insultos. Embora
o filho de Abadia não admitisse, Garrincha era a única pessoa com quem podia
falar abertamente. No fundo, tinham muitas coisas em comum: enquanto um corria atrás
de ricaças, o outro almejava mais poder no tráfico.
Mais
tarde, ao atravessar a porta de casa, ele vislumbrou o espectro da mãe, no
escuro, e teve vontade lançar-lhe os costumeiros xingamentos; não suportava
aquela mulher o tempo todo no seu pé. Entretanto, foi direto para o quarto que,
por direito, seria dela, mas que usava como se fosse o senhor da casa, a mãe
que se contentasse com o duro sofá, e ela realmente se contentava. Então, ele
se ajeitou na cama, não muito diferente do sofá da mãe. Impossível pregar o
olho; se recusava a acreditar que estivera tão perto de deixar a vida miserável
para trás.
A
claridade trazida pelos raios do sol, que atravessavam as fendas das paredes e
janela, denunciava que beirava o meio-dia. Através dos rabiscos da mãe, ele tomou
conhecimento de que havia café no fogão, que deveria esquentar: a garrafa térmica
estava estragada. “Grande novidade!”, pensou. Também decifrou nos garranchos o
alerta para que não esquecesse a chama do fogão acesa à toa, pois o gás estava
no fim.
-
Não tem mesmo jeito. Enquanto fica flanando por aí, a mãe trabalha feito burro de
carga. – murmurou dona Santana, debruçada na janela.
-
Falou alguma coisa, dona Santana?
-
Falei sim, seu desocupado. Falei que o mercado que abriu lá embaixo tá
contratando trabalhador. Por que não passa lá? Quem sabe arruma vaga de entregador?
-
Não nasci pra trabalhar em mercado, dona Santana. Entregador é bom pros filhos
da senhora, que tão acostumados a pegar no pesado.
-
E tu tá acostumado é a explorar a coitada da Badia, não é?
Cerca
de uma hora depois, livre da vizinha enxerida, seguindo o trajeto de sempre, o
jovem desembarcou em Copacabana. Também como fazia todos os dias, caminhou até
o Leblon.
-
E aí? – saudou Manduca tão logo o avistou – O velho liberou a grana?
-
Nada, seu Manduca. – respondeu com fingido desapontamento – O velho é turrão.
Bem que eu liguei, mas ele nem quis me atender.
-
O malandro tá de caô, paixão. – interveio Jana – Só não vê porque não quer.
-
Qual é, dona Jana? Seu Manduca sabe que sou firmeza. Assim que a grana cair na
minha conta tá na mão de vocês. Olha só, tô até disposto a pagar um pouco mais,
pra compensar o tempo que tão esperando. Só queria pedir que não falassem nada
pra rapaziada. Que fique entre nós, valeu?
-
Tá legal. – disse Manduca – Última chance.
-
Daqui esse pilantra não leva mais nada fiado, ouviu Manduca? – disse Janaína.
Enquanto
o casal discutia, o falso rico se afastou do quiosque. Foi ao encontro de
Suzana, que devorava mais um livro, e postou-se ao seu lado.
-
Ei! – ela disse, incomodada – Não me lembro de ter contratado um guarda-costas.
-
Tava te manjando aí com seu livrinho e, de repente, sei lá, senti saudade dos
rangos de sua mãe. Sabe que eu moro sozinho, né? Não tenho muito jeito na
cozinha. Pedir comida... Não sou muito chegado em junk food... Já viu, né?
Gente do interior...
-
Sei como é. – disse Suzana – E por falar nisso, onde é mesmo que você está morando?
-
Tô passando uns tempos num hotel aqui mesmo na orla. Manter apartamento montado
é muito complicado. Contas pra pagar, serviçais... Mas cadê o resto da turma? Será
que fomos abandonados?
-
Lucas, pra variar, está na água, Demétrio e Larissa estão azarando por aí e o
Pedrão está ali tirando uma soneca, como pode ver com seus próprios olhos. Só falta
o Pedro Henrique.
-
O que houve com o PH?
-
Não sabe da garota que apareceu aí? Acho
que o nome dela é Elisa. Parece que dessa vez Pedro Henrique gamou mesmo. Não
fala noutra coisa. Aliás, ninguém fala noutra coisa por aqui. Lucas, Pedrão,
até o Demétrio... – disse Suzana deixando escapar uma ponta de despeito, confirmando
a suspeita de que nutria uma espécie de amor platônico pelo colega de turma.
-
E quem é a beldade? – perguntou Dimas, pouco interessado na desilusão amorosa
de Suzana – Pelo menos, é da nossa... Quer dizer, ela tem grana?
-
Pelo que tudo indica...
A
simples possibilidade de que a desconhecida fosse rica significava a chance de
pôr fim à decepção sofrida com Jane, ou seja, nem tudo estava perdido. “Hora de
botar o exército na rua”, ele pensou. Quando, mais tarde, após um mergulho, retornou
para a areia, PH estava por lá, na companhia da garota.
-
Então você que é...
Antes
que o caçador de fortuna completasse, PH apareceu do nada e levou a garota para
longe. A reação do colega, porém, não foi motivo de preocupação; cedo ou tarde,
tinha certeza de que acabaria surgindo a oportunidade de uma aproximação.
No
início da noite, na condução de volta para casa, estava convencido de que o pai
da garota fosse tão rico quanto o pai de Jane. “Tá na cara que ela nasceu em
berço de ouro. Quer saber? Não descanso enquanto não conquistar essa garota”,
ele murmurou. Em casa, a mãe quis saber o motivo do sorriso que trazia estampado
no rosto e, sem querer, cavou um motivo para ser vítima de mais uma
demonstração de desafeto e desrespeito do filho.
-
É foda pensar que nasci de uma mulher cuja presença, voz melosa e excesso de
zelo simplesmente me causam asco. – ele iniciou – Por que não me deu pra adoção?
Pelo menos, eu teria sido criado por alguém com mais grana. Há tantos casais
abastados que não conseguem ter filhos e optam pela adoção. Por que não me
vendeu? Podia ter feito uma boa grana. Bebês brancos valem muito mercado. Mas sempre
foi burra demais pra ter...
Não
aceitava o que o destino lhe reservou. Entretanto, em vez lutar para mudar a
situação através do estudo e do trabalho, como qualquer pessoa normal faria,
preferiu inventar a história na qual se apresentava como filho de um fazendeiro,
criador de gado do Mato Grosso. Para não cair em contradições, trazia tudo
muito bem esquematizado: o pai era João Otávio Capanema, a mãe, Sônia Menezes
Capanema, os irmãos, Júnior e Soninha. E não eram simples nomes; conferia a
eles uma existência quase real. Inclusive, com algumas peculiaridades. Por
exemplo: quando perguntavam por que o irmão mais novo e não ele levava o nome
do pai, a resposta estava na ponta da língua: a mãe, devido aos problemas que
enfrentou durante a gravidez, prometeu a São Dimas, seu santo de devoção, que o
filho levaria seu nome, caso nascesse saudável.
-
É por isso que tenho esse nome.