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Saudades da China e O despertador (peças teatrais- monólogos de Julio Fernando)

 

SAUDADES DA CHINA


( MONÓLOGO )


           TEXTO
          DE
               JULIO FERNANDO


CENÁRIO: LOCAL ABANDONADO

ZÉ- ( QUANDO ABRE O PANO, ZÉ ESTÁ CAÍDO, IMÓVEL, GEMENDO. DEPOIS DE ALGUM  TEMPO, SEMPRE GEMENDO, COMEÇA A SE MOVER COM DIFICULDADE. TENTA LEVANTAR-SE, SENTE-SE FRACO E CAI. AOS POUCOS CONSEGUE PÔR-SE DE PÉ. NOTA-SE QUE FOI DURAMENTE ESPANCADO. SEU CORPO ESTÁ COBERTO DE MARCAS, PRINCIPALMENTE O ROSTO. OLHA COM DESCONFIANÇA PARA TODOS OS LADOS. INDAGA-SE: ) Eles já foram embora? ( GRITA ) Tem alguém aí?( PAUSA. SILÊNCIO TOTAL. ) Já se mandaram! ( SENTE-SE ALIVIADO POR ESTAR SÓ ) Ainda bem! Pensei que não fosse mais acabar. Mais um pouquinho  e eu tinha passado dessa. Estava apagadão. Era um presunto fresquinho. Ia estar assim de urubu na espera. ( REPENTINAMENTE, NUM ACESSO DE FÚRIA, CORRE DE UM LADO PARA OUTRO ESQUECIDO DE SUAS DORES. ) Tem que haver uma saída. Preciso me mandar daqui antes que eles voltem para acabar comigo. ( PROCURA UMA SAÍDA.) Não há como sair daqui! ( NERVOSO ) Mas tem que haver uma porta, uma janela, um buraco qualquer. ( DESANIMADO ) Estou fodido! Não tenho como sair daqui. Nem sei que lugar é esse. Onde será que eu estou? ( VAI ATÉ A PAREDE E TENTA ESPIAR ) Não dá para ver. Está tudo escuro. ( GRITA ) Me tirem daqui! Não podem tratar um  homem  inocente como se fosse um  criminoso. Sou inocente! ( OUVEM-SE GARGALHADAS VINDAS DE FORA ) Eles  ainda estão aí.( GRITA ) Quem está aí? Que lugar é esse? O que querem de mim? Vocês pegaram o cara errado. Sou José da Silva Severino , o paraíba. ( NERVOSO )    Que diabos! Ninguém responde. Querem me enlouquecer? É isso. Querem me enlouquecer! ( GARGALHADAS CESSAM. SILÊNCIO TOTAL. VOLTA A SENTIR DORES ) Ai, ai, ai... Que vai ser de mim? Logo agora que eu pensei que ia ficar livre dessa gente. ( NUM ATO DESESPERADO, COMO SE ALGUÉM O OUVISSE. ) Alguém aí me ajude, por favor. Faz alguma coisa. Os “home” do Chefe me pegaram. Vão me apagar. É sério! Queima de arquivo. Essa gente não perdoa. Vacilei. Pisei na bola. Dancei. Salve uma vida! Preserve a raça humana! Salve um paraíba! ( RACIOCINA ) Não tem sentido. Paraíbas existem aos montes por aí. Ô, raça! Se paraíba pelo menos fosse baleia, mico- leão - dourado... Não faz sentido. E depois está todo o mundo torcendo para que morram todos os bandidos da face da terra. Ninguém ia dar importância se eu morresse. Um bandido a menos. Bandidos... Praga do Brasil! ( GRITA ) Morte aos bandidos! ( PAUSA. COMO SE  ESTIVESSE  PRESTANDO UM DEPOIMENTO.) Sabe, eu tentei levar uma vida normal logo que cheguei aqui vindo da Paraíba. Cheguei como chegam centenas todos os dias, em busca de trabalho, moradia decente, melhores condições de vida... ( NOSTÁLGICO ) Tinha dezoito anos quando desembarquei na rodoviária Novo Rio, com o coração batendo forte no peito e uma louca vontade de vencer. Era uma esperança só. ( PAUSA ) Lá na Paraíba, falava-se que aqui no sul é que era lugar de se viver. Terra da fartura, do  dinheiro fácil, da vida boa. Longe da ameaça da fome e da seca. Aqui ganhava-se bem. Empregado tinha valor. E eu  estava cansado daquela vida de lá. Vida sem futuro, sem nada. Aqui eu ia ganhar dinheiro para um dia poder voltar pra Paraíba. ( PAUSA ) Tudo sonho de um cabra da peste que não conhecia a vida. Logo começaram os problemas. O dinheiro acabou e a fome chegou. Fome? ( RACIOCINA ) Por que será que a gente  tem fome?  Fome de comer, fome  de poder, fome de dinheiro, fome de justiça, fome de viver... Fome! ( VOLTA A SI. ) Emprego? Tudo pedia experiência de anos de carteira. Experiência, sempre experiência. Logo eu que nunca tinha trabalhado de carteira assinada antes. Trabalhava lá na roça. Quando tinha trabalho. Na colheita da cana de açúcar, não sabe? ( PAUSA ) Andei essa cidade inteira debaixo de sol e chuva em busca de trabalho. Andei tanto que acabou furando o único par de sapatos que eu tinha; uma alpercata vagabunda. Nem por isso desanimava. Botava jornal para proteger os pés e continuava... Em dia sol, apesar do calor, até que dava para aguentar. Era só trocar o jornal todo dia. Quando chovia é que era duro. ( PAUSA ) Com isso fui descobrindo que a cidade maravilhosa não era tão maravilhosa assim. A tal vida boa existia sim, mas para uns poucos privilegiados da sorte. ( GRITA ) A miséria da Paraíba não é menor que a miséria daqui! ( PAUSA ) O sonho de ganhar dinheiro, voltar para Paraíba e me casar com a Dorinha  estava  cada vez mais distante. Fiquei muito tempo desempregado, dormindo na rua. Por pouco não virei mendigo.  Acabei indo morar no morro. ( PAUSA )  Trabalho? Construção civil. É. Trabalho duro de peão de obra . Ali vi acontecer muita coisa. Vi muito cabra morrer soterrado quando havia desabamento ou cair das alturas feito saco vazio. ( FORA DE SI ) Cuidado Zeca! Cuidado!. ( GRITA ) Zecaaaaaa!!! Caiu! ( VOLTA A SI. )Pobre Zeca. Tinha os mesmos sonhos que eu. Morreu trabalhando. Defendendo o seu, honestamente.( PARA SI. ) Que bobagem! Para que ficar lembrando dos mortos? Pelo menos o Zeca não sabia que ia morrer. A morte chegou para ele de surpresa. Melhor do que eu que  sei que a qualquer momento ela pode chegar. ( PAUSA ) Oxente! Que diacho de pensamento mais besta! ( PAUSA ) Só de pensar chega a  me dar um arrepio na espinha. ( PAUSA ) Se pelo menos eu tivesse um cigarro para fumar. Um preto ou uma brizola. ( PROCURA  PELOS BOLSOS NERVOSAMENTE. )Não tenho cigarro nem porra nenhuma! Vou ter que enfrentar tudo isso careta. Fumar até que ia me distrair. Evitava pensar tanta besteira. ( PAUSA ) Mas que a vida peão de obra é uma droga, lá isso é. Eu mesmo tenho uma marca aqui, veja. ( MOSTRA A PERNA. ) Foi uma pedra que rolou e me imprensou contra o chão. Pensei que ia ficar aleijado. Graças a Deus foi  só o susto. De vez em quando eu sinto umas pontadas, aí eu bebo umas cachaças, fumo, cheiro e logo passa. ( PAUSA ) Aquilo não era vida de gente! Não a vida que eu tinha sonhado desde garoto. ( NOSTÁLGICO ) Queria ser aviador. Ficava olhando para o alto esperando que um avião cruzasse o céu  deixando para trás um rastro de fumaça. Demorava muito. Às vezes passava meses sem aparecer um. ( BRINCA DE AVIÃOZINHO. )Ron, ron, ron... Quando eu era criança pensava que avião entrava no céu e ficava imaginando o dia em que pilotando uma máquina daquelas eu fosse fazer uma visita pra São Pedro. Ia pedir muita chuva, colheita farta... São Pedro não ia me negar um pedido desses. Esperava e sonhava. Por pouco não estou lá até  hoje, olhando para o alto. Minha mãe dizia que eu não era bom das ideias. ( IMITA A VOZ DA MÃE. ) “Onde já se viu? Esse menino vive olhando para o alto. Vai acabar de pescoço torto.”( VOLTA  A SI. VAI ATÉ A PAREDE E TENTA ESPIAR. OUVEM-SE VOZES E RUÍDOS QUE AUMENTAM E DIMINUEM ATÉ QUE DESAPARECEM. SILÊNCIO TOTAL.  DESESPERADO. ) Socorro! Faça alguma coisa! O menino da Paraíba que sonhava em ser aviador vai ser morto. Faça alguma coisa! Chama os “home”. ( ASSUSTADO ) A polícia? Não! A polícia, não! ( RACIOCINA ) Será que eles podem fazer alguma coisa por mim? Será que eles podem fazer alguma coisa por alguém? A polícia é para proteger o cidadão! Será? Não, a polícia, não! Se eles botam a mão em mim, estou perdido. ( INDECISO ) Então avisa a quem? Merda! Não tenho saída. Avisa... Avisa a mãe. Só uma mãe pode salvar um filho numa hora dessas. ( TRISTE ) Mas ela está tão longe. ( TERNO ) Coitada!  Escrevi uma carta dizendo que estou voltando. Ela está me esperando. Uma mãe espera o filho na China. Não. Na  Paraíba. O filho que um dia saiu de casa dizendo que ia conquistar o mundo montado num avião bem grande e que voltaria cheio de dinheiro. ( IMAGINA-SE NO MEIO DE MUITO DINHEIRO. ) Dinheiro, dinheiro... Dinheiro. Muito dinheiro. Dinheiro que  não acaba mais. O Tio Patinhas da Paraíba.( INCISIVO ) Enquanto a mãe espera o filho, ele espera a morte que pode chegar a qualquer momento. ( FORA DE SI. ) Que cara tem a morte? ( GRITA ) Que cara tem a morte, hein? Como será que ela vem vestida? Será que vem de negro com uma foice na mão? Ou na forma de uma mulher vestida de branco, bonita e formosa, trazendo a paz que não se pode encontrar aqui? ( CAI EM SI. ) De novo esses pensamentos esquisitos. Não posso pensar assim. Tenho que pensar positivo. É isso. Pensamento positivo. Não que eu tenha medo de morrer. Não é nada disso. Sou cabra macho. ( PAUSA)  Quem sabe eles já encontraram a carga e só estão me passando um susto?  O  Chefe sempre gostou do meu serviço. Elogia  e tudo. O Rato me disse que ele está satisfeito comigo. Vai até me subir de posto. ( ORGULHOSO ) Vou ficar responsável pela boca- de- fumo. Já Pensou? Puta responsabilidade! Dois berros na cintura  que é para impor respeito. Dois não. Três. Ou quatro. Sei lá! Quantos eu quiser. Para ficar armado até os dentes. É preciso ficar alerta. Não pode vacilar. ( PAUSA )  Vou exigir uma arma pesada. Uma escopeta bem lindona. ( DESDENHOSO ) Mas eu não quero, não. Estou decido a voltar para Paraíba. Lá que é o meu lugar. Junto de minha mãe e de Dorinha, minha noiva. Eu tenho uma noiva. Ela se chama Dorinha. A gente namora desde criança. ( ARREPENDIDO ) Devia ter ficado lá. Hoje estaria casado, levando uma vida simples e feliz. ( JUSTIFICANDO-SE ) Mas eu queria dar uma vida boa para ela, não sabe? Não uma vida de miséria, vendo os filhos crescerem doentes e sem escola. ( PENSATIVO ) E se ela viesse para cá? É. A gente se casava aqui. ( CONFIANTE )  Mando o dinheiro da passagem e ela vem.  Está decidido. A Dorinha vem para o Rio de  Janeiro e a gente se casa aqui. É claro que seria melhor se fosse lá. Imagino como seria; uma festa como a Paraíba nunca viu igual.  Ia ter de tudo. Muita comida, muita bebida, banda de música e até fogos de artifício. ( ENTREGA-SE AOS DEVANEIOS. POSICIONA-SE COMO SE ESTIVESSE NUMA IGREJA. AJEITA A ROUPA NO CORPO E FICA EM POSIÇÃO DE ESPERA, SORRINDO AMARELO. ENTRA FOCO DE LUZ EM SUA DIREÇÃO. CANTAROLA A MARCHA NUPCIAL. ESTÁ RADIANTE DE FELICIDADE. ENSAIA UM CERTO NERVOSISMO. OLHA FIXAMENTE PARA UM PONTO COMO SE ALGUÉM CAMINHASSE A SEU ENCONTRO. PARA DE CANTAROLAR. AGE COMO SE RECEBESSE ALGUÉM. VIRA-SE E AJOELHA-SE. FAZ VOZ DE PADRE. ) “ A senhorita Maria das Dores, aceita o senhor José da Silva Severino como seu legítimo esposo, prometendo amá-lo e respeitá-lo todos os dias de sua vida?” ( REAGE COMO SE OUVISSE UMA RESPOSTA AFIRMATIVA. NOVAMENTE FAZ VOZ DE PADRE. ) Assim sendo, eu vos declaro marido e mulher. O que Deus uniu, o homem não separa. Amém! Pode beijar a noiva. ( LEVANTA, APROXIMA-SE DE ALGUÉM IMAGINÁRIO E BEIJA COM AMOR. NOVAMENTE CANTAROLA A MARCHA NUPCIAL. SUA FELICIDADE É TOTAL. PARA DE CANTAROLAR, BRUSCAMENTE. CAI EM SI. ) Agora não dá mais, minha doce Dorinha. Nada mais é possível para nós dois. Minha Dorinha, minha doce e frágil flor do campo. É o fim! Ou  sei lá. Quem sabe? ( PAUSA ) Só por um milagre eu saio dessa. ( PENSATIVO ) Milagre?! Será que isso existe? Deus! E eu sei rezar? Acho que não. Mas eu vou tentar. ( PAUSA ) Será que vai adiantar de alguma coisa? Deus aceita oração na hora do desespero? Sei lá. Não importa. Vou tentar. Vamos ver como é que começa... começa pela sinal da cruz. ( TENTA FAZER E SE CONFUNDE. ) Que mão devo usar? Agora me pegou. Não me lembro com que mão devo fazer o sinal da cruz. ( TENTA MAIS VEZES ATÉ QUE ACERTA. ) Acho que é assim. ( FAZ CORRETAMENTE ,DEPOIS SE AJOELHA. ) Isso. Agora é só começar a oração. Mas que oração? Não me lembro de nenhuma. Puxa pela memória Zé da Silva Severino. Vamos lá. Pai nosso perdoai os pecadores do mundo e livra da hora da morte este pecador. Não é assim. É, Pai nosso perdoa os pecadores do mundo e daí o pão... Também não é assim. ( DESANIMADO ) Poxa! Nem rezar eu sei. Minha mãe sempre insistiu para que eu aprendesse, mas nunca fui chegado nessas coisas de igreja, religião. ( CONFIDENCIAL ) Achava que era coisa de maricas. Bem que o Padre Olavo queria que eu fosse coroinha. Aquele que ajuda o padre  na hora da missa. ( ENVERGONHADO ) Tinha que usar aquela roupa esquisita. Parecia roupa de mulher. Nem pensar! Minha mãe exigiu, prometeu surra, mas bati o pé e não fui. ( ARREPENDIDO ) Agora até que ia me servir de alguma coisa. Pelos menos tinha aprendido uma oração para rezar na hora do aperto. ( PAUSA ) Enquanto isso eu fico aqui... ( PAUSA ) Quanto tempo faz que eu estou aqui? Uma hora, duas horas, três, um dia, uma semana, um mês? Não sei! Não sei de nada! ( DESCONTROLADO ) Ninguém sabe de nada! O vereador não sabe de nada, o prefeito não sabe de nada, o deputado, o governador, o senador, o presidente da república e seus ministros, ninguém sabe de nada. ( COMO SE ALGUÉM O OUVISSE. ) Quem é que sabe de alguma coisa? Quem? Será que alguém tem certeza do que vai acontecer daqui a dois segundos? ( APONTA PESSOAS IMAGINÁRIAS. ) O chefe  de família, o  senhor, tem certeza que vai continuar no emprego e com isso garantir o sustento de sua família? Não tem! A dona de casa, a senhora , tem certeza que o preço do chuchu  amanhã vai ser o mesmo preço de hoje? Não tem! Ninguém tem certeza de nada. Ninguém está  menos preso do que eu. ( CONFIDENTE ) Estamos todos presos em grandes armadilhas que  o destino nos prepara. Não se preocupe em tentar se desvencilhar. ( RI ) Estamos presos para sempre! Escravos dos nossos sonhos. ( PAUSA. COMEÇA A BRINCAR COMO SE FOSSE CRIANÇA. PEGA PEQUENOS OBJETOS QUE VAI ENCONTRANDO PELO CHÃO ) Aqui é a entrada da fazenda. Uma entrada bem bonita. Agora, aqui é a sede da fazenda, uma casa bem grande onde eu vou morar com a Dorinha e com a minha mãe também.  Olha a minha mãe na janela.  Dorinha colhe frutas no pomar. Aqui mais para baixo é o curral. Olha a vaquinha. Vaquinha gorda, leiteira. Tem também jegue, bode, cabra, galinha...  O  canavial está no ponto para cortar, daí vai para a usina. ( PARA REPENTINAMENTE. CHUTA TUDO COM MUITO ÓDIO, DEPOIS SENTA-SE CALADO OLHANDO OS OBJETOS CAÍDOS. PAUSA. ) E o Rato? Será que pegaram ele também? ( PARA SI ) O Rato é meu amigo. Foi ele quem me arranjou essa boca. Conheci no morro. Via meu  esforço para ganhar uns trocados e quis me ajudar. Minha vida mudou muito depois que conheci o Rato. No início eu não queria. Meu negócio era vencer na vida pelo trabalho limpo e honesto. Aos poucos percebi que ninguém vence na vida trabalhando de peão de obra. Bem que eu tentei. A gente luta, se sacrifica, se esfola e quem fica rico é o patrão. Cansei! Cansei dessa luta desumana. ( COMO SE ALGUÉM O OUVISSE.) Sabe, eu sou um cara honesto, trabalhador. ( NERVOSO ) Mas ninguém é de ferro. Tem muito ricaço por aí que nunca foi honesto na vida e nem por isso vai para a cadeia. ( PAUSA. MAIS CALMO ) Foi o Rato que me fez ver isso. Ele também sofreu para caramba até descobrir que não adianta bancar o bonzinho se a barriga está vazia. ( PAUSA ) Enquanto os políticos gastam o dinheiro do governo, o povo morre de fome. Nego levanta às quatro horas da manhã, pega um trem lotado, viaja feito sardinha na lata para não chegar atrasado no trabalho e tudo que ganha é um salário mínimo e olhe lá. Tem muita gente por aí que no desespero está aceitando até por menos. Isso que é o Brasil. Brasil?! O Rato me fez ver tudo com clareza. Ele me abriu os olhos. Me fez ver tudo politicamente, como ele diz. ( PAUSA ) Eu acreditava em todo mundo. Pensava que tudo era vontade de Deus. Se o homem sofria é porque Deus queria assim. A fome, a sede, o frio, a seca, as doenças e tudo que é sorte de misérias,  tudo vontade de Deus. Vontade de Deus!? Vontade dos homens que estão no poder. Para eles tanto faz se tem gente morrendo de fome ou não. O Rato entende das coisas. Cabra bom aquele. Ninguém passa ele para trás. É esperto. Aprendeu com a vida. (CORDATO) Está bem. Pode dizer que ele é marginal perigoso, que matou muita gente, roubou, fez o diabo. ( ORGULHOSO ) Tudo em nome da sobrevivência. Quando o cara está na pior não tem escolha, tem que entrar no jogo. Ninguém nasce bandido. Vai perguntar para os caras se eles escolheram essa vida. ( PAUSA ) Entrei nessa porque o Rato me disse que era limpeza. Que podia  entrar ficar uns tempos, ganhar uma grana esperta e depois me mandar sem problemas. ( PAUSA ) Era isso que eu teria feito se a carga não tivesse desaparecido. Não sei o que foi que deu errado. Fui lá, atravessei a fronteira, peguei a carga e trouxe. Fiz tudo certo.  ( CHEIO DE SI )Nisso eu sou o melhor! Ninguém engana a barreira melhor do que eu. O guarda faz sinal para parar, dá uma olhada e manda seguir. Não tenho culpa de ter essa cara de trabalhador honesto. Cara de fome! ( PAUSA ) Foi falta de sorte. Só o Rato pode me ajudar. Mas onde ele está agora? Será que ele sabe  que eu estou aqui? ( CONFIANTE ) Se soubesse garanto que intercedia por mim! Ele é amigo! ( COM CARINHO ) O melhor amigo que eu tenho. Um verdadeiro irmão. Só que ele não pode me ajudar porque não sabe que eu estou nessa enrascada. ( PARA FORA ) Se alguém encontrar o Rato por aí, diz para ele que eu estou aqui, que vão me apagar. ( PAUSA ) Não. Ninguém conhece o Rato por  aqui. Ele não anda por essas bandas. Está morando numa mansão na Barra da Tijuca. Virou gente  fina. Está  por cima. Ele merece. É gente boa. ( VOLTA A SENTIR DORES ) Enquanto isso fico aqui falando para as paredes. ( PORTA ABRE E ENTRA UM FOCO DE LUZ. ZÉ RECUA, AMEDRONTADO. JOGA-SE NO CHÃO E COMEÇA A CONTORCER-SE COMO SE LEVASSE SOCOS E PONTAPÉS. ) Não! De novo, não. Não sei de nada. Já disse tudo o que eu sabia. Fiz tudo como estava combinado. Atravessei a fronteira peguei a carga e trouxe. É tudo. Estava lá. Eu juro! ( NOVAMENTE CONTORCENDO- SE ) Estou  limpo nessa, gente. Acredita em mim. Sou honesto. Nunca dei furada. O Chefe sabe... Ai, ai, ai...( DEBATE-SE CADA VEZ MAIS, ATÉ QUE FICA IMÓVEL. FOCO DESAPARECE. CONTINUA CAÍDO, IMÓVEL. LEVANTA-SE REPENTINAMENTE ) Um dia minha mãe me disse que eu não seria rico nem aqui e nem na China.( FORA DE SI ) Veja mãe. Seu filho voltou rico. José da Silva Severino, seu Zé, agora é homem rico. Posso comprar fazendas, gado, posso ter um canavial só para mim. Conquistei o mundo montado num avião bem grande, cheguei na China e encontrei o tesouro. ( CONFIDENTE ) A China é um lugar maravilhoso, minha mãe. A China é bem longe daqui, do outro lado do mundo. Lá tudo é de um colorido tão forte que mais parece o arco-íris. (  PAUSA.  TIRA UM ENVELOPE DO BOLSO DE ONDE RETIRA A CARTA QUE PASSA A LER EM VOZ ALTA E COM DIFICULDADE. ) “Caro Zé. Espero que esta te encontre cheio de saúde e alegria. Tenho duas noticias para você. A primeira é que vossa mãe, dona Maria, faleceu há um mês. Coitada! Antes de morrer disse que queria te ver pela última vez. ( PARA A LEITURA. ) Uma mãe morre na Paraíba esperando o filho que nunca voltou. ( IMITA A MÃE. )  “Vem para dentro, menino.” “Para de olhar para o alto!” “Esse menino não é bom das ideias. Saiu ao pai que só sabia de beber  cachaça e tocar viola. Um vagabundo sonhador! Esse menino ainda vai me dar muito trabalho na vida.”( FORA DE SI ) Mãe, vou para o sul ganhar muito dinheiro. ( NOVAMENTE IMITANDO A MÃE ) “Vai me abandonar, como seu pai me abandonou?” ( TRISTE ) Pobre mãe! Agora tudo não passa de uma lembrança. ( PAUSA.  VOLTA À CARTA. ) “A Segunda notícia é que me casei faz três anos com o Manoel eletricista , lembra dele? Sei que esta notícia vai ser um choque para você e que eu devia ter dito antes, mas não tive coragem. Apesar de tudo gostaria de dizer que sempre te amei e que nunca vou deixar de pensar em você. Mas sabe como é, né? Você foi embora e nunca mais voltou. Vê se dá para entender. Eu não podia ficar esperando a vida toda. Todo mundo já estava dizendo que eu ia ficar para o caritó se ficasse esperando por você. Aí apareceu o Manoel, um sujeito de bem e me pediu em namoro. Aceitei e deu nisso. Estou casada, sou mãe de dois filhos lindos e posso dizer que sou muito feliz. Espero que você também tenha encontrado a felicidade nos braços de outra. Adeus! Sua Dorinha.” ( PAUSA. NERVOSO ) Traidora! E eu aqui pensando que você estava me esperando. Casada!? ( CONFIDENCIAL ) É bem verdade que eu tive muitas mulheres. A Judith, a Dos Anjos, a D’Ajuda, mas nenhuma foi caso sério. ( PAUSA ) Para ser sincero quase me amarrei na Dos Anjos. Ela tinha jeito tão especial. Era a mais parecida com a Dorinha. Quase acabou em casamento. A gente chegou a dividir o mesmo barraco durante um tempo, mas aí ela começou a pegar no meu pé. Era muito ciumenta. Queria até adivinhar os meus pensamentos.  Onde eu ia, com quem, se demorava um pouco mais... Apesar disso até que dava para aguentar, mas descobri que ela estava fazendo feitiço para me prender. Não prestou. Mandei embora! ( PAUSA ) A Dorinha não tinha esse direito. Ela prometeu esperar por mim. ( FORA DE SI ) Não fique triste, minha Dorinha. É só o tempo de ganhar um bom dinheiro para poder voltar para essa cidade e me estabelecer como fez o Néquinha da venda, seu Duarte da loja... É por pouco tempo. Aí eu volto e a gente se casa. Promete que me espera o tempo que for necessário? ( PAUSA. CAI EM SI.) Ela prometeu! Foi traição. No duro que foi. ( PAUSA ) Dorinha casada, minha mãe morta... Poderia ter morrido enganado. ( ENTRA A VOZ DO RATO. ) “E aí,  paraibinha otário? Está se divertindo? ( PARA A VOZ. ) É o Rato. As vezes ele fala de um jeito que até ofende a gente. (  VOLTA A VOZ ) “Pensou que ia saltar fora, não é? Qual é, meu? Entrou tem que ficar. Tu é muito otário. Achou que passava a perna em todo mundo. Taí, agora está fodido e mal pago. Bem feito! É...” ( DESESPERADO ) Pára com isso, traidor safado! Vivia dizendo que era meu amigo, que eu podia  confiar e coisa e tal. Filho de uma jumenta. Bexiguento! Cabra safado! ( TRISTE ) Logo você Rato? Todo mundo podia... Não, não pode ser. De onde estão vindo essas vozes? Quem está aí?  ( PAUSA. SILÊNCIO TOTAL.)  O que me resta a perder agora? Nada! ( CORRE DE UM LADO PARA O OUTRO, DEBATENDO-SE COMO UM LOUCO. ) Por que não acabam logo com isso? Por que não entram aqui e acabam com isso de uma vez?  Vamos lá. Eu confesso que dei um fim na carga. Está legal. Vacilei nessa. Pode me apagar. Mereço a morte! ( GRITA ) Morte a José da Silva Severino,  o otário, o imbecil, o ingênuo, o paraibinha que acreditava no amor e na amizade vencendo canhões. Morte àquele garotinho que ficava olhando para o alto à espera que um avião cruzasse o céu em mais uma visita a São Pedro! ( PAUSA . GRITA ) Vocês estão aí? Tem alguém aí? Responde. Covardes! Otários são vocês que pensam que eu sou otário. Descobriram tudo, né ? O paraibinha otário passou a perna na gangue do Chefe. ( GARGALHADA ) Daria tudo para ver suas fuças agora. Nunca pensaram que o paraíba fosse tão esperto. ( PARA SI ) Sou cabra safo. Esse mundo é dos espertos. ( PAUSA ) Está bem. Pode dizer que eu estou nas suas mãos, que não tenho saída. Mas uma coisa é certa; fiz um estrago legal. Estava tudo armado. Com essa carga na mão ia começar minha vida de traficante. Comprava muita arma, arma pesada, munição, troço responsa. O Tuca estava vendo tudo para mim. Negócio seguro. Aí eu formava meu bando e queria ver quem é que ia poder comigo. O plano perfeito. Com minha gangue formada, botava o pessoal do Chefe para correr. Passava fogo em todo mundo. Nada de ter piedade. É a lei do morro. Quem pode mais fica dono do pedaço. Zé da Silva Severino, o paraibinha otário, dono do morro, respeitado por todo mundo. Daí a virar notícia de jornal era um pulo. Tudo que era jornal ia dar na primeira página: “Zé da Silva Severino, o paraibinha, toma o morro da Lambança.” “Zé da Silva Severino, o bandido mais temido do Brasil.” ( EMPOLGA-SE ) “Polícia arma cerco para prender o bandido Zé da Silva Severino, o paraibinha. O morro da Lambança está todo tomado. O marginal está encurralado, senhores e senhores. Sensacional! Sensacional! O paraibinha consegue escapar ao  cerco policial. Que glória! Ia gastar muita munição, fazer o diabo. Zé da Silva Severino nunca se entregaria. Se fosse preciso enfrentava os “home” no peito. Queria ver quem  é que ia poder mais. Na minha gangue só ia entrar cabra macho, disposto para luta. Acha que ia dar mole?  Que é que está pensando? Comigo o negócio é no pau. Não sou igual ao Chefe que se borra todo só em ver os “home”. Comigo, não. Eu sou a lei. Mando e desmando. Sou o Rei! Se não me respeitar, morre. ( PAUSA ) E outra, não ia ficar só no morro da Lambança, não. Em pouco tempo dominava todas as favelas do Rio. Ia dominar morro por morro, como numa grande guerra, batalha por batalha até estender meu domínio por toda a cidade. Em pouco tempo já era dono de tudo. Aí queria ver se esse país não entrava nos eixos. Me declarava rei do Brasil. Cuidava de acabar com a fome, a miséria, o desemprego, a falta de habitação... Nada de marajá! Todo mundo seria trabalhador. Se andasse direito estava feito. Tinha tudo. Frango com macarronada no domingo, com direito a sobremesa. Fim da miséria! Com um decreto acabava com a seca no nordeste de vez. Aquilo ia virar um paraíso. Ninguém ia querer sair de lá mais nunca. Nada de briga por causa de terra. O Brasil é grande e dá para dividir um pedacinho para cada um plantar e colher. Não ia existir mendigo, nem crianças nas ruas. No Natal cada criancinha teria seu brinquedo... ( CAI EM SI. COMO SE ALGUÉM O OUVISSE. ) Sonhei demais, né? Pode dizer. Mas qual é a saída para quem vive num país miserável como esse? Tem que sonhar! Enche os cornos de fumo e sonha. Está pensando  que é fácil? É porque nunca teve que apagar um cabra pedindo para viver. Nunca viu o pavor da morte nos olhos de ninguém. ( PAUSA ) Participei de muita coisa ruim nessa vida. ( PAUSA ) Estão esperando, o quê? Acaba logo com isso. Já confessei. Eu dei um fim na carga. Pode me apagar. ( PAUSA ) Onde está?  ( RI ) Essa vocês perderam para sempre. Foi negócio bem feito. Fui idiota em acreditar naquele traidor. Devia saber que o Rato era da banda do Chefe. Fingiu que era amigo, acreditei. Se saio daqui com vida ele vai ser o primeiro a cair. É assim que a gente trata os traidores. ( GRITA ) Morte aos traidores da pátria! ( MARCHA COMO SE ESTIVESSE À FRENTE DE UM EXÉRCITO. ) Avante, camaradas! A pátria precisa de homens bravos e fortes. Confiança companheiros. A luta continua, a luta continua... A hora é de luta. Vamos enfrentar os batalhões do inimigo que avançam sobre nós. Um, dois, um, dois... O inimigo está se aproximando. Lutai! A pátria necessita de braços fortes. O inimigo é poderoso, mas não é invencível. Avante companheiros! A luta! ( PORTA ABRE. ENTRA FOCO DE LUZ. ZÉ DA SILVA SEVERINO ENFRENTA DE PEITO ABERTO. OUVEM-SE BARULHO DE TIROS. VÁRIOS DISPAROS. ZÉ CAI BALEADO E MORRE. LUZ APAGA EM RESISTÊNCIA.)                                     

FIM





O DESPERTADOR
(MONÓLOGO)

JULIO FERNANDO

1997
APARTAMENTO  CONJUGADO, VAZIO.  APENAS  DUAS CADEIRAS DISPOSTAS ALEATORIAMENTE. SOBRE UMA DELAS ESTÁ UM PANO PRETO, COMO SE ESCONDESSE ALGO. DAGOBERTO ENTRA VINDO DOS FUNDOS  TRAZENDO UMA CAIXA DE PAPELÃO:
DAGOBERTO- (FALA COMO SE ALGUÉM FORA DALI O OUVISSE) Não adianta ficar aí com esta cara triste. Eu não posso fazer nada. Ela não te quer na casa nova. Está irredutível. Acho que você conquistou uma inimiga para o resto de sua vida. (PAUSA) É lógico que eu falei que você está comigo todos esses anos e que sempre foi um companheiro fiel. Afinal, há quanto tempo a gente está junto? Dez, quinze anos? Nem sei. Perdi a conta dos anos de convivência. Uma convivência boa, pacífica, ordeira com cada um sabendo exatamente o seu lugar. Parecia até um casamento. A Míriam vive insinuando que às vezes parece que gosto mais de você do que dela. Veja que bobagem! A Míriam é muito ciumenta. No fundo ela tem medo de que eu dê mais atenção a você que à ela. Não tem nada a ver. Gosto dos dois do mesmo jeito. Aliás, do mesmo jeito não. Porque você não pode me dar o que ela me dá, não é? Gosto dos dois com a mesma intensidade. É isso. (PAUSA) Por que você não faz alguma coisa para conquistar a Míriam? Apesar daquela cara de brava, ela é boa gente. Não pode? Está acima de suas forças? Tudo bem. Eu compreendo. (PAUSA) Vocês não tinham nada que inventar essa briga para me colocar nessa enrascada. Agora sou eu quem tem que tomar uma decisão.( PARA A PLATEIA) Já imaginaram a minha situação? Vocês não estão entendendo nada, não é? Eu explico. É que eu estou vivendo um sério dilema. Em primeiro lugar, devo dizer que o meu nome é Dagoberto da Silva, tenho trinta anos, sou chefe de tesouraria numa firma do ramo comercial e acabo de me casar com uma moça chamada Miriam. Sou, portanto, um recém-casado. (AGRADECE A PLATEIA) Obrigado. A gente vai ser feliz, sim. (SEM GRAÇA) O que isso tem demais? Não teria nada. Uma história como outra qualquer de duas pessoas que resolvem se casar. Não existisse entre nós uma séria desavença. É que a Míriam, antes minha noiva e agora minha mulher... Tenho que me acostumar com essa ideia de que agora tenho uma mulher, oficialmente. A Míriam não quer aceitar que eu leve o Zé para morar com a gente.  Ei, não é nada disso que vocês estão pensando, não. (SAI E VOLTA) Zé! Onde você está, Zé? Tem um pessoal aqui querendo te conhecer. (PARA A PLATEIA) Ele é meio tímido. Onde será que ele se meteu? Ele estava aqui agora. (PARA A PLATEIA) Alguém viu o Zé por aí? (DESCE DO PALCO E PÕE-SE A PROCURAR O ZÉ,  SEMPRE INTERPELANDO A PLATEIA) Você viu o Zé? (LOCALIZA ZÉ NO PALCO E VOLTA PÉ ANTE PÉ COMO SE QUISESSE SURPREENDÊ-LO. ZÉ ESTÁ SOBRE A CADEIRA DEBAIXO DO PANO PRETO.) Este é Zé, o despertador. Na verdade, muito mais que um  despertador, ele é um amigo muito querido do qual eu tenho que me separar depois de anos de vida em comum. Eu sei que vocês acham isso estranho. Eu também, às vezes, me pego achando tudo isso uma grande loucura. A verdade é que o Zé tem sentimentos. É quase um ser humano. O problema é que a Míriam não vai com a cara dele. Acha que ele não combina com o mobiliário e que está fora de moda. No que eu não concordo. Acho que o Zé combina bem com qualquer móvel, seja moderno ou clássico. Vocês não acham que o Zé combina bem com qualquer ambiente?  Pois é. Apesar de muito abatido com toda essa situação: veja que classe, que elegância! E depois amigo não sai de moda, não é? (PARA ZÉ) Não pense que eu sou um ingrato, Zé. Sou o primeiro a reconhecer a sua lealdade, companheirismo, fidelidade e, por que não dizer, o seu amor? Sim, porque eu posso dizer que te amei. Houve momentos em que só pude contar com você. Quando tudo ia mal, era só olhar para a mesinha de cabeceira e lá estava você me dando aquela força. Você resistiu a tudo: planos econômicos, desemprego, inflação alta, queda de presidente, gripes, resfriados e até a falta de corda. (PARA A PLATEIA) O Zé é um relógio de corda. Daquele tipo que a gente tem que acertar toda noite antes de dormir. Só que  muitas vezes, vencido pelo cansaço, eu esquecia de dar corda e acertar o Zé. Não é que no outro dia ele despertava na hora certa? Pode acreditar. Não é história de pescador, não. Verdade verdadeira. (EMOCIONADO) Isso  que é um amigo. Mesmo quando eu me esquecia dele, ele não se esquecia de mim. (PARA ZÉ) Obrigado, amigo, por tudo. (PAUSA) É verdade que nosso relacionamento não foi só rosas. Tivemos espinhos também. Confesso que cheguei a ser violento. O que você queria? Eu lá, dormindo o melhor do sono, e você triiiiiiiiiiiiimmmmmm.... Você me tirava de sonhos bons e me jogava direto na realidade dura do dia a dia, me lembrando que mais um dia estava começando e que já era hora de enfrentar aqueles ônibus lotados, o transito infernal, o chato do patrão, a marmita que azedou, o dinheiro que não dava no final do mês... (PAUSA) Agora, cá pra nós. Que ninguém nos ouça. Você sempre gostou da minha mão pesada te apertando, não é?  Pode se abrir. Tudo bem. Não quer falar, não fala. Você nunca reclamou dos meus maus tratos. Pelo contrário. Todo dia a mesma coisa: você berrava, eu te metia a mão e você parava na hora. Às vezes, você caía no chão. É que eu meio sonolento errava a mira. Eu ficava preocupado. Ficava sim. Juro por Deus. Cada tombo, eu entrava em pânico. No fundo sempre tive medo de te perder. Morando pra lá de “Deus me livre”, só mesmo com sua ajuda pra chegar na hora no trabalho.  Por isso, eu encostava você no meu ouvido, para ver se estava funcionando, e então ouvia o seu coraçãozinho batendo. Primeiro meio falho, mas em poucos segundos você estava tinindo. Pronto para outro tombo espetacular. (PAUSA) Agora temos que nos separar para sempre. Sabe que eu estou até emocionado? Nunca pensei que nossa ligação fosse tão forte. (PAUSA) Eu tentei convencer a Míriam a aceitar você, mas sabe o que ela disse? Virou bem assim: “Dagoberto, ou ele ou eu!” Veja que situação você me arrumou. Como é que você acha que eu fico? Estou me sentindo entre a cruz e a caldeirinha. Não tenho escolha. De um lado está  a Míriam, a mulher da minha vida, a futura mãe dos meus filhos. Do outro está você que se confunde com a própria história da minha vida.  Para falar a verdade, você mudou a minha vida. (PARA A PLATEIA) Minha vida se divide em antes e depois do Zé. Antes eu era um cara que não tinha nada. Depois, eu era um cara que tinha um despertador. Se alguém queria me identificar mais rápido lá na pensão para onde eu e o Zé mudamos era só dizer: o cara do despertador. Foi assim que eu fiquei conhecido na pensão. Até hoje você pode ir lá e perguntar por mim. Se falar em Dagoberto ninguém vai se lembrar. Agora se perguntar pelo cara do despertador, é na hora. Ficamos famosos, eu e o Zé. A fama era tão grande que acabamos tendo problemas. Vocês acreditam que os caras batiam na  porta do meu quatro nos momentos mais impróprios para perguntar as horas? Pela manhã faziam fila para dar uma espiada no Zé. Parece que ninguém mais tinha relógio naquela pensão. Havia aqueles que eram mais ousados e pediam o Zé emprestado. O cara chegava assim meio como quem não quer nada e entrava com essa: “Olha aí, cara. É que eu vou ter que cair da  cama muito cedo. Compromisso sério. Não dava pra você me “ceder” o Zé por essa noite. Primeiro dia no emprego. Não posso chegar atrasado. Quebra esse galho?” Sabe que eu acabava “cedendo” o Zé. Os caras insistiam muito. Por outra, eu não podia ficar mal com os “colega”. Já pensou se não “cedo” o Zé e o cara perde a hora no emprego? Além de estar contribuindo  para o aumento da taxa de desemprego, eu ainda podia arranjar um inimigo de bobeira. Não é que eu seja cagaço. Fala isso porque não conhecia a turminha que morava naquela pensão. Tudo barra pesada. O Zé, que nessa época estava mais ligado a mim do que nunca, pois a Míriam ainda não tinha entrado na minha vida, não gostava nem um pouco da ideia de despertar estranhos. Sempre dava para trás. Era um tal de emperrar e não despertar que eu não entendia. Deixou muita gente na mão esse espertinho. No outro dia vinham reclamar comigo: “Aí, cara, o relógio deu tilt.” Por pouco não me complicava. Eu achava estranho porque comigo nunca acontecia. O Zé nunca me deixou na mão. Toda manhã era batata. Na hora certa, não falhava. Parecia minha mãe lá no interior. Acho que essa minha ligação com o Zé começou com a minha mãe. Agora me lembro. Minha mãe  era tão pontual que eu a chamava de relógio cuco. Por essa época é que percebi que o Zé não era um simples relógio despertador. Era mais, muito mais. Acima de tudo era uma mãe. E descobri que o Zé ainda não tinha um nome. Ele era simplesmente o despertador do Dagoberto. Precisava de um nome. Foi então que não sei como todo o pessoal da pensão ficou sabendo da minha intenção de batizar o Zé e todos quiseram colaborar com sugestões. Num belo dia estávamos todos reunidos no refeitório para batizar a criança, quero dizer, o Zé. Uns sugeriam que fosse Dagobertinho ou Júnior, como se fosse um filho. Outros queriam nomes como companheiro, camarada, feioso, coisa velha, museu, inconveniente, barulhento e vai por aí. Mesmo aqueles que se incomodavam com seu barulho matinal contribuíram com sugestões. Porque é preciso lembrar que nem sempre o Zé foi bem aceito. Nunca houve unanimidade. Havia aqueles que eram contra o Zé. Uns vagabundos que queriam acordar tarde. Chegaram a  fazer campanha contra ele.  Dona Maria, a dona da pensão, um dia me procurou para dizer que estava sofrendo pressões para me despejar. Eu só podia ficar se desse um fim no Zé. Como eu não me mostrava disposto nem a sair e nem a me separar do meu amigo, a coisa ficou feia. Foi uma luta dura.  Passamos a sofrer represálias. Algumas eram veladas do tipo: “Um dia ainda acabo com esse traste.” Porém, as outras eram mais pesadas.  Um dia cheguei do trabalho e encontrei o quarto de ponta cabeça, tudo revirado.  Por sorte o Zé não estava lá. Quando vi a coisa ficar preta passei a carregá-lo na mochila. (PARA A PLATEIA) Querem saber como terminou essa história? Como única saída, resolvi calar o Zé por uns dias. Foi o bastante. Todos sentiram a sua falta. Já não tinham mais a hora certa todas as manhãs e foi aí que se deu o inverso. Passaram a fazer uma campanha pela volta do Zé. Tantos foram os pedidos que ele acabou voltando sob triunfo. Para desespero dos seus desafetos. Quanto ao nome já se sabe que o escolhido foi Zé, né? Sugestão do Ruço, um cara que passava o tempo todo “cheirado”. Naquele dia ele deu uma pausa no brilho e foi ao refeitório dar a sua  contribuição. (PARA ZÉ) Foram muitas histórias. Porque aquela pensão, que na verdade era uma cabeça de porco, era pródiga em histórias. A polícia vivia dando batida lá. Desconfiavam que ali era um ponto de venda e consumo de drogas. Quanto ao consumo posso afirmar que eles tinham razão, pois era feito abertamente. Agora venda, comércio mesmo, se existia era muito na moita. Mas isso não importa agora. Só sei que quando os “home” chegavam não livravam a cara de ninguém. Não é que um dia um policial cismou com o Zé. Ficou olhando pra ele um tempo, depois pegou e  examinou minuciosamente.  Fiquei com medo que ele apreendesse o pobrezinho para averiguações. Já pensou o pobre coitado preso por suspeitas de esconder drogas? Imaginei ele colocado numa mesa enorme e aquele policial estraçalhando-o com uma marreta bem pesada. E se realmente achassem droga nele? Porque ali tinha muito porra louca. E o Zé vivia passando de mão em mão. Não dava para confiar. E quando o policial perguntou quem o era o dono do relógio? Gelei. Só respirei aliviado quando ele colocou o Zé de volta na mesinha dizendo: “Relógio bom taí. Já tive um igualzinho. Quer vender? Pago qualquer preço.” E foi logo metendo a mão na carteira. Tive que inventar uma história longa para fazer o cara desistir do Zé. Disse pra ele que tinha sido um presente do meu bisavô para o meu avô, do meu avô para o meu pai e do meu pai para mim. O relógio estava há várias gerações na família. Vendê-lo era um sacrilégio. Ele concordou e foi embora. Pior é que eu quase me arrependi e fui atrás do policial.  E se ele tivesse mesmo disposto a pagar uma grana boa pelo Zé? Tem maluco que paga muito por qualquer porcaria. (PARA ZÉ)  Desculpa, Zé. Não quis ofender. (PARA PLATEIA) É verdade. Ainda mais que por essa época eu andava numa penúria de dar gosto. Aliás, só estava morando naquele pensão porque não tinha dinheiro para pagar por um lugar mais decente. Além de tudo, estava atrasado com a dona Maria e ela já estava falando em hipotecar o Zé. O único bem de valor que eu possuía. O que acabou fazendo. Dona Maria era danada. Tenho para mim que era ela quem chamava aqueles policiais para dar um susto no pessoal. Dona Maria ficou quase dois meses com o Zé em seu poder. Foi a única vez que ficamos separados por muito tempo. E ela, uma mulher branca, gorda e baixinha, do alto dos seus sessenta anos, fumante inveterada, não deixava nem eu dar uma olhadinha no Zé: “Enquanto não acertar o que está devendo não tem conversa.” E eu ficava ali insistindo, sem sucesso. Quando consegui o dinheiro e peguei o Zé de volta foi o dia mais feliz da minha vida. Foi como se tivesse recuperado a autoestima. Com o Zé no poder da velha Maria a vida não tinha graça. Mas a proposta do Policial me deixou balançado. Só desisti de ir atrás dele, quando vi o Zé humilhado no canto da mesinha. Aí é que caí em mim. Não  era correto vender o Zé. Por qualquer preço que fosse. Mesmo que isso significasse a minha independência financeira. Pelo sim, pelo não, toda vez que o Policial chegava eu escondia o Zé. Vai que o cara repetisse a oferta e eu não resistisse...? Eu jamais iria me perdoar.  (PAUSA) Depois do batizado a fama do Zé aumentou. Era um tal de Zé pra cá, Zé pra lá. “Me empresta o Zé?” “Deixa o Zé comigo essa noite?” E lá ia o Zé passar a noite fora. (PARA ZÉ) Nunca te contei isso, mas acho que não posso continuar escondendo. Eu sentia ciúmes de você com aqueles caras. Tinha medo que eles maltratassem você. Por que eu te emprestava? Não vai me dizer que não se lembra como aqueles caras me estranharam quando nós chegamos na pensão? Eles me achavam meio caipirão. Cara de delator. Dedo duro. Quando te descobriram passaram a me tratar com mais consideração. Era por isso que eu te emprestava. Te devo essa, cara. Se não fosse você acho que teria que me mudar. E mudar para onde? Aquela pensão era o único lugar que o meu salário dava para pagar. Além de ser próximo do trabalho. Eu estava cansado de morar no subúrbio e ter que acordar às quatro horas da manhã todos os dias. Morar naquela pensão no centro da cidade era quase um luxo. Se bem que com a mudança você ficou meio sem ter o que fazer, né?  Pra alguém acostumado a acordar às quatro horas da manhã, passar a acordar três horas mais tarde dispensava a sua ajuda. Você foi rebaixado a simples condição de relógio. De despertador a relógio. Desconfio que você gostou quando me salvou daquelas feras. Com isso voltou a ter grande importância.  Passou a ser o dono da situação. (PAUSA) Ficamos ali uns três anos, né? Aí a vida  foi melhorando e eu pude alugar este conjugado. E você continuou comigo. E olhe que eu já podia comprar um relógio melhor, mais sofisticado. Nunca abri mão de você em nome da nossa amizade. A gente vivia bem até que a Míriam apareceu. E bem que eu te avisei. Olha, Zé, a Míriam é meio assim mas não liga não. Fica na sua que ela acaba virando amiga. (PAUSA)  Também acho  que aquilo que ela fez foi demais. (PARA A PLATEIA) Quando a Míriam veio aqui pela primeira vez foi logo botando defeito em tudo. Achou o apartamento um lixo. Não me esqueço dela andando na ponta dos pés que nem uma bailarina para não tropeçar em nada. Sempre fui meio desorganizado. A Míriam veio de surpresa. Não tinha dado tempo de dar uma ajeitada na bagunça. E depois, nunca pensei que ela fosse capaz de visitar o apartamento de um rapaz solteiro. Porque, naquela época, a gente ainda nem estava namorando firme. Não que eu seja um conservador, caretão. É que eu tinha intenções sérias com a Míriam. Deixa isso pra lá. O fato é que quando a Míriam botou os olhos no Zé, não se aguentou. Disparou a rir apontando para ele como se estivesse vendo um fantasma. Foi difícil controlar a Miriam e evitar o constrangimento de ver meu amigo naquela situação. Míriam riu tanto que quase se mijou toda. Entre uma gargalhada e outra ela dizia: “Que coisa feia é essa ? Parece peça de museu. Nunca vi nada mais feio. Joga isso no lixo.” Chegou até a me oferecer um rádio - relógio  de presente. Foi um custo convencer a Míriam a  não comprar o tal rádio - relógio. E olha que a Míriam é insistente. Passava horas a fio falando das vantagens do rádio - relógio sobre o velho despertador.  Parecia que estava defendendo tese de tanto argumento. E quando eu falei que nunca me separaria do Zé. Aí ela foi incisiva: “Na minha casa isso não entra! Não vai combinar com nada.” (PAUSA) Foi aí que o Zé  teve aquela atitude extrema. (PARA A PLATEIA)  Sabe o que aconteceu? Alguém tem ideia do que se passou naquela tarde neste apartamento? O Zé perdeu a cabeça. (PARA ZÉ)  Eu não tiro a sua razão. A Míriam foi  longe demais, é verdade. Mas você podia ter mantido a calma, se mostrado superior. Ela teria mudado de atitude. Aquele era só um primeiro encontro. Muitos outros viriam a acontecer. Precisava ter caído, ou se jogado, nunca vou saber ao certo, no pé da Míriam? (PARA A PLATEIA) Zé  “caiu” no pé da Míriam decepando seu dedinho esquerdo. Uma tragédia sem precedentes. Naquele dia além de passar a noite com Miriam no pronto socorro, onde ela levou alguns pontos e ficou sabendo pela boca do médico plantonista que jamais voltaria a ter um dedo normal, foi também o fim do nosso namoro. Foi um golpe duro. Miriam era uma garota muito especial e eu estava gostando dela. Pela primeira vez, tive vontade sumir com o Zé. Cheguei a tentar atirá-lo pela janela. Não tive coragem. Seria uma atitude covarde e injusta. Injusta sim. Porque o Zé não era de todo culpado. Afinal ele foi provocado até o máximo de sua capacidade de se controlar. Ninguém é de ferro. Nem o Zé. Mesmo assim passei um tempo sem falar com ele. E com isso, vivemos nossa primeira e única crise de relacionamento. Só voltamos às boas quando a Míriam aceitou reatar o namoro julgando que a culpa era toda do Zé. Apesar de eu sempre tentar fazê-la ver que tudo não passou de um simples acidente. Quando falo ela me mostra o dedinho decepado, e se diz  mutilada para sempre. Acredita que ela chegou a pensar em entrar na justiça contra o Zé para receber uma indenização por danos físicos e morais? Foi outra batalha dura. Míriam é fogo. (PARA ZÉ)  Você sabe que eu não posso abrir mão da Míriam. Ela é a mulher da minha vida. Sabe quanto tempo esperei para essa mulher chegar? Perdi a conta. (PARA A PLATEIA) Conheci a Míriam numa fase um tanto esquisita da minha vida. Acho que todo mundo passa por uma fase dessas. Tudo estava dando errado. Dinheiro, família, o emprego então... Estava com vontade de mandar tudo para aquele lugar e virar bicho solto. Cair na vida. Entrar para a marginalidade. Estava cansado de viver como um cidadão comum sem futuro. Eu ainda morava na pensão da dona Maria entre drogados, travestis, gigolôs e afins e mais o Otoniel. O Otoniel era um crente que passava o dia pregando a palavra. O cara vivia no meu pé. Dizia que ainda ia me levar para a igreja. E não é que um dia já não aguentando o seu assédio acabei indo. Quando cheguei logo percebi que não tinha saco para aguentar aquela falação do Pastor. Já estava pronto para deixar o templo quando vi a Míriam sentada duas fileiras à frente do lado oposto. Ela me olhou de um jeito. Parecia uma fêmea no cio. Mulher nenhuma nunca tinha me olhado daquele jeito. Fiquei paralisado. Daquele dia em diante passei a ser o mais assíduo frequentador do templo. Não para ouvir a pregação mas para ver a Miriam. Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas e eu acho que é verdade. Sabe que depois que vi a Miriam lá na igreja as coisas começaram a dar certo para mim. O Otoniel tinha razão quando disse que minha vida ia mudar depois que eu fosse na igreja dele.  E que mudança! (PAUSA)  Levou quase um ano para eu me aproximar da Míriam. Nunca pensei que eu fosse tão tímido.  Às vezes, eu até me sentia culpado por estar enganando o Otoniel. Foi graças a sua providencial ajuda que eu me aproximei da Miriam. O engraçado dessa história é que mais tarde descobri que o meu primeiro dia no templo também foi o primeiro da Míriam. Ela também só estava ali por minha causa. Foi só engrenar o namoro e deixamos a igreja. Até hoje  o crente Otoniel, quando me encontra, não se esquece de me lembrar que o diabo dá, mas também tira. Eu nunca entendi direito o que ele quer dizer com isso. O certo é que eu e a Míriam casamos e é isso que interessa. É a própria Míriam quem diz que a igreja funciona como uma agência de casamento para muitos corações solitários. No nosso caso, eu prefiro acreditar que foi apenas uma coincidência. (PAUSA. OLHA PARA ZÉ) Não me peça para escolher entre você e a Míriam que isso é apelação. Onde já se viu ? Um despertador querendo tomar o lugar de uma mulher na vida de um homem. Fim dos tempos! Como diz o crente Otoniel. (PAUSA)  É claro que quem vai mandar na minha casa sou eu. O que você está querendo dizer com isso? Por acaso está insinuando que eu sou frouxo? É isso? Fala, Zé. Pode dizer que se fosse na sua casa você fazia e acontecia. Tudo bem. Só que você não se chama Dagoberto da Silva, não é filho do seu Claudionor  e da dona Maria Rita e não se casou com uma moça chamada Míriam Helena. (PARA A PLATEIA) O nome dela é Míriam Helena. Já viram nome mais bonito que esse? Míriam Helena da Silva e Silva. O “e Silva”  é da minha parte. (ORGULHOSO)  Agora ela é a senhora “e Silva”. (PARA ZÉ) No fundo você está morrendo de inveja. Não tem a senhora “Zé”. Veja que ridículo: “Senhora  Zé.” Senhora  “e Silva” é muito mais chique. Soa muito melhor. (ABRE A CAIXA E PEGA UMA FOTOGRAFIA E MOSTRA PARA A PLATEIA ) Essa é a Míriam Helena. Que tal? Bonita, né? É muita areia para o meu caminhãozinho, não é? Pode falar. Estou acostumado. O pessoal lá no trabalho diz que eu tirei sorte grande. Um cara feio como eu com avião desses. (OLHANDO A FOTOGRAFIA) Com todo respeito. a Míriam é um avião. (PARA A PLATEIA) Posso confessar uma  coisa? Às vezes, eu  acho que nem mereço a Míriam. Bonita, prendada, tem uma mão na cozinha, um senhor tempero que vocês nem podem imaginar. E o que é melhor: é uma batalhadora. Trabalha numa multinacional. Ganha muito mais do que eu. O Zé diz que eu me casei por interesse. Vive me chamando de leviano, interesseiro. Eu só não me aborreço com ele porque entendo o seu lado. Afinal, ele e a Míriam não se dão. (PAUSA) Estou me casando por amor. No duro. Estou amarradão na Míriam. (PARA ZÉ) Você duvida? Não posso deixar a Míriam escapar. Já pensou o tempo que eu vou levar para encontrar outra Miriam? Com a minha timidez nem daqui vinte anos. Nem quero imaginar. E depois o pessoal já estava pegando no meu pé. (IMITA AS PESSOAS) “E aí, Dagoberto? Quando é que vai casar? Não acha que está passando da hora?” Nas reuniões de família era o assunto preferido. “Quando é que o Dagoberto vai casar?” Fizeram  até aposta. Tenho um cunhado, o Alexandrão, casado com minha sétima irmã, a Claudiana, que chegou a montar  uma rede de apostas. Quando apresentei a Míriam pra família, ele foi o único que não gostou. Também pudera, né? Acabei com o ganha pão dele. O  desgraçado chegou a largar o emprego só para viver do banco de apostas. Quem ficou feliz mesmo foi meu pai, seu Claudionor: “Quem bom, filho! Finalmente você me dá uma boa notícia. Pensei que ia negar a família.” Minha mãe, como católica fervorosa, chegou a confessar que tinha feito uma promessa para uma santa nova que apareceu não sei onde. Acha que conseguiu a graça. Queria porque queria entrar na igreja, no dia do meu casamento, de pés descalços, segurando uma vela do meu tamanho e entoando a plenos pulmões o hino da santa. Imaginaram o vexame? Tive o maior trabalho para convencer a velha a desistir da ideia. (PAUSA) Eu não posso decepcionar os velhos. Eles tiveram quinze filhos. Eu era o único solteiro. É muita responsabilidade, não é? (PAUSA) Sinto muito, Zé.  Entre você e a Miriam, eu fico com a Miriam. Ela está me esperando na casa nova. (PAUSA) Não pense que eu vou abandonar você ao relento como um cachorro doente. Jogar você no lixo? Guardá-lo numa caixa escura para o resto da vida? Nada disso. Passei aqui para pegar umas coisas e decidir o seu destino. Encontrei uma solução. Não quer nem saber? Pois vou falar assim mesmo. Seja forte. É melhor saber tudo logo de uma vez. Enfrentar a vida de frente. Não era assim que você falava para eu fazer nos meus momentos de dificuldade? Pois é. A partir de hoje você vai despertar a dona Cândida, aquela gorda faladeira lá do 506. Como foi que ela ficou sabendo da sua existência? É que eu sabendo que a Míriam não ia mudar de ideia, resolvi anunciar você. (PEGA UM JORNAL NA CAIXA E MOSTRA PARA ZÉ) Veja!  Está aqui. (LÊ) “Doa-se um relógio despertador de estimação. É usado mas está em bom estado.” Vim correndo pensando que iria encontrar uma fila enorme de pretendentes lá fora. Ledo engano. A dona Cândida foi a única pessoa que se interessou por você. Acho que não foi boa ideia colocar no anúncio que você era “um usado em bom estado”. As pessoas ficam desconfiadas. Elas pensam que é porcaria. (PAUSA) Não fica triste. Eu sei que a dona Cândida não é a pessoa mais indicada para cuidar de você. Olha, eu prometo que venho te ver sempre que der. Pode acreditar. Seja compreensivo. (RÍSPIDO) Não tem outro jeito. Ou você fica com a dona Cândida ou vai para o lixo. (PAUSA)  Você vai despertar a gorda Cândida para ela tomar conta da vida alheia. Que destino cruel! (COMEÇA A RIR. PRIMEIRO BAIXO DEPOIS ALTO, ATÉ A GARGALHADA) Imagino a dona Cândida dizendo: “Tenho que acordar às seis em ponto para ver se o Nabuco está ou não dormindo no apartamento da Leonora do 507. Isso é muito importante, Zé. Não vai me deixar na mão.” (CONTINUA A RIR DEPOIS PARA SÉRIO) Essa é a minha vingança! Apesar de tudo você sempre foi a prova viva de que eu nunca passei de um empregadozinho assalariado sem eira nem beira. É isso. Você sempre fez o jogo do patrão. Sempre alí me acordando na hora certa para eu ir dar o meu sangue para aqueles filhos da mãe. (MORDAZ) Sabe o que a Míriam fez? Ela comprou um rádio - relógio todo metido a besta. Só falta falar. Não fica com inveja? Agora todas as manhãs vou ser despertado com música. Romântico, né? (NESSE MOMENTO O RELÓGIO ESCAPA DA MÃO DE DAGOBERTO E CAI NO CHÃO) Que isso, Zé? Está querendo se matar? (PEGA O RELÓGIO E CERTIFICA QUE ESTÁ PARADO) Parou! (ENTRA EM PÂNICO) Fala comigo, Zé. Ai, meu Deus! Nunca pensei que você fosse tão apegado a mim assim. Estava só brincando, Zé. (PAUSA) Está morto! Preferiu morrer a me abandonar. Que gesto bonito! Embora eu não aprove suicídios, mas foi um gesto bonito.  Isso que é um amigo. Devia ter preparado melhor o seu espírito. Era uma vez um despertador tão amigo, tão fiel, companheiro. Nunca mais vou encontrar um amigo como você, Zé. Nunca mais. Pode deixar. Eu vou te dar um enterro digno. Você merece. Pelos anos de dedicação. Pelos momentos em que você salvou a minha vida, me fez companhia. (PARA A PLATEIA) Esse despertador  entrou na minha vida da maneira como todo despertador entra na vida de qualquer pessoa. Já falei do meu pai, o seu Claudionor, né ? Seu Claudionor é um homem bravo, quase chega a ser um casca grossa. Não falo isso para ofender meu pai, não. Longe de mim. O que aconteceu é que ele tinha um jeito muito estranho de educar os filhos. Todo filho quando chegava numa  certa idade ele botava para fora de casa. É verdade. Aconteceu com  todos. Só livrava a cara das mulheres porque tinha medo de que elas se perdessem na vida. Se não fosse isso... Apesar de ser o caçula, comigo não foi diferente. Foi só completar treze anos e lá veio ele com a máxima: “Chegou sua hora, Dagoberto. Arruma suas coisas e vai. Só me volta aqui quando for um homem.” A velha apelou, chorou, mas não teve jeito. Lá fui eu com a minha trouxa nas costas sem destino. Como tudo se ajeita na vida, lá pelas tantas, aqui mesmo nesta cidade, eu arranjei um emprego. Adivinha qual passou a ser o meu problema? Acordar cedo. Quase todo dia levava bronca do patrão. Um colega, que chegava pontualmente todos os dias, embora morasse bem mais longe do que eu, foi quem me apresentou as vantagens de um despertador. Fui logo dizendo que minha mãe estava muito longe. Ela era o único despertador que eu conhecia. Ele, sem entender nada, me levou até uma loja onde fomos atendidos por uma vendedora muito falante.  Ela apresentou todos os despertadores da vitrine. Esse é assim, aquele é assado. E eu não me interessava por nenhum.  Foi quando vi o Zé lá no cantinho todo encolhido, humilhado por ser o mais barato de todos. A vendedora não recomendou o Zé. Disse que não era marca de confiança. Inicialmente  confesso que só me interessei pelo Zé por causa do preço. Só tive o cuidado de perguntar para a vendedora se ele despertava. Ela respondeu meio indecisa: “Despertar, desperta. Agora, só não podemos dar garantia.” Acho que ela queria que eu comprasse o mais caro para ganhar uma comissão maior. Com ou sem garantia resolvi ficar com o Zé. Depois da decisão ele tomou outra vida, ficou mais alegrinho e ganhou até um certo destaque  perto dos outros. E assim, está comigo até hoje. Quero dizer, estava. Agora tudo acabou. O Zé está morto. Tantos anos de convivência para acabar numa queda estúpida. Volta, Zé. Eu prometo que se você voltar a funcionar eu enfrento a Míriam e  te levo para nossa casa nova. Prometo. (PAUSA) Nem assim ele se anima, pobrezinho. (PENSATIVO)  E se eu levasse o Zé no relojoeiro? Quem sabe? De repente é um defeito simples. (PAUSA)  Não vai adiantar. (PARA A PLATEIA)  Uma vez levei o Zé para uns reparos e o relojoeiro foi taxativo: “Não existe peça para isso.” Aí eu perguntei: E se ele estragar? “Joga fora.” Respondeu ele sem se dar conta de que o Zé não era  um relógio qualquer. (PAUSA) Não tem jeito. Tudo isso por causa dessa inimizade boba entre você e a Miriam.(LEVA O RELÓGIO ATÉ O OUVIDO E PERCEBE QUE VOLTOU A FUNCIONAR) Não pode ser! (ALEGRIA  Você está voltando a viver, Zé. Que bom! Graças a Deus! O bom e velho Zé voltando à vida. Até seu aspecto já está melhorando. (MOSTRA PARA A PLATEIA) Vejam! Não é um milagre? Milagre! (GRITA) Milagre! (VOLTA A SI) Ele é muito forte. ( PARA Zé ) Que susto você me pregou, rapaz. Pode ficar descansado. Você não vai mais para as mãos da dona Cândida, que de cândida só tem o nome. (PAUSA) Sabe o que eu acabei de decidir? Você vai comigo! E se a Miriam não te aceitar, sabe o que eu vou fazer? Acabo com o casamento! Se ela me quiser tem que ser com você. Afinal de contas quando ela me conheceu você já estava na minha vida. Combine ou não com os móveis da casa nova, você vai comigo. Não se abandona um  amigo de anos, como você, nem se isso representar o fim de um casamento. A Míriam vai ter que aceitar nós dois juntos, para sempre. (PEGA A CAIXA ,O DESPERTADOR E SAI)


FIM




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