Pesquisar este blog

Vestida para o baile - peça teatral de Julio Fernando - drama





VESTIDA PARA O BAILE





Peça teatral
(drama)




de
Julio Fernando Moreira



Personagens:
Janete, a mãe
Osmar, o pai
Mazinho, o filho
Sarinha, a filha
Tita,  a irmã da mãe
Dulce, a irmã do pai
Clarinda, a vizinha












CENA I

QUANDO ABRE O PANO, VEMOS A SALA DA CASA DE JANETE QUE É, AO MESMO TEMPO SEU ATELIÊ DE COSTURA. MÓVEIS VELHOS E ANTIGOS SE MISTURAM COM NOVOS, TUDO SEM OBEDECER A NENHUMA REGRA DE DECORAÇÃO. HÁ UMA MÁQUINA DE COSTURAR, MESA COM CADEIRAS, POLTRONAS, CABIDEIRO, QUADROS NA PAREDE, INCLUSIVE FOTOS GRANDES DE SARINHA E MAZINHO ETC. DESTAQUE PARA UM VESTIDO DE FESTA ANTIGO NO MANEQUIM NUM CANTO PRIVILEGIADO DA SALA.
JANETE É UMA MULHER DE UNS QUARENTA ANOS, BEM CONSERVADA. É COSTUREIRA E ESTÁ TERMINANDO UM VESTIDO DE FESTA BRANCO, TENDO A SEU LADO SARINHA, UMA ADOLESCENTE DE DEZESSETE ANOS, QUE DEMONSTRA CERTA IMPACIÊNCIA. OSMAR, QUE É TETRAPLÉGICO E TEM CERCA DE QUARENTA E CINCO ANOS, ESTÁ SENTADO NA CADEIRA  DE RODAS ASSISTINDO TELEVISÃO. O SOM DO PARELHO ESTÁ RELATIVAMENTE ALTO.

JANETE – (GRITA) Abaixa o volume dessa televisão, Osmar!

SARINHA – Anda, mãe! Está em cima da hora.

JANETE – Calma, Sarinha! Tem tempo. (PARA DE COSTURAR E OBSERVA QUE OSMAR CONTINUA VENDO TELEVISÃO EM ALTO VOLUME. LEVANTA E DESLIGA O APARELHO) Que inferno! Não disse para abaixar o volume?  Quer me enlouquecer?

SARINHA – Que é isso, mãe?

JANETE – Esse inferno o dia inteiro no meu ouvido.

SARINHA – Coitado do pai! Esqueceu que ele não consegue se movimentar?

JANETE – (CAI EM SI E PERCEBE QUE  OSMAR A ESTÁ ENCARANDO ASSUSTADO) Ele já viu televisão demais por hoje. Chega! (VAI ATÉ A PORTA QUE DÁ PARA A COZINHA E GRITA ) Mazinho, desliga esse chuveiro. Olha a conta de luz!

MAIZNHO – (FORA) Já estou terminando, mãe.

JANETE – Faz tempo que está dizendo isso. (VOLTANDO) Não quero nem ver a conta de luz no final do mês.

SARINHA – Assim não dá, mãe. Vou acabar chegando atrasada na festa.

JANETE – Não será por minha causa. (ENTREGA O VESTIDO A SARINHA) Toma. Está pronto.

SARINHA – (ALEGRE) Que bom! (SAI COM O VESTIDO)

JANETE – (FECHA A MÁQUINA) Ufa! Até que enfim acabou por hoje. (GRITA) Como é, Mazinho, esse banho acaba ou não? (PARA OSMAR) E vai ficar aí  olhando para esse aparelho de televisão desligado?

OSMAR – (EXPRESSÃO DE CONSTRANGIMENTO)

SARINHA – (ENTRANDO) Ajuda aqui, mãe. (ESTÁ VESTIDA COM O VESTIDO BRANCO QUE JANETE ESTAVA COSTURANDO)

JANETE – Não disse que está engordando? Precisa fazer um regime. Vamos, murcha essa barriga.

SARINHA – (FAZENDO FORÇA) Que barriga? Não tenho isso.

JANETE – Não, quem tem sou eu. Vamos lá. Prende a respiração. Aí, agora.

SARINHA – Obrigada. (SAI)

JANETE – (PARA OSMAR) Não  adianta ficar com esta cara me cobrando o jantar que eu não estou nem aí. Espera a Tita chegar. Era para ter se acostumado. Ela não fica um dia sem ver o padre. Deve estar na igreja de conversa fiada.

MAZINHO – (ENTRA. É UM ADOLESCENTE DE DEZENOVE ANOS. ESTÁ VESTIDO COM UM FRAQUE BRANCO. TRAZ O PALETÓ NA MÃO.) Mãe, caiu o botão.

JANETE – Me dá isso aí. (PEGA O PALETÓ E COMEÇA A PREGAR O BOTÃO. TITA ENTRA VINDO DA RUA. É A TÍPICA CAROLA SOLTEIRONA DE INTERIOR COM CERTO AR DE FREIRA) Até que enfim! Que missa mais comprida!

TITA – Demorei por causa da reunião.

JANETE – Que reunião?

TITA – A reunião que o Padre Bento fez para falar sobre a festa de São Pedro. (PAUSA) Coloquei seu nome na lista dos festeiros.

JANETE – Mais trabalho para mim.

TITA – Que nada! Pode deixar que eu fico responsável pela prenda. (ANIMADA) Vai ter noventa, barraquinhas com leilão de prendas, bingo e sorteio. Padre Bento quer arrecadar o dinheiro para a reforma da igreja Matriz.

JANETE – (ENTREGA O PALETÓ A MAZINHO) Vê se toma cuidado. Sabe que é emprestado e que não tenho dinheiro para comprar um novo para pagar.

MAZINHO – Está legal, mãe. (VESTE O PALETÓ. PARA TITA) Que tal, tia Tita? Estou bem?

TITA – (TÍMIDA) Está lindo.

MAZINHO – (ORGULHOSO) Obrigado.

TITA – (PARA JANETE) Osmar já jantou?

JANETE – Claro que não! Está esperando por você.

TITA – Ai, meu Deus! (SAI PELA PORTA QUE DÁ PARA A COZINHA, SEGUIDA DE MAZINHO)

JANETE – (GRITA) Como é, Sarinha? Está achando que a festa vem aqui?

SARINHA – (ENTRANDO) Estou pronta.

JANETE – Que cabelo é este? Vai tirar isto. Deixa o cabelo solto. É tão bonito!

SARINHA – (ABORRECIDA) Ah, mãe! (SAI)

JANETE – Não adianta resmungar. Uma menina nova com cara de velha. (TITA ENTRA COM UM PRATO DE COMIDA, UMA COLHER E UM GUARDANAPO DE PANO NA MÃO. FICA DE FRENTE PARA OSMAR, PÕE O GUARDANAPO NELE COMO SE FOSSE UM BABADOR, O AJEITA  NA CADEIRA E COMEÇA A COLOCAR A COMIDA EM SUA BOCA)

SARINHA – (VOLTANDO) E agora?

JANETE – Agora, sim! Espera um pouco. (SAI PELA PORTA QUE DÁ PARA OS QUARTOS)

TITA – (OLHA FIXAMENTE PARA SARINHA DURANTE ALGUM TEMPO)

SARINHA – Que foi, tia Tita?

TITA – Fico olhando para você vestida assim e me vem umas lembranças na cabeça.

SARINHA – O que?

TITA – Bobagem.

SARINHA – Ah! Fala.

TITA – Você é tão parecida com sua mãe quando ela tinha a sua idade. Era vaidosa assim... Vestia-se tão bonita para esperar seu pai. (PARA OSMAR) Não era, Osmar?

OSMAR – (EXPRESSÃO DE CONCORDÂNCIA)

TITA – Ela deixava mamãe quase louca. Todo sábado queria um vestido novo.

SARINHA – É mesmo? Bom saber.

JANETE – (VOLTANDO COM UM BROCHE NA MÃO) Que foi?

SARINHA – Tia Tita disse que a senhora exigia um vestido novo a cada sábado e que a Vovó ficava quase louca...

JANETE – Conversa da Tita.

TITA – Verdade.

SARINHA – Tia Tita não mente.

JANETE – Deixa essas histórias para lá. Tita não tem nada que ficar desenterrando o passado. (PARA SARINHA) Pode usar.

SARINHA – Ah, mãe! Não combina. Este broche é muito cafona.

JANETE –  (DECEPCIONADA) Sempre disse que gostava.

SARINHA – Não com esse vestido.

JANETE – Se não quer usar, não usa.

SARINHA – (DEVOLVENDO O BROCHE)  Guarda. Uso outro dia.

JANETE – (GUARDA O BROCHE CONTRARIADA E GRITA) O que está fazendo aí, Mazinho? Sua irmã já está roxa de esperar.

MAZINHO – (FORA) Estou indo, mãe.

TITA – Ele deve estar lá dentro se olhando no espelho. É tão vaidoso quanto o Osmar era antes do...

JANETE – (CORTANDO) Nada de chegar tarde, ouviu Sarinha?

MAIZNHO – (ENTRANDO) Sarinha está namorando, mãe.

SARINHA – Mentira.

JANETE – Que história é essa, Sarinha? Já falei que não quero saber de namoro antes de terminar os estudos.

SARINHA – Mazinho está de brincadeira.

MAZINHO –  Você estava conversando com ele outro dia.

JANETE – Ele quem?

MAZINHO – O Tavinho.

JANETE – Logo ele, Sarinha. Aquilo é uma peste. Não quero saber. É muito velho para você. Se insistir já sabe...

MAZINHO – Até no carro dele ela já andou.

SARINHA – Para, Mazinho!

JANETE – Parem, os dois. Vamos lá. E não me façam feio. Quero ter notícia boa amanhã. Quero meus filhos os mais bonitos da festa. (MAZINHO PEGA JANETE E SAI ARRASTANDO-A PELA SALA COMO SE DANÇASSE UMA VALSA) Para, Mazinho! Para. Estou ficando tonta. Para! Que coisa!

MAZINHO – (SOLTA JANETE) É só um ensaio.

JANETE – (PERTURBADA) Chato. (PARA SARINHA) Não se esqueça de trazer uns docinhos para o seu pai.

SARINHA – Que feio, mãe!

JANETE – Não sei por que. Todo mundo leva docinhos para casa no final da festa. Diz para a Marina que eu mandei pedir.

SARINHA – (PARA MAZINHO) Vamos.

JANETE – Quero os dois juntos na volta. Só até meia noite, nem mais um minuto.

SARINHA – Justo na hora da valsa, mãe.

JANETE – Não quero conversa. Meia-noite, aqui!

SARINHA – Ah!

JANETE – E o meu beijo? (MAZINHO E SARINHA BEIJAM O ROSTO DE JANETE E SAEM) Que Deus proteja vocês! Cuidado com essa roupa, Mazinho. É emprestada. Não se esqueça.

TITA – (TERMINA DE DAR O JANTAR PARA OSMAR) Eles nem se lembram de beijar o pai.

JANETE – Também esta... (DISFARÇA) Eles são lindos, não?

TITA – São.

JANETE – Pelo menos isso o Osmar prestou para fazer.

TITA – Que maneira de falar, Janete! Ele não teve culpa.

JANETE – Nem eu! (ANIMADA) Quem dera tivesse um aniversário de quinze anos por mês. Estava feita. (ABRE A GAVETA DO MÓVEL E CONTA O DINHEIRO) Valeu à pena. Deu para juntar o dinheiro para pagar a prestação da televisão. Segunda-feira, eu mando a Sarinha pagar. Desse mês, estou livre.

CLARINDA – (ENTRA. É A VIZINHA, UM TIPO AVANTAJADO, GORDA E DESCONFIADA) Oi, Janete! E os meninos?

JANETE – Acabaram de sair.

CLARINDA – Que pena! Queria tanto ver a Sarinha com o vestido novo.

JANETE – Ficou linda. Mazinho, então, parecia um homem feito metido naquele fraque.

CLARINDA – Meus filhos não quiseram ir. Marcinha não liga para essas coisas e o Jadir então... Agora os seus filhos, faz gosto ver.

JANETE – Não tenho do que me queixar.

CLARINDA – Vivi ainda não veio para jantar. Deve estar fazendo hora extra. Colocou na cabeça que vai trocar o carro ainda este ano. Deus me livre! Às vezes acho que ele se preocupa mais com o carro do que  comigo. Que necessidade tem um carro numa cidade tão pequena?

JANETE – Cada um tem sua diversão, não é?

CLARINDA – E eu sofro com isso. (PAUSA) Ah! Tem um pouco de açúcar para me emprestar? Quero bater um bolo e o açúcar acabou. Esqueci de comprar.

JANETE – Tenho. (PARA TITA) Pega o açúcar para dona Clarinda.

TITA – (SAI LEVANDO O PRATO E O GUARDANAPO)

CLARINDA – Ficou sabendo?

JANETE – O quê?

CLARINDA – Não!? O Souza, irmão de Marina, está muito mal em Belo Horizonte. Foi submetido a uma cirurgia de emergência e entrou em estado de coma profundo. Nem assim a Marina desistiu da festa. Onde já se viu? Um absurdo! O irmão morrendo e a outra festejando o aniversário da filha. Vê se pode? É o fim do mundo, não acha?

JANETE – Não vejo mal nenhum. Marina sempre sonhou com a festa da filha. Lúcia Marina é uma flor de menina. Ela merece! Quando a Sarinha fez quinze anos eu quis dar uma festa, mas não tive condições. Se tivesse dinheiro teria dado uma festa e tanto. Acho bonito. E depois é só uma vez na vida.

CLARINDA – Ainda bem que a Marcinha não liga para isso. Sorte minha.

TITA – (ENTRA COM O AÇÚCAR) Aqui está o açúcar.

CLARINDA – (PEGA O PACOTE NA MÃO DE TITA) Pago no final do mês.

JANETE – Não precisa se preocupar.

CLARINDA – Obrigada. (SAI)

JANETE – (VENDO QUE CLARINDA SAIU) Despeitada!

TITA – Por quê?

JANETE – Cheia de conversa contra a Marina. Disse que o Souza está muito mal em Belo Horizonte e coisa e tal.

TITA – Soube que ele melhorou e já está em casa. Dona Santinha me falou.

JANETE – Não disse? Tudo isso porque a filha... Bem, você sabe o que dizem da Marcinha por aí, não sabe? É puro despeito.

TITA – A Marcinha era tão meiga quando criança. Quem diria!? Hoje mais parece um homem. (PAUSA) Esqueceu que hoje é o dia do banho do Osmar?

JANETE – Ai, meu Deus! Tinha me esquecido. Estou tão cansada! Vai preparando que daqui a pouco eu levo ele.

TITA – (PARA OSMAR) Hoje tem banho. (PARA JANETE) Ele adora tomar banho.

JANETE –  Eu sei. Quem não gosta nem um pouco dessa história sou eu.

TITA – Já devia ter acostumado.

JANETE – Acho que não me acostumo nunca. (TITA SAI. JANETE SE APROXIMA DE OSMAR E FAZ UM CARINHO NELE) Não  sei como aguenta ficar aí sentado sem falar nada, só olhando com este olhar que nunca sei direito o que quer dizer. (TERNA) Viu como eles ficaram bonitos? Nossos filhos são lindos. (NOSTÁLGICA) Às vezes, fico me lembrando do nosso  tempo de namoro, os bailes do Clube Recreativo... (VAI ATÉ O MANEQUIM E RETIRA O VESTIDO, COLOCA-O NA FRENTE DE SEU CORPO E PÕE-SE A DANÇAR COMO SE OUVISSE O “BOLERO, BESAME MUCHO”. ENTRA MÚSICA. CONTINUA DANÇANDO FORA DE SI) Para, Osmar. Para! Estou ficando tonta. Estou ficando tonta. Ficando tonta, tonta, tonta... (PARA DIANTE DE OSMAR) Como você dançava! Era um verdadeiro pé de valsa. Quase me tirava o fôlego. Quando começava a dançar não queria mais parar. Parecia um louco a me arrastar pelo salão. (MÚSICA CONTINUA TOCANDO BAIXO) Lembra deste  vestido? Você adorava quando eu o colocava para a gente ir ao baile. Você falava que era o mais bonito que eu tinha. Que bobo! Era o único. (PAUSA) Nunca me desfiz dele. É como se aqui estivessem todas as lembranças. (ABRAÇA O VESTIDO) Tempo bom aquele. Tanto sonho na cabeça, tanta ilusão. Veja o que a vida fez de nós...

CLARINDA – (APARECE NA JANELA) Tem dois ovos para me emprestar? (MÚSICA DESAPARECE BRUSCAMENTE)

JANETE – (DISFARÇANDO) Tenho. Espera um pouco. (SAI)

CLARINDA – (SAI DA JANELA E ENTRA. APROXIMA-SE DE OSMAR COM CUIDADO) Enquanto você fica aí sentado nesta cadeira, muita coisa anda acontecendo. Abra os seus olhos, Osmar!

JANETE – (VOLTANDO) Aqui estão os ovos, dona Clarinda.

CLARINDA – Depois eu lhe pago. (VAI SAINDO E VOLTA) E a Tita? Como ela tem passado?

JANETE – Nada bem. Teve uma crise numa noite passada.

CLARINDA – Coitada!

JANETE – Tem médico marcado para segunda-feira.

CLARINDA – Dr. Oscar?

JANETE – É.

CLARINDA – Ele é muito bom.

JANETE – As crises estão acontecendo cada vez em espaço de tempo mais curto. Antes era uma vez ou outra. Agora piscou o olho e a Tita está desmaiando. Estou ficando preocupada.

CLARINDA – Que sina a sua! Osmar nestas condições, Tita epileptica...

JANETE – É a vida, né? Como dizia minha mãe, é a cruz que cada um tem para carregar durante a vida.

CLARINDA – Deus sabe o que faz. (SAINDO) Semana que vem lhe pago. ( SAI )

JANETE – (PEGA O VESTIDO E O DEVOLVE PARA O MANEQUIM) E  aí, Tita? Posso  levar o Osmar? (GRITA) Tita! Ai, meu Deus! Será? (SAI GRITANDO) Tita! (FORA) Não disse!? Agora é assim. Não pode ficar sozinha um minuto. (LUZ APAGA. PAUSA PEQUENA. LUZ VOLTA. JANETE ENTRA. ESTÁ ARRUMADA PARA SAIR. OSMAR ESTÁ NO MESMO LUGAR) Não adianta ficar me olhando com esta cara como quem diz: já vai, né? Vou sim. Vou dar umas voltas. Preciso respirar um pouco. Não tenho culpa se o seu banho não saiu. Foi a Tita. Passou mal de novo. Sozinha, eu não consigo. Você está muito pesado.

TITA – (ENTRANDO) Que houve?

JANETE – Você... Melhorou?

TITA – Acho que sim. Vai sair?

JANETE – Vou.

TITA – (QUASE INFANTIL) Posso ir com você?

JANETE – (ASSUSTADA) Não! (MAIS CALMA) Quer dizer, só vou dar umas voltas na praça. Volto rápido. Pede para a dona Clarinda ajudar a colocar o Osmar na cama. Tchau! (SAI)

TITA – Tchau! (APROXIMA-SE DE OSMAR, FIXA O OLHAR NELE, DEPOIS LIGA A TELEVISÃO, PEGA UMA CADEIRA, COLOCA DO LADO DELE E SENTA. LUZ APAGA.)

CENA II

DOMINGO À TARDE. HÁ UMA MALA DE VIAGEM EM CIMA DA MESA ONDE JANETE ESTÁ COLOCANDO ALGUNS OBJETOS, ROUPAS E AFINS, DE MAZINHO. OSMAR VÊ TELEVISÃO. JANETE ENTRA E SAI, SEMPRE SEGUIDA DE SARINHA.

JANETE – Para de andar atrás de mim. Que coisa! Já disse que  nem pensar.

SARINHA – Não é justo. Só o Mazinho tem vez. Sempre foi assim. Primeiro ele e depois eu.

JANETE – Ele é homem.

SARINHA – Que diferença faz?

JANETE – Muita.

SARINHA – Isso é discriminação, sabia?

JANETE – Dê o nome que quiser. Já falei. Mazinho é mais velho, é homem. Vai fazer o tal cursinho para prestar o vestibular de medicina para poder ser alguém na vida e me ajudar depois formado. Não quero para ele o mesmo destino do seu pai, que deu um duro danado naquele carro de praça e tudo que conseguiu foi ficar do jeito que ficou: uma aposentadoria por invalidez que não chega a um salário mínimo. Se não fossem minhas costuras a gente passava fome. Deus me livre! Não. Com o Mazinho vai ser diferente. Se Deus quiser! Nem que para isso eu tenha que passar dia e noite trabalhando.

SARINHA – E eu?

JANETE – Vai continuar o curso de magistério. Com o tempo consegue uma vaga de professora numa escola da cidade.

SARINHA – Sabe se é isso que eu quero?

JANETE – Não quero saber de você morando fora. Mazinho tem que sair porque a cidade não oferece nada para um rapaz na idade dele. Se quiser uma coisa melhor tem que sair da cidade. Procurar um canto mais desenvolvido.

SARINHA – Um dia ainda saio desta cidade. Vou morar com a Tia Dulce em Belo Horizonte.

JANETE – (RINDO) A Dulce!? Logo com quem! A última vez que ela te viu, você ainda era um bebê. (COM MÁGOA) Depois que arrumou marido rico ficou besta. Nem se lembra do irmão.

SARINHA – Ela não tem tempo.

JANETE – Que desculpa! Antes de o Osmar sofrer o acidente, ela vivia aqui em casa.  Depois sumiu. Assim como fizeram os outros irmãos, os amigos... Nossa casa vivia cheia. Osmar sempre foi muito festeiro. Adorava receber os amigos. Foi sumindo um a um. Agora vive aí sozinho. Nem uma alma caridosa para fazer uma visita ao menos. Dos irmãos eu nem falo. São todos um bando de covardes. Não vêm ver o irmão porque têm medo que eu peça alguma coisa. Só se eu fosse doente. Tenho coragem bastante para trabalhar. Se depender de mim nunca peço um grão de arroz para nenhum deles.

SARINHA – (PAUSA) Não conheço a maioria dos meus parentes.

JANETE – Sorte sua.

SARINHA – Tenho vontade de conhecer meus primos.

JANETE – Primos!? Parentes!? Sua família é essa. Eu, seu pai, Mazinho, Tita e já é muito. (PAUSA) Onde está o Mazinho?

SARINHA – Deve estar na casa de algum colega.

JANETE – Mazinho não tem jeito. Vai acabar perdendo o ônibus. (TITA ENTRA VINDO DA RUA)

TITA – (PARA SARINHA) Perdeu a missa. Foi tão bonita.

SARINHA – Não estou com “espírito de missa”.

JANETE – Perdeu a missa das nove, mas vai na das seis da tarde. Nada de passar o domingo sem assistir missa. Não tem necessidade. Não está doente.

SARINHA – Tia Tita, por que a senhora não entra para um convento de freiras?

JANETE – Que conversa é essa, Sarinha?

SARINHA – Tia Tita devia ser freira. Nunca vi gostar tanto de igreja.

TITA – Temos que cuidar do nosso lado espiritual.

SARINHA – E para isso precisa ir a igreja todos os dias?

TITA – Se você quiser...

JANETE – Deixa de ser implicante, menina!

TITA – Deixa ela, Janete.

JANETE – (PAUSA) E as barraquinhas, Tita?

TITA – Padre Bento está muito animado. Dessa vez a reforma da igreja sai.

JANETE – Nunca concordei com as reformas que fazem na igreja Matriz de São Pedro de Alcântara. Gostava daquele altar antigo, do oratório.

TITA – Foi Padre Marcelo com aquela mania de modernidade. (MAZINHO ENTRA)

JANETE – Por onde esteve andando?

MAZINHO – Por aí.

JANETE – Irresponsável! Esqueceu que está de passagem comprada?

MAZINHO – Não.

TITA – Que tristeza é essa?

JANETE – Quem está triste?

TITA – Mazinho.

SARINHA – Ele está com pena de deixar os amiguinhos.

MAZINHO – Não enche, Sarinha!

SARINHA – É verdade, sim!

JANETE – Que é isso, Mazinho? Vai desistir?

MAZINHO – Não.

JANETE – Deixa de bobagem. Nada de virar a cabeça por causa desses moleques. Amigos como eles você encontra aos montes em qualquer lugar. Numa escola de medicina o nível de amizade é outro. Uberaba é vida nova.

SARINHA – Ai , ai, ai... Vai acabar chorando, o bebezinho da mamãe.

MAZINHO – Não torra, Sarinha!

SARINHA – Ui, ui, ui...

MAZINHO – (PARTE PARA CIMA DE SARINHA, QUE CORRE) Faz de novo, faz.

JANETE – Para com isso, Mazinho!

MAZINHO – É a Sarinha.

SARINHA – Filhinho da mamãe.

JANETE – Sai daqui, Sarinha! Sai!

SARINHA – Ah, mãe!

JANETE – Vai lá pra dentro.

SARINHA – (EMBURRADA) Sempre eu, sempre eu. ( SAI )

JANETE – (VENDO QUE SARINHA SAIU) Não liga para a Sarinha. Ela está com ciúmes.

TITA – Vai ser difícil aturar a Sarinha daqui para frente. Ela não vai se conformar tão cedo.

JANETE – Deixa ela comigo.

MAZINHO – Não briga com ela não, mãe.

JANETE – Está bem. (PAUSA) Não vai dar uma olhada para ver se não está faltando alguma coisa?

MAZINHO – Precisa não.

JANETE – Depois não reclama. Marquei suas coisas com um M maiúsculo. Vê se toma cuidado.

TITA – (ABRE A GAVETA DO MÓVEL E TIRA UM PEQUENO PAPEL) Leva para você.

MAZINHO – O que é isso?

TITA – É uma oração. Reza sempre. É para o seu Anjo da Guarda dar proteção.

MAZINHO – Ih, tia! A turma vai pegar no meu pé.

JANETE – Vai levar, sim! Que preocupação mais besta. Não quero saber de você misturado com esses rapazes daqui que moram lá em Uberaba. Eles são ricos e você é pobre. Foi por isso que escolhi um pensionato onde não havia nenhum conhecido. Sua vida lá é para estudar. Nada de farra.

MAZINHO – (PEGA O PAPEL DA MÃO DE TITA E GUARDA NA MALA) Está bem, mãe.

JANETE – Não pensa que vai me enrolar. Combinei tudo com a dona Rita, a dona do pensionato. Ela me pareceu ser uma mulher muito boa. Vai me avisar  toda vez que você sair da linha.

CLARINDA – (ENTRANDO) Como vai a mudança?

JANETE – Nunca pensei que fosse tão difícil o fazer o bota-fora de um filho.

CLARINDA – Corajosa! Com o mundo do jeito que está, é uma loucura deixar  os filhos saírem de casa.

JANETE – É a necessidade. Se quiser um futuro melhor, não tem outro jeito.

CLARINDA – Filho meu não faz uma coisa dessas. Prefiro que eles fiquem sem estudar.

JANETE – (OLHANDO O RELÓGIO) É melhor se adiantar, Mazinho. Olha a hora.

MAZINHO – Não vai me levar na rodoviária?

JANETE – Não. A Tita vai, né Tita?

TITA – Vou.

MAZINHO – Então, vamos. (BEIJA JANETE E APERTA A MÃO DE DONA CLARINDA)

JANETE – Juízo. Deus te acompanha. Não deixa de escrever. Quero notícias sempre.

MAZINHO – Vamos, tia.

TITA – Não vai se despedir de seu pai?

MAZINHO –  (BEIJA) Tchau, paizão!

OSMAR – (SEGURA A MÃO DE MAZINHO POR ALGUM TEMPO)

MAZINHO – (SAI LEVANDO A MALA, SEGUIDO DE TITA)

JANETE – (GRITA) Não se esqueça de ir à missa aos domingos. Coloquei uns sanduíches para você comer na viagem. (PARA CLARINDA) Dá um aperto no coração.

CLARINDA – Não tem medo?

JANETE – De que?

CLARINDA – Não está sabendo? A maioria dos rapazes daqui que estudam fora está fazendo uso daquela coisa maldita.

JANETE – Mazinho é ajuizado.

CLARINDA – Todos são quando saem daqui. Não viu o caso do filho da Maria? Quando o Fernando saiu daqui era um bom menino, até participava do grupo jovem da igreja. Acabou morto em Belo Horizonte por causa de envolvimento com tóxico. Nem estudou, nem fez coisa nenhuma. Maria é que ficou marcada para o resto da vida. Um horror!

JANETE – É. Faz pena ver o estado dela.

CLARINDA – Perdeu a alegria de viver, se afastou da igreja, dos amigos... A vida dela, agora, é chorar. Tudo isso pode se evitar deixando os filhos debaixo dos nossos olhos.

JANETE – Não se pode proteger a vida toda.

SARINHA – (ENTRANDO) Onde está o Mazinho?

JANETE – Já foi.

SARINHA – E não se despediu de mim?

JANETE – Vai até a rodoviária que você ainda encontra com ele.

SARINHA – É o que eu vou fazer. (SAI)

JANETE – (PARA CLARINDA) Vive brigando com o irmão, mas no fundo é louca por ele.

CLARINDA – (PAUSA) Me empresta o liquidificador.

JANETE – Não sei se está aqui. Tita andou emprestando para a vizinha nova aí da frente. A esposa do novo gerente do Banco do Brasil. Veio aí com uma conversa de que a mudança ainda não chegou.  Vou dar uma olhada. (SAI)

CLARINDA – Acho aquela mulher tão esquisita.  Não me dou com ela. Tão metida! Um nojo! (CERTIFICA-SE SE ESTÁ SÓ E SE APROXIMA DE OSMAR) Ela pediu sua opinião? Aposto que não. Foi logo mandando o menino estudar fora sem ao menos saber se você aprovava ou não. Um absurdo! Age como se você nem existisse. Deus me perdoe! Isso é um castigo! (PAUSA) Reparou ontem? Ela saiu de novo. Não acredito que ela tenha ido apenas dar umas voltinhas na praça. É mentira! Fui até lá e ela não estava. Enquanto isso você fica aí jogado às traças. Pode deixar comigo. Vou dar um jeito nessa situação. Mais dia menos dia uma bomba vai estourar. Ah, se vai! Só se eu não me chamar Clarinda da Boa Morte dos Santos!

JANETE – (ENTRANDO) Não encontrei. Deve estar mesmo na vizinha. A Tita não perde a mania de querer agradar a cada novo vizinho que aparece.

CLARINDA – (DISFARÇANDO NATURALIDADE) Que pena! Queria fazer uma vitamina para o Vivi. 

JANETE – Ele está de folga?

CLARINDA – Qual nada! Está trabalhando. Deixe eu ir. Não se esqueça de mandar o número do telefone lá de casa para o Mazinho. É para uma emergência.

JANETE – Ele sabe o número de cor.

CLARINDA –  Diz para ele ligar sempre que precisar. Só faço questão quando é  para bobagem, mas num caso desses... (SAI)

JANETE – (AJEITA A SALA COLOCANDO AS COISAS NO LUGAR. PARA E PERCEBE QUE OSMAR A OBSERVA) Não precisa ficar triste. É para o bem dele. Quem sabe um dia ele não tira você daí dessa cadeira? A medicina tem evoluído muito ,nesse sentido, nos últimos anos. Quem sabe um dia não acontece um milagre? Você de pé de novo, andando, falando. E já pensou se não será pelas mãos do seu próprio filho? Mazinho vai ser doutor em medicina. (PAUSA) Acho ele tão parecido com você. Até o jeito de... (CAI EM SI) O que estou fazendo? Que perda de tempo! Não entende nada mesmo. Fica aí como um morto-vivo. (DRÁSTICA) Levanta daí. Faz alguma coisa! Dá um grito. Diz que está tudo errado, que não sou uma boa esposa, boa mãe, que não queria nosso filho longe da gente...

CLARIND A – (ENTRANDO) Janete...

JANETE – (DISFARÇA) Oi.

CLARINDA – A Tita já chegou?

JANETE – Ainda não.

CLARINDA – Ouvi vozes. Pensei que fosse ela. Quero ir às barraquinhas. Vou aproveitar que o Vivi está no pernoite para dar uma mão na festa do padroeiro. Prometi  ao Padre  Bento. Você não vai?

JANETE – Não. Estou muito cansada e não tenho com quem deixar o Osmar.

CLARINDA – E a Sarinha ?

JANETE – Não quero exigir nada dela por enquanto. É para ver se ela esquece a ideia de estudar fora.

CLARINDA – Se fosse comigo! Você é tão moça. Precisa se divertir. Sarinha é uma criança, tem muito tempo pela frente. Precisa pensar mais em você, Janete.

JANETE – De que jeito? Se pelo menos o Osmar... Não tem sentido eu ir sozinha. (OUVEM-SE BARULHO DE CARRO)

CLARINDA – Sua boba. Não tem nada de mais. (VAI ATÉ A JANELA) Ih! É o Vivi que chegou para jantar. Não tenho sossego um minuto. Essa vida! (SAI)

JANETE – (PARA OSMAR) Você é um estorvo na minha vida.

OSMAR – (ABAIXA A CABEÇA, SENTIDO)

JANETE – (ARREPENDIDA) Desculpa! Queria que as coisas fossem diferentes. (SAI. LUZ APAGA. PAUSA GRANDE. LUZ VOLTA. OSMAR NÃO ESTÁ. É NOITE. JANETE ENTRA, SENTA NA MÁQUINA E COMEÇA A COSTURAR.)

TITA – (FORA) Boa noite, dona Clarinda!

CLARINDA –  (FORA) Boa noite, Tita! Não se esqueça de me chamar amanhã.

TITA – (QUASE ENTRANDO) Pode deixar. (ENTRA. PARA JANETE) Você perdeu.

JANETE – O que?

TITA – As barraquinhas estavam tão animadas.

JANETE – Estava ouvindo daqui.

TITA – Domingo é o dia mais animado.

JANETE – Onde está a Sarinha? Ela não veio com você?

TITA – Veio. Está lá fora.

JANETE – (LEVANTA, VAI ATÉ A JANELA E GRITA) Sarinha! Para dentro, já!

SARINHA – (FORA) Já vou, mãe.

JANETE – (VOLTANDO DA JANELA) Não devia ter entrado sem ela, Tita.

TITA – Ela disse que não ia demorar.

JANETE – Você é uma imprestável! Não disse para vigiar? Olha lá. Está com aquele traste. (VOLTA À JANELA) Sarinha, quer que eu vá aí buscar você? (TITA SAI, MAGOADA. OUVE-SE BARULHO DE CARRO ARRANCANDO)

SARINHA – (ENTRANDO) Que isso, mãe? O Tavinho não está acostumando com esse escândalo todo?

JANETE – Esqueceu o que eu disse?

SARINHA – O que?

JANETE – Que não quero você de conversa com esse rapaz.

SARINHA – É só amizade.

JANETE – É assim que começa. (AUTORITÁRIA) Estou avisando. Corta essa amizade enquanto é tempo. Esse rapaz não é boa bisca.

SARINHA – A senhora coloca defeito em todo mundo.

JANETE – Vai dormir que amanhã tem que acordar cedo.

SARINHA – Cadê o pai?

JANETE – Já coloquei ele na para dormir.

SARINHA – Sozinha?

JANETE – E tinha outro jeito?

SARINHA – Tia Tita já foi dormir?

JANETE – Acho que sim.

SARINHA – Sua benção. (SAI)

JANETE – Deus te abençoa. (JANETE VOLTA A COSTURAR. PAUSA. OUVEM-SE UM ASSOBIO VINDO DA RUA. JANETE, QUE ESTAVA COSTURANDO, LEVANTA E VAI ATÉ A JANELA) Seu maluco! Não disse para não vir aqui? (FAZ SINAL PARA ESPERAR E AFASTA-SE  DA JANELA BASTANTE EUFÓRICA. PENTEIA OS CABELOS DIANTE DO ESPELHO, AJEITANDO A ROUPA NO CORPO. VAI ATÉ A PORTA QUE DÁ PARA OS QUARTOS COMO QUE PARA CERTIFICAR SE TODOS DORMEM. ATRAVESSA A SALA E SAI. LUZ APAGA.)

CENA III

OUTRO DIA. JANETE CORTA, COM DESTREZA, UM PANO QUE ESTÁ ESTENDIDO NA MESA. É UM VESTIDO DE SENHORA. TITA ESTÁ DO LADO, OBSERVANDO. OSMAR VÊ TELEVISÃO. ELE DEMONSTRA ESTAR GOSTANDO DO QUE VÊ E ESBOÇA UM SORRISO, TENTANDO MOVIMENTAR O CORPO.

TITA – Queria saber costurar assim como você.

JANETE – É só ter boa vontade para aprender.

TITA – Um dia você me ensina?

JANETE – Como se eu já não tivesse tentado um milhão de vezes.

TITA – Você não tem paciência. Quer que a gente aprenda tudo num dia.

JANETE – Você que é burra mesmo. A gente fala e você não entende. Nunca ensinei e a Sarinha já sabe alguma coisa. (COM ORGULHO) Se deixar, é capaz de fazer qualquer peça direitinho. Só não deixo a Sarinha pegar na máquina porque tenho medo. Se estraga essa máquina, fico louca. Não sei como ia fazer.

SARINHA – (ENTRANDO EUFÓRICA) O carro novo do seu Vivi chegou. Vem ver, mãe.

JANETE – Era só o que me faltava!

SARINHA – Vem, tia Tita. (ARRASTA TITA PARA A JANELA) Não é bonito?

TITA – É.

SARINHA – Dona Clarinda estava reclamando.

TITA – De quê?

SARINHA – Ainda não deu uma volta no carro porque o seu Vivi  não convidou. (COM PICARDIA) Ele está certo. Aquele trambolho vai estragar o carro.

TITA – Que jeito de falar, Sarinha!

SARINHA – Vai tirar a beleza do carro. E depois todo mundo sabe que seu Vivi adora pular a cerca.

JANETE – Sarinha, que conversa é essa?

TITA – Isso não é conversa para uma menina da sua idade.

SARINHA – É verdade mesmo! Ele é tão moço para dona Clarinda. Isso é que dá casar com homem mais novo.

JANETE – Cala a boca, Sarinha!

SARINHA – A gente não pode falar nada aqui em casa.

JANETE – Por falar nisso, precisamos conversar.

SARINHA – Lá vem bronca!

JANETE – Você foi avisada.

SARINHA – O que foi que eu fiz dessa vez?

JANETE – Tavinho... Que mais podia ser?

SARINHA – Não tenho visto ele.

JANETE – Não mente. Vieram me contar que você anda se encontrando com ele depois da aula.

SARINHA – Mentira.

JANETE – (PARTE PARA CIMA DE SARINHA) Mentira, é?

SARINHA – Que é isso, mãe? (CORRE E ABRAÇA OSMAR) Vai me bater?

JANETE – Bem que está merecendo.

SARINHA – (AGARRADA A OSMAR) Olha, pai. Ela quer me bater.

JANETE – Bandida! Sempre se valeu do pai.

TITA – Desde pequena.

JANETE – Pedi que não ficasse de assunto com o Tavinho. Ele não é para você.

SARINHA – Por quê?

JANETE – Por quê? Porque ele é rico. Não vai casar com uma pobretona como você. Só quer se aproveitar para depois fazer o que faz com todas. Não viu a Célia? Agora está aí com um filho nos braços. Isso sem falar das outras. A Lourdinha, a Valquíria, a Glória... Com você não vai ser diferente. Ele é um aproveitador. Explora o pai. Nunca  trabalhou na vida. É verdade que seu Donato é o fazendeiro mais rico da cidade, mas ele podia pelo menos se interessar pelos negócios do pai. Se seu Donato morre, ele está perdido. E o pior, ele é noivo. Dona Florzinha vive falando da futura nora.

SARINHA – Acabou o noivado.

JANETE – É o que ele diz para todas.

TITA – Dona Florzinha disse que o pai da noiva não vai permitir o casamento antes que a filha se forme. Ela estuda medicina, se não me engano.

JANETE – Não falei!? Se pelo menos o Mazinho estivesse aqui para impor respeito.

SARINHA – Até parece!

JANETE – Com o Mazinho aqui eu ficava mais tranquila. Ele vigiava você.

SARINHA – Ele não é o meu pai.

JANETE – Tavinho não é bobo. Sabe que seu irmão não mora mais aqui e que seu pai é um morto-vivo.

SARINHA – (FAZ CARINHO EM OSMAR) A senhora vive ofendendo o pai.

JANETE – Não muda de assunto. (COM AUTORIDADE) Se insistir, sai da escola, da loja e vai ficar trancada em casa. Quero ver como você vai fazer para se encontrar com ele.

SARINHA – A senhora teria coragem?

JANETE – É só teimar em me desobedecer. Não criei filha para vagabundo bolinar.

SARINHA – A senhora fala como se fosse uma velha. (PAUSA. JANETE VOLTA A TRABALHAR EM SILÊNCIO)

TITA – Mazinho vem no final de semana?

JANETE – Mandei o dinheiro.

SARINHA – Ele que é sortudo.

JANETE – Não sei por quê.

SARINHA – Mora fora. É livre. Não tem ninguém no pé dele.

JANETE – Você é que pensa. Sei de cada passo dele em Uberaba. Mesmo porque se ele não passar no vestibular, volta. Não vou ficar me matando de trabalhar para ele ficar no bem bom. Ele que trate de estudar bastante para não levar bomba. (PARA TITA) Tomou o remédio?

TITA – Não.

JANETE – O que está esperando?

TITA – Nada.

JANETE – Então vai tomar o remédio. (TITA SAI) Tem que  ficar em cima. Não me basta levar ao médico, comprar os remédios, eu ainda tenho que bancar a enfermeira. (PARA SARINHA) Vai ver se ela tomou o remédio.

TITA – (VOLTANDO) Não precisa, Janete. Não sou criança.

JANETE – Eu é que sei. Estou cansada de achar comprimido jogado pelos cantos da casa.

TITA – Está querendo dizer que jogo fora?

JANETE – Imagina!

TITA –  (DESILUDIDA) Não sei por que eu vivo. Podia morrer.

JANETE – Não diz besteira, Tita. Deus castiga. (PAUSA. SARINHA APROXIMA-SE DE JANETE)

SARINHA – Mãe, a senhora saiu ontem à noite?

JANETE – (ASSUSTADA) Claro que não!

SARINHA – Levantei para tomar água e não vi a senhora. Procurei pela casa toda.

JANETE – Estava dormindo, ora.

SARINHA – Fui ao quarto. A senhora não estava lá. O pai estava sozinho.

JANETE – (TENTANDO DISFARÇAR O EMBARAÇO) Que ideia! Foi sonho. Só pode ter sido sonho. Cansada do jeito que eu estava. E depois, aonde eu iria altas horas da noite?

SARINHA – (PAUSA) Mãe, a senhora ainda gosta do pai?

JANETE – Que pergunta, menina! É claro que eu gosto!

SARINHA – Mesmo com ele assim?

JANETE – Esta menina anda com umas ideias... (DONA CLARINDA APARECE NA JANELA)

SARINHA – Como vai de carro novo, dona Clarinda?

CLARINDA – Vivi é quem sabe. Agora só pensa no carro. Está que parece uma criança.

SARINHA – Já deu uma voltinha para estrear?

JANETE – (OLHA PARA SARINHA, REPREENSÍVEL) Sarinha!

CLARINDA – Ainda não. Não ligo para essas bobagens. Tenho pernas boas para andar. (PARA JANETE, DISSIMULADA) Adivinha quem chegou na cidade?

JANETE – Quem?

CLARINDA – Não vai acreditar.

JANETE – Fala mulher.

CLARINDA – A Dulce.

JANETE –  (ADMIRADA) A Dulce!?

SARINHA – (COM GRANDE INTERESSE) Tia Dulce!?

CLARINDA – Está hospedada no hotel Triângulo.

JANETE – Isso é a cara da Dulce.

SARINHA – Vou lá vê-la.

JANETE – Nada disso!

SARINHA – Por que, mãe?

JANETE – Se ela quiser ver você que venha aqui. É irmã do seu pai. Tem motivos de sobra para vir aqui e não vem. Há anos que ela não faz uma visita ao seu pai. Irmã desnaturada!

CLARINDA – (CÍNICA) Quem sabe ela não vem dessa vez?

JANETE – Duvido muito.

CLARINDA – Nunca se sabe. (PARA TITA) Vai à missa, Tita?

TITA – Não.

CLARINDA – Por quê?

TITA – Não estou me sentindo bem.

JANETE – Não toma o remédio na hora certa.

CLARINDA – É preciso seguir o que o médico manda, Tita.

JANETE – Não adianta falar.

TITA – (NERVOSA) Me deixa! (SAI)

CLARINDA – Que foi que houve?

JANETE – Está atacada. É a lua.  (RISOS)

SARINHA – Tia Tita podia arrumar um casamento.

JANETE – Também acho.

CLARINDA – Sei de um caso parecido com o dela, foi só casar e ficou boa.

JANETE – É mais fácil o Osmar voltar a andar do que a Tita arranjar um marido.

CLARINDA – (PAUSA) A Dulce mora em Belo Horizonte, não é?

JANETE – É.

CLARINDA – O que será que ela veio fazer aqui?

JANETE – Não sei e tenho raiva de quem sabe.

SARINHA – A mãe odeia a tia Dulce.

JANETE – Não é isso.

SARINHA – Então o que é?

JANETE – É pelo Osmar. Acho um desaforo ela não se lembrar do irmão. Por mim, não me preocupo. Mas ela devia ao menos visitar o irmão de vez em quando.

SARINHA – Acho a tia Dulce o máximo. Tão chique, elegante...

JANETE – Como sabe?

SARINHA – Vi uma vez, de longe. Quando ela veio para o casamento do Tatá.

JANETE – Falou com você?

SARINHA – Não. Acho que ela não me reconheceu. (SAI)

JANETE – (PARA DONA CLARINDA) Deve ter fingido. Sarinha é tão parecida com eles. Difícil não reconhecer.

CLARINDA – O Mazinho é mais parecido com eles.

JANETE – Os dois, infelizmente.

CLARINDA – (PAUSA) Ficou sabendo da novidade?

JANETE – E acontece alguma novidade nesta cidade?

CLARINDA – Chegou um curandeiro na cidade. Disseram que é muito bom.

JANETE – Mais um charlatão para explorar a boa fé do povo.

CLARINDA – Que nada! O homem faz verdadeiros milagres. Curou até o reumatismo da Isaura. Agora ela ficou boa de vez.

JANETE – Isaura é que nem folha de bananeira, cada hora está para um lado. Tem época que é católica fervorosa, noutras vira crente de bíblia na mão e tudo, agora virou para a bruxaria. Não entendo. Acende uma vela para Deus e outra para o diabo. (SE BENZE DE BRINCADEIRA) Que Deus me perdoe!

CLARINDA – Devia levar o Osmar e a Tita para fazer consulta com ele.

JANETE – Para que?

CLARINDA – Quem sabe ele não dá um jeito nos dois? Já pensou se o Osmar voltasse a andar e a falar de novo e a Tita parasse com esses ataques? Sei que é difícil, mas para Deus nada é impossível.

JANETE – (COM HUMOR) Deus!? E essa gente tem parte com Deus? Tudo isso é coisa do demônio.

CLARINDA – Que nada, boba! Os trabalhos do curandeiro são feitos de acordo com a bíblia. Ele começa a sessão rezando a oração do Pai Nosso. Precisa ver.

JANETE –  (CURIOSA) Já fez consulta com ele?

CLARINDA – Não. Dona Iracema me contou. (PAUSA) Estou pensando em ir.

JANETE – Por quê? Está com algum problema?

CLARINDA – Mais ou menos. (PAUSA) É o Vivi.

JANETE – O que tem ele? Voltou o problema da hemorroida?

CLARINDA – Não. O motivo é outro. Bem outro. Nem queira saber. (CONFIDENTE) Parece bobagem, mas já estou cansada. O Vivi só pensa no carro. Não liga para mim. Dona Iracema disse que é encosto.

JANETE – Padre Bento vai ficar uma arara quando descobrir que suas auxiliares na igreja estão se debandando para o lado da bruxaria.

SARINHA – (FORA) Mãe, vem aqui. Tia Tita está passando mal.

JANETE –  (SAI) Ai, meu Deus!

CLARINDA – Eu vou ajudar. (FAZ UM SINAL PARA OSMAR) Chegou nosso grande momento. Seu sofrimento chegou ao fim. (SAI EM DIREÇÃO DOS QUARTOS. OSMAR FICA APAVORADO. LUZ APAGA)

CENA IV

DIAS DEPOIS. SALA VAZIA. É DE MANHÃ. JANETE ENTRA, VINDO DA RUA. TRAZ UM PÃO GRANDE ENROLADO DEBAIXO DO BRAÇO. COLOCA O PÃO NA MESA QUE ESTÁ PREPARADA PARA O CAFÉ E SAI. VOLTA COM UMA GARRAFA DE CAFÉ, QUE TAMBÉM COLOCA NA MESA, ONDE SENTA E PÕE-SE A TOMAR CAFÉ.

JANETE – (GRITA) Olha a hora, Sarinha. Vai chegar atrasada na loja.

SARINHA – (FORA) Já estou quase pronta, mãe.

JANETE – Não sei para que tanto se enfeitar. Vem que o café já está esfriando.

SARINHA – (ENTRANDO) Seu Romero gosta que agente vá bem vestida. (SENTA  E COMEÇA A TOMAR CAFÉ) É para atrair a freguesia. Ele não é bobo.

JANETE –  (DESCONFIADA) O motivo é esse mesmo?

SARINHA – Claro que é.

JANETE – (ENCARANDO SARINHA) Não me faça de otária. É para ele, não é?

SARINHA – Não sei do que a senhora está falando.

JANETE – Do Tavinho. De quem mais podia ser?

SARINHA – Que ideia, mãe!  (CÍNICA) A senhora me proibiu de falar com ele, não?

JANETE – Pensa que eu acredito que você parou de falar com ele? Acha que não tive a sua idade, namorados e uma mãe me vigiando vinte e quatro horas por dia? Se eu ficar sabendo que você andou dando conversa para aquele aproveitador, já sabe o que vai acontecer. Vai ficar trancada em casa, nem no portão não vai sair.

SARINHA – A senhora me trata com se eu fosse uma criança.

JANETE – E não é? (SAINDO DA MESA E INDO NA DIREÇÃO DA MÁQUINA DE COSTURA) Por acaso é dona seu nariz?

SARINHA – (PAUSA) O pai ainda não acordou?

JANETE –  (ABRINDO A MÁQUINA E SE PREPARANDO PARA TRABALHAR) Já. Está na cama. Estou esperando a Tita para me ajudar a colocar ele na cadeira.

SARINHA – Onde está a tia Tita?

JANETE – Dormindo.

SARINHA – Até essa hora? Ela não é disso.

JANETE – Deixa ela dormir. Passou mal a noite toda. Um inferno! É melhor deixar ela dormir. Seu pai espera.

SARINHA – (LEVANTA DA MESA) Tchau, mãe. Já vou.

JANETE – Espera. ( DEIXA A MÁQUINA E VAI ATÉ O MÓVEL, ABRE UMA GAVETA E TIRA UM PAPEL) Traga esses aviamentos na hora do almoço. Não é para esquecer. Essa gente não perde a mania. Está sempre faltando aviamento. Acha que tenho obrigação de comprar.

SARINHA – E o dinheiro?

JANETE – Pede para seu Romero colocar na minha conta. Tem alguma novidade lá?

SARINHA – Chegaram umas fazendas novas. Cada pano lindo.

JANETE – Não acredito. Seu Romero sempre teve mau gosto.

SARINHA – Agora ele está pedindo minha opinião. Não compra nada sem antes me perguntar se gosto.

JANETE – Olha essas confianças!

SARINHA – Que ideia, mãe! Seu Romero serve para ser meu pai.

JANETE – Sei disso.

SARINHA – (SAINDO) Tchau!

JANETE – Vai com Deus. (COMEÇA A COSTURAR. PAUSA. TITA ENTRA. ESTÁ UM POUCO ABATIDA) Melhorou?

TITA – Mais ou menos.

JANETE – Passou mal a noite toda. Quase não me deixou dormir.

TITA – Foi!? Desculpa.

JANETE – Não aprende. O médico diz para fazer uma coisa e você faz outra. Toma  seu café e depois me ajuda a trazer o Osmar aqui para a sala.

TITA – Estou sem fome.

JANETE – Tem que comer. Depois morre, vão dizer que deixei passar fome. Sabe como é a língua dessa gente. (VENDO QUE TITA PERMANECE PARADA) Toma logo esse café. O Osmar deve estar impaciente.

TITA – (SENTA E COMEÇA  A TOMAR CAFÉ, LENTAMENTE)

CLARINDA – (ENTRANDO) Bom dia!

JANETE E TITA – Bom dia!

CLARINDA – Cheguei na hora boa. Posso tomar uma xícara de café?

JANETE – Esteja à vontade, dona Clarinda.

CLARINDA – (SENTA E SEM CERIMÔNIA COMEÇA A TOMAR CAFÉ E A COMER PÃO COM MANTEIGA DEMONSTRANDO CERTA GULA) Não gosto do café que eu faço. Não tem esse cheiro. Nem meu pão com manteiga tem esse sabor. Parece que na casa dos outros tudo é mais gostoso, é melhor, tem outro gosto.

JANETE – Parece.

CLARINDA – (PARA TITA) Não vai à igreja? As mulheres estão reunidas na igreja. Vão passar o dia em estado de oração.

TITA – Ainda não sei se vou.

JANETE – O que está acontecendo?

CLARINDA – Dona Florzinha Donato foi operada em Belo Horizonte. Aquele problema que ela tem na vesícula. Tão dizendo que não passa de hoje. Coitada!

TITA – Ela faz parte do Apostolado da Oração.

JANETE – Está ali uma boa pessoa.

CLARINDA – Uma santa! Tão caridosa!

TITA – (PARA CLARINDA) A senhora vai?

CLARINDA – Vou dar uma passadinha por lá. O dia inteiro não dá para ficar. Tenho que fazer o almoço. Vivi foi escalado para trabalhar durante o dia essa semana. Minha perdição são essas escalas. Não me acostumo. Qualquer dia, eu vou à fábrica conversar com o diretor. Vivi podia ter um horário fixo. (LEVANTANDO DA MESA) Vem comigo, Tita?

TITA – (COMEÇA A TIRAR A MESA DO CAFÉ, LEVANDO AS COISAS PARA A COZINHA COM CERTA LENTIDÃO) Vou mais tarde.

CLARINDA – (SAINDO) Vou andando.

JANETE – Se encontrar dona Santinha pede para ela vir buscar o vestido. Está pronto.

CLARINDA – Está bem. Eu digo. Até logo. (SAI)

JANETE – Vamos lá, Tita, senão o Osmar vai ter um troço. (SAI NA DIREÇÃO DOS QUARTOS. TITA CONTINUA TIRANDO A MESA.  LUZ APAGA)

CENA V

JANETE ESTÁ COSTURANDO. OSMAR VÊ TELEVISÃO. TITA ENTRA, VINDO DA DIREÇÃO DOS QUARTOS.

TITA – Quer alguma coisa da rua?

JANETE – Pega dinheiro na gaveta. Vê se encontra alguma verdura ou legume fresco para o almoço. Ainda tem carne na geladeira?

TITA – (PEGA O DINHEIRO NA GAVETA) Tem.

JANETE – Então é só isso. Não vai ficar o dia inteiro na igreja. Olha o almoço! Hoje não posso parar com as costuras. Tenho muita coisa para entregar essa semana. Nem sei como fazer. (TITA SAI. JANETE VOLTA A COSTURAR. PAUSA. BATEM NA PORTA) Pode entrar. A porta está aberta. (VOLTAM A BATER. JANETE LEVANTA E CAMINHA PARA A PORTA) Já disse que a porta está aberta. Que coisa! Quem será? (ABRE A PORTA. SURPRESA) Você!?

DULCE – (ENTRA. É UMA MULHER ELEGANTE E AFETADA, APARENTANDO QUARENTA ANOS DE IDADE) Não esperava, não é?

JANETE – Tanto tempo, Dulce. (SEM JEITO) Não quer sentar?

DULCE – Não obrigada. Estou bem de pé. O meu irmão, onde está?

JANETE – (APONTA PARA OSMAR) No lugar de sempre.

DULCE – (CAMINHA PARA OSMAR E O ABRAÇA) Meu irmão! Quanto tempo! O que fizeram com você? Meu Deus! (PARA JANETE) Ele não toma sol? Está tão pálido!

JANETE – É muito raro ele tomar sol. Ficou difícil tirar o Osmar para fora de casa. Ele engordou muito nos últimos tempos. Sua vida é do quarto para a sala e da sala para o quarto. Mesmo assim, às vezes, ainda fica difícil. Tem horas que não tem ninguém para ajudar. De casa ele só sai quando vai ao médico. Isso quando o doutor Oscar não vem aqui para vê-lo.

DULCE – (PARA OSMAR) Seu martírio acabou, querido. Agora eu estou aqui e vou cuidar de você.

OSMAR – (REAÇÃO  DE PAVOR)

DULCE – (PARA JANETE) Onde estão as crianças?

JANETE – Crianças!? Já estão crescidos. Sarinha, sua afilhada, está trabalhando. Arranjou emprego de balconista na loja do seu Romero. Aquela lojinha que tem ali na entrada da Rua Vinte. Está moça. Bonita que só vendo.

DULCE – E o Osmar Júnior?

JANETE – Mandei estudar fora. Terminou o segundo grau e quis continuar. Diz que vai ser médico para cuidar do pai. Sempre foi estudioso. A gente precisa fazer a vontade dos filhos quando eles fazem por merecer, não é? Está um rapagão. Virou homem. Fala grosso e tudo.

DULCE – Tem mais alguém em casa?

JANETE – Só eu e o Osmar. Tita saiu.

DULCE – Foi bom encontrá-la sozinha.

JANETE – Uai!? Por quê?

DULCE – Precisamos conversar.

JANETE – (ANIMADA) Faz muito tempo que a gente não se encontra, não é? Você nunca mais apareceu. Esqueceu que tem um irmão. (FIXA O OLHAR EM DULCE) Está bonita, elegante... Parece que o tempo não passou para você. Está do mesmo jeito que quando saiu daqui. Até mais moça.

DULCE – (ORGULHOSA) Obrigada.

JANETE – (TRISTE) Eu é que me acabei.

DULCE – (FRIA) Nem tanto.

JANETE – É a vida. A gente passa por uns pedaços... (PERCEBE QUE DULCE AINDA CONTINUA DE PÉ) Vai ficar aí feito um dois de paus. Senta. Vou preparar um café.

DULCE – Não precisa. Não tomo café. Obrigada.

JANETE – Quem vê a gente assim cheia de cerimônia uma com a outra pode até pensar que somos duas estranhas. E pensar que a gente já foi unha e carne.

DULCE – Eram outros tempos.

JANETE – A gente era jovem, não tinha muita noção do que era a vida.

DULCE – (TIRA DA BOLSA ALGUNS ENVELOPES) Sabe o que é isso?

JANETE – Parece que são cartas, ora!

DULCE – E são.

JANETE – O que eu tenho a ver com estas cartas?

DULCE – Muito. São cartas, algumas antigas, outras mais recentes, onde me é relatada toda a sua vida.

JANETE – (ASSUSTADA) O quê?

DULCE – Exatamente o que você ouviu. Durante anos venho recebendo relatos de uma pessoa anônima que, inconformada com os maus tratos a que você submete o Osmar, resolveu me botar a par de tudo.

JANETE – Que absurdo! Nunca maltratei o Osmar. É verdade que às vezes eu perco a paciência com ele, mas são momentos de fraqueza que qualquer pessoa pode ter.

DULCE – Qualquer carrasco da sua linhagem. Porque pelo que diz nestas cartas você age como verdadeiro carrasco, privando-o de tudo até mesmo das coisas mínimas, como alimentação ou deixando que ele faça suas necessidades fisiológicas na roupa e outras barbaridades mais.

JANETE – (DESCONTROLADA) É mentira!

DULCE – É melhor mantermos essa conversa num tom mais ameno.

JANETE – Entra na minha casa me fazendo acusações e quer que eu fique calma?

DULCE – Sei que é pedir muito, mas se pudéssemos pelo menos falar um pouco mais baixo, seria melhor para você. Os vizinhos não precisam ouvir.

JANETE – (MAIS CALMA) Desculpa. É que fiquei descontrolada. Não posso permitir que falem uma coisa dessas. Cuido do Osmar desde que ele sofreu o acidente. Ninguém tem o direito de falar. Se às vezes passa da hora de comer é porque não tem quem lhe dê na boca. Quem faz isso para mim é a Tita, mas ela é doente. Não posso exigir muito dela. E eu tenho que trabalhar para sustentar a casa. A aposentadoria do Osmar é muito pequena. O grosso mesmo eu tiro na máquina.

DULCE – Nada justifica o sofrimento humano.

JANETE – Fala assim porque não está na minha situação. Tem marido rico, forte e sadio. Quero ver se um dia ele cair em desgraça como o Osmar... São quinze anos cuidando deste homem, sozinha e Deus.

DULCE – Poderia ter pedido ajuda aos irmãos dele.

JANETE – E vocês alguma vez se importaram com ele?

DULCE – Eu moro fora. Tenho minha vida, meu marido.

JANETE – E os outros? O Otávio, o Alfredo, o Doca, o Betinho... Eles estão todos aí. Custava dar uma passadinha de vez  em quando para visitar o irmão?

DULCE – Não posso responder por eles.

JANETE – Se dependesse de algum deles o Osmar estava era morto.

DULCE – Isso vai acabar!

JANETE – O que quer dizer com isso?

DULCE – Estou ajeitando as coisas.

JANETE – Que coisas?

DULCE – Vou levar o Osmar comigo.

JANETE – Só se for por cima do meu cadáver!

DULCE – Não adianta tentar impedir, Janete. (TIRA UM PAPEL DA BOLSA) Tenho uma procuração assinada por todos os irmãos.

JANETE – (SEM COMPREENDER) Para que isso?

DULCE – Todos os irmãos concordam que eu leve o Osmar para fazer um tratamento em Belo Horizonte. Já arrumei uma boa clínica para ele. (PARA OSMAR) Não se preocupe, querido, você terá o tratamento que devia ter tido e que não teve.

OSMAR – (REAÇÃO DE PAVOR)

JANETE – Não adianta nada. Doutor Oscar disse que o caso dele não tem jeito. O acidente provocou uma lesão no cérebro que impede que ele ande, fale ou faça movimentos. Essas conversas de médico. Não entendo muito. Já tentei de tudo. Fisioterapia então... Um dinheirão!

DULCE – Agora isso não é mais problema. (PAUSA) Está decidido. Vim aqui para avisar.

JANETE – (CORRE PARA JUNDO DE OSMAR) Ninguém vai tirar meu marido de mim!

DULCE – Marido!?

JANETE – O que está querendo insinuar?

DULCE – Você sabe.

JANETE – O que?

DULCE – Não se faça de desentendida. (PAUSA) Conhece um tal de Zuca Pedreiro?

JANETE – (ASSUSTADA) O Zuca? (TENTA DISFARÇAR) Claro. É o filho da falecida dona Joana do seu Amaro.

DULCE – Casado com a Linda, filha do Tião Sapateiro, pai de cinco filhos pequenos...

JANETE – O que tem isso agora?

DULCE – Tudo.

JANETE – Não estou entendendo.

DULCE – Pelas cartas tomei conhecimento de que você mantém um escandaloso caso amoroso com o dito cujo. Sabe o que é isso? Adultério. Nem ao menos respeita a presença do meu irmão.

JANETE – Cala a boca!

DULCE – Vai negar?

JANETE – Respeita seu irmão. Ele está ouvindo.

DULCE – Se você não respeita, vai exigir isso de mim?

JANETE – Só queria saber quem foi o infeliz que inventou tudo isso.

DULCE – Alguém que ainda se abala com atrocidades como essa.

JANETE – (PARA OSMAR) Não está acreditando nisso, está? É tudo mentira para tirar você de mim. Essa gente que não tem o que fazer e fica cuidando da vida dos outros.

DULCE – Não adianta apelação. Agora é tarde.

JANETE – Diz o nome da pessoa.

DULCE – O nome é apenas um detalhe sem importância. O que vale é que agora estou sabendo de tudo. (PARA OSMAR) Pobre Osmar! Só de pensar no que você passou todos esses anos, humilhado, enganado, tratado como se fosse uma coisa chego a ficar enjoada. (PARA JANETE) Você não presta!

JANETE – (AVANÇA PARA CIMA DE DULCE) Me dá essas cartas. Quero ver se tem mesmo alguma coisa escrita aí.

DULCE – (DESVIANDO-SE) Vai me agredir? Isso só prova a sua culpa, querida.

JANETE – Não tem o direito de sair por aí espalhando discórdia entre as pessoas. Estava vivendo muito bem aqui longe de você. Vai embora!

DULCE – A vida que sempre quis. Um marido inválido para lhe dar nome para que pudesse prevaricar como sempre gostou.

JANETE – Não fala assim.

DULCE – Não merece outras palavras.

JANETE – Ninguém vai me tirar o Osmar.

DULCE – Vai tentar impedir?

JANETE – A Sarinha logo chega para o almoço. Ela vai ficar do meu lado.

DULCE – Se fosse você não teria tanta certeza.

JANETE – Conheço minha filha. Sarinha é louca pelo pai.

DULCE – Quero ver. Basta dar estas cartas para ela ler.

JANETE – Você não teria coragem. (HUMILHA-SE) Não faça isso, Dulce! Sei que você não é mãe, mas é mulher, sabe dessas coisas que a gente sente. Não tive culpa do que aconteceu com ele. Era muito nova quando tudo aconteceu. Sou mulher, humana. Resisti enquanto pude, mas não deu.

DULCE – Precisava ser com um homem casado?

JANETE – E isso importa?

DULCE – E os maus tratos que a Linda sofre por sua causa?

JANETE – Zuca bate nela porque ela é porca e não cuida dos filhos.

DULCE – Você é conivente.

JANETE –  (IMPLORANDO ) Vai embora, Dulce. Me deixa em paz.

DULCE – (RECOLOCA OS PAPEIS NA BOLSA E SE PREPARA PARA SAIR) Já está avisada. No mais tardar amanhã o Osmar parte comigo. Só vou telefonar para o Aragão. (INCISIVA) Porque eu tenho marido! Preciso avisá-lo sobre minha decisão. (BEIJA O ROSTO DE OSMAR) Eu vou cuidar de você, querido. (PARA JANETE) Arrume as coisas dele. Só o essencial. (SAI)

JANETE – (PARA OSMAR) Aposto que está me acusando também! Acha que sou uma vagabunda, não é? Pode dizer o que pensa. Deve estar morrendo de felicidade. Vai ficar livre de mim. Agora sua irmãzinha vai cuidar de você. Faça bom proveito. Eu não presto mesmo. Sou uma vagabunda da rua que não vale nada. (GRITA) Para de me olhar desse jeito! Faz alguma coisa! Bate na minha cara. (NUM GESTO DE PROFUNDA TERNURA, ABRAÇA OSMAR) Não me deixe, meu amor! (LUZ APAGA)

CENA VI

JANETE ESTÁ COSTURANDO, PARA, LEVANTA, VAI ATÉ A JANELA , VOLTA E RECOMEÇA O TRABALHO. ESTÁ NERVOSA E AGITADA. OSMAR ASSISTE TELEVISÃO. TITA ENTRA VINDO DA RUA.

TITA – (PARA JANETE) A cidade está tão movimentada.

JANETE – Que houve?

TITA – Hoje é o dia do julgamento dos envolvidos no crime da fazenda Larga. O prefeito instruiu o delegado a pedir reforço policial na capital. O fórum está entupido de gente.

JANETE – Tinha me esquecido.

TITA – Que barbaridade! Até hoje  fico assustada só de lembrar. Arrastaram o fazendeiro pelos campos como se fosse um animal.

JANETE – Às vezes dá vontade de fazer uma besteira dessas.

TITA – O quê?

JANETE – Destruir alguém que quer destruir a gente.

TITA – Que conversa! Ficou maluca?

JANETE – Quase.

TITA – Lembra-se do motivo do crime?

JANETE – Que crime?

TITA – A morte do Osvaldo pelos empregados.

JANETE – Questão de terra. Eles queriam um pedaço de terra como indenização pelo tempo de serviço na fazenda. Ele não quis dar, juntou a família e fez o que fez.

TITA – As pessoas se matam como se fossem animais. Falta Deus no coração desse povo.

JANETE – Parece padre Bento falando. ( LEVANTA, VAI ATÉ A JANELA E VOLTA PARA O TRABALHO)

TITA – Que foi? Está esperando alguém?

JANETE – Não. (PAUSA) A Sarinha está demorando. (CONSULTA O RELÓGIO) Tão tarde!

TITA – Está na loja. Ainda estava aberta quando eu passei. Seu Romero deve estar dando pulos de felicidade.

JANETE – Por quê?

TITA – A loja está cheia. Vendendo que é uma beleza.

JANETE – É?

TITA – O pessoal que veio da zona rural para assistir ao julgamento está aproveitando para fazer compras. Não demora você vai receber um monte de encomendas.

JANETE – Essa gente não costura comigo. Leva para a roça e faz por lá mesmo. (COM DESDÉM) Ainda bem. Cada pano horroroso.

TITA – Não acho. Cada um tem seu gosto.

JANETE – (PAUSA) A Dulce esteve aqui.

TITA – Quando?

JANETE – Logo depois que você saiu.

TITA – O que ela queria?

JANETE – Arrumou clínica para o Osmar, em Belo Horizonte. Vai fazer tratamento.

TITA – E você vai deixar ele ir?

JANETE – O que eu posso fazer? Ele é irmã dele.

TITA – Será que ele quer ir?

JANETE – Não sei.

TITA – E a Sarinha? O que acha disso?

JANETE – Ainda não falei com ela. Não veio almoçar. Estou preocupada.

TITA – Não disse que ela está na loja?

JANETE – Sem almoço?

TITA – Seu Romero deve ter mandado almoçar na casa dele que é mais perto.

JANETE – (SEM CONVICÇÃO) Pode ser.

TITA – Dona Clarinda apareceu?

JANETE – Desde cedo que não vem aqui. Estou estranhando. Não estava na igreja?

TITA – Pelo que me disseram nem passou por lá.

JANETE – Deve estar no fórum. Ela não ia perder o julgamento por nada desse mundo.

TITA – É mesmo. (PAUSA) Também queria ir.

JANETE – Onde?

TITA – No fórum.

JANETE – É melhor não.

TITA – Por quê?

JANETE – Você pode passar mal. Julgamentos são sempre debaixo de muita tensão.

TITA – (CONFORMADA) É. Melhor eu não ir.

CLARINDA – (ENTRANDO) Oi, gente!

JANETE – Não morre tão cedo.

CLARINDA – Por quê?

JANETE – A gente estava falando da senhora ainda agora.

CLARINDA – De bem ou de mal?

JANETE – Estava estranhando a sua ausência.

CLARINDA – Alguma novidade?

JANETE – Nenhuma.

CLARINDA – E a reunião das senhoras, Tita?

TITA – Já acabou.

CLARINDA – Que pena! Não deu para eu ir. (PARA JANETE) Fui ao tal curandeiro.

JANETE – E aí?

CLARINDA – Me ensinou um trabalhinho.

TITA – Que horror!

JANETE – Vai fazer?

CLARINDA – Vou. Temos que tentar de tudo, não é?

TITA – Padre Bento não vai gostar nada quando descobrir.

CLARINDA – (BALANÇANDO OS OMBROS) Para mim, tanto faz.

JANETE – E aí? Que tal o homem?

CLARINDA – Me pareceu sério.

TITA – Se fosse sério não enganava o povo.

CLARINDA –  (DESCONVERSANDO) E a Dulce? Apareceu?

JANETE – Sim. Veio ver o irmão.

CLARINDA – (FICA FELIZ E DISFARÇA) Que milagre! Sinal de progresso.

JANETE – É.

CLARINDA – (PAUSA) Chegou a conta do telefone.

JANETE – Quanto é a minha parte?

CLARINDA – Depois eu vejo.

JANETE – É muito?

CLARINDA – Ainda não fiz as contas. É muita gente que faz ligação lá de casa. Tenho que olhar com calma.

JANETE – Vou pedir para o Mazinho diminuir as ligações. Ao invés de ligar todo final de semana, passa a ligar de quinze em quinze dias. Desse jeito não aguento. É despesa com pensionato, cursinho, material... Tem que economizar!

TITA – Economia porca.

JANETE – Por quê?

TITA – Vai ficar sem notícias do menino?

JANETE – De quinze em quinze dias está muito bom.

CLARINDA – Você é quem sabe. O telefone está à disposição. (PAUSA) Vim aqui para lhe pedir um favor, Janete.

JANETE – Pode falar.

CLARINDA – Queria que você desse jantar para a Marcinha e o Jadir.

JANETE – Vai sair?

CLARINDA – Estou indo para o fórum. Não posso perder o julgamento. Sou pela condenação. E você?

JANETE – Prefiro não julgar.

CLARINDA – Onde já se viu fazer o que fizeram? Saiu até nos jornais da capital. Uma mancha no bom nome da nossa cidade. Dizem que o julgamento vai entrar pela madrugada. Já pensou? (SAINDO) Quanto aos meninos, não se preocupe. Sabe que eles não são de muito luxo para comer, não é?

JANETE – Eu sei disso.

CLARINDA – Vou indo. Até logo. (SAI)

JANETE E TITA – Até logo!

TITA – Se deixar daqui a pouco tempo vai pegar almoço, jantar, café da manhã...

JANETE – Isso ela sempre fez.

TITA – Enquanto isso o marido compra carro, telefone. Até novela ela assiste aqui para não gastar força na casa dela. Deus me livre! Dona Clarinda é muito boazinha, prestativa, mas também é muito exploradora. Sabia que ela aumenta o preço das chamadas telefônicas?

JANETE – Sempre desconfiei.

TITA – Pois é.

JANETE – (PAUSA) Estou estranhando.

TITA – O que?

JANETE – Você nunca fala assim. Sempre apoia todo mundo.

TITA – A gente cansa de ver as coisas erradas e permanecer calada sempre. (PAUSA. SARINHA ENTRA. ESTÁ ESTRANHA, COM UM AR DE DECEPÇÃO) Que cara é essa, Sarinha!

SARINHA – Cansaço.

TITA – Quando passei você estava dando um duro danado na loja.

JANETE – Por que não veio almoçar?

SARINHA – (SECA) Não deu.

JANETE – Fiquei preocupada. Devia ter mandado alguém avisar.

SARINHA – (SE APROXIMA DE OSMAR) Tenho pena do senhor.

JANETE – Que foi, Sarinha?

SARINHA – Nada.

JANETE – (DESCONFIADA) Que foi que você disse?

SARINHA – Falei nada não.

JANETE – Falou!

SARINHA – Falei com o pai. Coisa sem importância.

JANETE – (PAUSA) Por que está evitando me olhar?

SARINHA – Impressão da senhora.

JANETE – (CAMINHA PARA SARINHA) Olha para mim.

SARINHA – (DESVIANDO) Não. (CHORA CONVULSIVAMENTE)

JANETE – Que foi?

SARINHA – (CHORA)

TITA – Que foi, Sarinha?

JANETE – Sai daqui, Tita. Preciso ter uma conversa com a minha filha.

TITA – (SAI)

JANETE – Esteve com a Dulce?

SARINHA – Não.

JANETE – Não mente. Esteve ou não esteve?

SARINHA – (FAZ SINAL AFIRMANDO COM A CABEÇA)

JANETE – Ela contou que esteve  aqui?

SARINHA – (FAZ OUTRO SINAL AFIRMATIVO)

JANETE – Contou tudo?

SARINHA – Tudo.

JANETE – Concorda que ela leve seu pai de nós?

SARINHA – Sim.

JANETE – (DECEPCIONADA) Não esperava isso!

SARINHA – Eu também não.

JANETE – Que quer dizer com isso?

SARINHA – Nada não.

JANETE – Não vem com conversa atravessada. Fala logo. Sabia que aquela ordinária não teria escrúpulos.

SARINHA – Não fala assim da tia Dulce.

JANETE – Agora ela é Deus e eu sou o diabo.

SARINHA – A senhora não podia fazer isso com o pai.

JANETE – Quem sabe de mim sou eu. Não criei filho para me julgar. Quem pensa que é? O que você sabe da vida? Não pedi para acontecer nada disso. Sou tão vítima quanto o seu pai. Se ele sofre, sofro mais ainda. Ou pensa que é fácil para olhar para ele todos os dias encerrado nesta cadeira sabendo que um dia ele foi perfeito e sadio como qualquer um de nós? Não sabe o que é o sofrimento. Não passou por nada na vida.

SARINHA – Que vergonha!

JANETE – Só não me aborreço com você porque sei que está envenenada pela Dulce. Com o tempo vai entender e vai ver que eu não sou nenhum monstro.

SARINHA – (PAUSA) Tomei uma decisão.

JANETE – Que decisão?

SARINHA – Vou embora com a tia Dulce.

JANETE – Isso nunca!

SARINHA – Não precisa dizer que não. Está decidido e ponto.

JANETE – Não pode decidir nada sozinha. Você é menor de idade.

SARINHA – Tia Dulce se responsabiliza por mim.

TITA – (ENTRANDO) Que conversa é essa?

JANETE – Não se mete, Tita.

SARINHA – Pode ouvir, tia Tita.

JANETE – Para, Sarinha!

SARINHA – Tia Dulce descobriu que a mãe anda com o Zuca Pedreiro.

JANETE – (AVANÇA PARA SARINHA COM ÓDIO) Cala essa boca!

SARINHA – Vai me bater?

JANETE –  (CONTÉM-SE) Se não parar...

TITA – Para com isso, gente. Que coisa feia!

JANETE – Sai daqui, Tita.

SARINHA – Fica, tia Tita.

TITA – Olha o Osmar.

OSMAR – (AGITA-SE NA CADEIRA)

JANETE – Veja o que você fez.

SARINHA – A culpa é da senhora.

TITA – (TENTANDO ACALMAR OSMAR) Fica calmo, Osmar.

JANETE – Vai buscar um copo d’água com açúcar, Tita. (TITA SAI. JANETE TENTA ACALMAR OSMAR ABANANDO-O. TITA VOLTA COM UM COPO D’ÁGUA)

TITA – (PARA JANETE) Toma.

JANETE – (PEGA O COPO E LEVA À BOCA DE OSMAR) Bebe. É para acalmar.

OSMAR – (REJEITA)

JANETE – Não tem jeito. Ele não quer.

TITA – Tenta mais um pouco.

JANETE – Não adianta. Forçar é pior. (DEVOLVE O COPO PARA TITA QUE BEBE DE UM SÓ GOLE)

TITA – Também estou nervosa.

JANETE – Vai para o quarto, Sarinha.

SARINHA – Não.

JANETE – Vai me desobedecer?

SARINHA – Vou.

JANETE – Menina!?

TITA – Vai para o quarto, Sarinha. Faz o que a sua mãe está mandando.

SARINHA – Ela não manda mais em mim.

JANETE – Olha que eu perco a paciência, Sarinha!

SARINHA – Agora sou dona do meu nariz.

TITA – Deixa, Janete. É coisa de momento. Sarinha não sabe o que está dizendo.

SARINHA – Sei muito bem.

TITA – Fica calma, Sarinha. Parece outra falando assim.

SARINHA – Não adianta botar panos quentes, tia Tita. Já decidi o que vou fazer da minha vida.

TITA – O quê?

SARINHA – Vou para Belo Horizonte morar com a tia Dulce.

TITA – Não faça isso. Quer aborrecer a sua mãe?

JANETE – Deixa, Tita.

SARINHA – O que a senhora vai fazer?

JANETE – Ainda não sei. Se for preciso, vou ao juizado de menores e peço ajuda.

SARINHA – Não vai adiantar de nada.

TITA – Para, Sarinha! Esta conversa não vai levar a nada.

JANETE – Já mandei você ir para o quarto.

SARINHA – Já disse que não vou.

JANETE – Se o Mazinho estivesse aqui, queria ver.

SARINHA – O que?

JANETE – Ele dava um jeito em você.

SARINHA – Duvido. Ele também pensa como eu.

JANETE – Como assim?

SARINHA – Como acha que ele vai reagir quando souber dessa vergonha toda?

JANETE – (SEM CONVICÇÃO) Ele vai ficar do meu lado.

SARINHA – (PAUSA) Aqui é que eu não fico mais.

JANETE – Não diz besteira.

SARINHA – Vou embora ainda hoje.

JANETE – Só se eu estiver morta!

SARINHA – Vai me impedir?

JANETE – Vou.

SARINHA – (DESAFIADORA) Se me obrigar a ficar aqui, me entrego para o Tavinho.

JANETE – (CHEIA DE ÓDIO, AVANÇA PARA SARINHA E LHE DÁ UM TAPA NO ROSTO) Sua vaca! (SARINHA É AMPARADA POR TITA. OSMAR TEM NOVO ATAQUE. JANETE ARMA A MÃO PARA DAR OUTRO TAPA EM SARINHA, MAS RECUA AO PERCEBER O ESTADO DE OSMAR. LUZ APAGA.)


CENA VII

DIA SEGUINTE. EM CENA JANETE, TITA, CLARINDA E OSMAR. JANETE ESTÁ ABATIDA. ELA ARRUMA UMA MALA PEQUENA E ANTIGA QUE ESTÁ SOBRE A MESA.

JANETE – É tudo!

CLARINDA – O que?

JANETE – As coisas do Osmar.

CLARINDA – Onde está o resto das roupas dele?

JANETE – Acabaram com o tempo.

TITA – Também, desde que ele sofreu o acidente  nunca mais comprou uma peça de roupa.

JANETE – Ele vive de pijama o dia todo.

TITA – Ele tinha cada roupa bonita.

JANETE – O guarda-roupa da gente ficava lotado. Mais dele do que minha. Era muito vaidoso. Depois do acidente dei algumas, outras desmanchei e fiz roupinhas para as crianças para aproveitar. Não tinha dinheiro para comprar roupas novas. O jeito era desmanchar alguma calça, camisa, ou paletó do Osmar.

TITA – Me lembro de um vestido que você fez para a Sarinha aproveitando um paletó listrado que ele tinha.

JANETE – Era um paletó horroroso.

TITA – Sarinha não tirava aquele vestido por nada.

JANETE – É mesmo.

TITA – Todo dia queria vestir. Não adiantava falar, ela queria e ponto.

JANETE – Ela sempre foi geniosa.

TITA – E brava. Se a gente insistisse em colocar outro, ela brigava feio.

JANETE – Quanto tempo!

TITA – Mazinho era mais calmo.

JANETE – As crianças cresceram.

CLARINDA – (PAUSA) A que horas a Dulce ficou de vir?

JANETE – Não marcou.

CLARINDA – Devia ter marcado. Pelo menos assim a gente, quero dizer, vocês não precisavam ficar esperando o dia todo. (PAUSA) E a Sarinha?

JANETE – Está no quarto.

CLARINDA – Ela vai?

JANETE – Disse que vai.

TITA – Está arrumando as coisas.

CLARINDA – Não vai fazer nada, Janete?

JANETE – O que posso fazer? Até me ameaçou.

CLARINDA – Faz valer sua autoridade de mãe.

JANETE – Acho que perdi minha filha de vez.

TITA – Não fica assim, Janete. Com o tempo ela muda de ideia.

CLARINDA – Se fosse minha filha, eu...

JANETE – Sarinha é geniosa como eu. Difícil mudar de opinião. Minha esperança é o Mazinho.

TITA – Pelo menos ele está longe de tudo isso.

CLARINDA –  (CURIOSA) Ele está sabendo que o pai e a irmã vão embora?

JANETE – Não.

CLARINDA – (FINGIDA) Ainda bem, não é? (VAI ATÉ A JANELA) A Dulce está demorando. (PARA TITA) E a procissão?

TITA – Padre Bento está organizando.

CLARINDA – Vai sair da igreja Matriz?

TITA – Não.

CLARINDA – De onde, então?

TITA – São Benedito. Começa lá e termina na capela de São Dimas.

CLARINDA – Que caminhada! (PAUSA) Já resolveu qual a imagem que vai sair?

TITA – São Sebastião. Não temos a imagem do padroeiro. (OUVEM-SE BARULHO DE CARRO ESTACIONANDO. CLARINDA CORRE PARA A JANELA)

CLARINDA –  (EUFÓRICA) É a Dulce.

JANETE – (OLHA COM TRISTEZA PARA OSMAR) Está chegando a hora.  (BATEM NA PORTA. EXPECTATIVA. CLARINDA SE ADIANTA E VAI ATENDER)

CLARINDA – (COM INTIMIDADE) Oi, Dulce!

DULCE – (ENTRANDO) Oi.

CLARINDA – Não está se lembrando de mim?

DULCE – Para lhe ser franca, não.

CLARINDA – Sou a Clarinda, filha da viúva Serafina que  morava no casarão  da Rua Quinze.

DULCE – Realmente não me lembro.

CLARINDA – Puxa pela memória. Nós fomos colegas no Colégio São José, não lembra?

DULCE – Desculpe. É que faz tanto tempo.  Engordou muito, não?

CLARINDA – (SEM GRAÇA) É. Um pouco.

DULCE – Como vai? Tudo bem? E a dona Serafina?

CLARINDA – Morreu faz anos. Era muito doente e depois da morte do papai, piorou. E você? Está bonitona. Nem parece aquela Dulce que vivia aqui. Quem  diria, hein? Aquela menina pobre que entregava as roupas que a mãe lavava para fora está muito mudada.

DULCE – (SEM GRAÇA) Obrigada. (PARA JANETE) Tudo pronto?

JANETE – (ENTREGA A MALA)  Aqui estão as coisas dele.

DULCE – (PEGANDO A MALA) E a Sarinha?

JANETE – Não satisfeita em levar o Osmar, está me tirando a filha também.

DULCE – A decisão foi dela. Não influenciei em nada.

JANETE – Podia ao menos não incentivar.

DULCE – Não tenho culpa se ela, agora, tem vergonha de você.

SARINHA – (ENTRA COM DUAS MALAS) Oi, tia.

DULCE – Está pronta?

SARINHA – Estou.

DULCE – Pode ir para o carro, se quiser.

TITA – (PARA SARINHA) Vai sair assim, Sarinha, tratando sua mãe como se fosse uma estranha?

JANETE – Deixa isso para lá, Tita. O tempo vai dizer quem é o monstro aqui.

DULCE – (PARA SARINHA) É melhor  você ir para o carro.

SARINHA – (PARA DIANTE DE JANETE E A ENCARA COM DESPREZO) Tchau!

JANETE – (ABAIXA A CABEÇA)

SARINHA – (SAI LEVANDO AS MALAS)

TITA – (SAINDO ATRÁS DE SARINHA) Sua mal educada. E eu?  Sou sua tia, lembra?

DULCE – Seria bom se já fossemos ajeitando o Osmar para sair.

JANETE – Como quiser.

CLARINDA – (EUFÓRICA) Eu ajudo.

JANETE – (PARA DULCE) Só tenho um pedido...

DULCE – Faça.

JANETE – Quero ficar a sós um instante com o meu marido.

DULCE – Era só o que faltava! Folhetim barato a essa altura. Pelo menos, vê se não demora. Quero pegar a estrada antes do anoitecer. Vamos, Clarinda.

CLARINDA – Vamos. (SAEM)

JANETE – (CAMINHA PARA PERTO DE OSMAR E PÕE-SE DIANTE DELE) Estão levando você de mim, arrancando como se me tirassem o coração. Não é justo o que estão fazendo. Se que errei, fui fraca. Não resisti aos apelos do meu corpo, mas uma coisa ninguém pode tirar de mim; o direito de continuar te amando como amei desde o início. Se me entreguei a outro foi apenas para buscar satisfazer um desejo, para apagar um fogo que me consumia por dentro. Precisava de  equilíbrio para continuar vivendo, mas carinho, amor, isso só encontrei do  seu lado. Você foi e sempre será o único homem que vou amar em toda a minha vida. Se às vezes fui grossa, rude, sem paciência foi porque também não sou de ferro. Tudo que aconteceu com você me afetou muito. É duro aceitar que aquele homem forte, bonito, viril com quem casei ficou assim. Parece pesadelo. Nesses quinze anos estivemos vivendo um pesadelo doloroso em que o despertar é mais doloroso ainda. Agora tomo consciência do que nos aconteceu, agora vejo o que vida fez de nós. (PAUSA) Tudo que nos resta é esse adeus e a sensação de que é o último momento, o derradeiro encontro. (AJOELHA NOS PÉS DE OSMAR, QUE ESTÁ VISIVELMENTE EMOCIONADO) Me deixa ao menos ter certeza que nem tudo foi em vão. (ERGUE-SE E BEIJA OSMAR NA BOCA) Eu te amo!

OSMAR – (COM DIFICULDADE TENTA APONTAR PARA O VESTIDO QUE ESTÁ NO MANEQUIM)

JANETE – O vestido... Sim o vestido. (VAI ATÉ O MANEQUIM, RETIRA O VESTIDO E CAMINHA PARA OSMAR) Quer que eu vista?

OSMAR – (FAZ SINAL AFIRMATIVO)

JANETE – (COLOCA  O VESTIDO SOBRE O CORPO) Estou bonita? (APROXIMA-SE DE OSMAR, PEGA SUAS MÃOS E LEVA ATÉ O SEU ROSTO. FICAM ASSIM POR ALGUM TEMPO. ENTRA MÚSICA: BESAME MUCHO. ALUCINADA) Por que não me tira para dançar?

DULCE – (ENTRA) Acabou o tempo. (EMPURRA A CADEIRA, AFASTANDO OSMAR DE JANETE. OS DOIS SE OLHAM FIXAMENTE. OSMAR CHORA. PARECE QUERER FICAR OU DIZER ALGUMA COISA. JANETE FICA PARADA VENDO OSMAR SE AFASTAR ATÉ SAIR. CHORA CONVULSIVAMENTE.)

JANETE – (GRITA) Osmar!!! (CAI SOBRE AS PERNAS. PAUSA. OUVEM-SE VOZES. BARULHO DE CARRO SE ARRANCANDO. PAUSA. TITA ENTRA)

TITA – Já se foram.

JANETE – Ficamos sozinhas.

TITA – Será que ele volta curado?

JANETE – Será que ele volta? (TITA SE APROXIMA DE JANETE, QUE AINDA ESTÁ NO CHÃO COM O VESTIDO E A ABRAÇA CARINHOSAMENTE. LUZ APAGA.)


CENA VIII

UM MÊS DEPOIS. JANETE ESTÁ SENTADA. A SALA ESTÁ TOTALMENTE ORGANIZADA. NÃO HÁ NENHUM PANO OU COSTURA NA MÁQUINA. O CABIDEIRO ESTÁ VAZIO. O VESTIDO DE BAILE CONTINUA NO MANEQUIM. TITA ENTRA VINDO DA RUA.

JANETE – E então?

TITA – Era o dinheiro. Ele mandou de volta.

JANETE – Mazinho não podia fazer isso comigo.

TITA – Vai ver ele não está precisando ou arranjou algum trabalho por lá.

JANETE – Já tentei me enganar de todas as maneiras. Não tem jeito. Está acontecendo alguma coisa. Ele nunca ficou sem dar notícias ou vir aqui por tanto tempo. Vou ter que ir à Uberaba. Preciso tirar esta história a limpo.

TITA – É melhor. (PAUSA) E as encomendas, nada?

JANETE – Nada. Nunca fiquei um dia sem trabalho. Agora...

TITA – Vi dona Santinha entrando na casa da Helena. Levava um embrulho que parecia ser pano ou aviamento.

JANETE – Não é de se estranhar.

TITA – Por quê?

JANETE – Todas deixaram de me mandar suas costuras. Ela demorou muito a tomar coragem.

TITA – Helena está dispensando encomenda. Tem trabalho para uns três meses seguidos. Até contratou ajudante.

JANETE – (LEVANTA BRUSCAMENTE E PEGA UMA BOLSA QUE ESTAVA SOBRE A MESA) Já sei o que vou fazer.

TITA – Aonde você vai?

JANETE – Uberaba.  (LUZ APAGA)


CENA IX

TITA ESTÁ SENTADA NUMA POLTRONA COM UMA MALA DO LADO. JANETE ENTRA VINDO DA RUA E COLOCA A BOLSA EM CIMA DA MESA.

TITA – (SEM SE LEVANTAR) Como foi lá? Falou com ele?

JANETE – Não queria me receber. Foi um custo.

TITA – E aí?

JANETE – Disse que não quer mais o meu dinheiro.

TITA – E como ele vai fazer? Está trabalhando?

JANETE – Não. A tia está mandando dinheiro para ele. (PAUSA) Chegou a me humilhar.

TITA – Como?

JANETE – Disse que tem vergonha de mim, que não quer mais me ver nem pintada. Falou que se eu insistir em enviar o dinheiro, ele manda de volta como fez das outras vezes. Não é mais o mesmo. Está agressivo. A Dulce colocou o Mazinho contra mim, também. Agora é tia Dulce pra cá, tia Dulce pra lá. Precisa ver. (COM ÓDIO) Aquela vaca estéril roubou os meus filhos.

TITA – O que você vai fazer?

JANETE – Nada.

TITA – (PAUSA) Estava te esperando.

JANETE – Pra quê?

TITA – Vou embora.

JANETE – Pra onde?

TITA – A irmã Catarina arrumou uma vaga para mim no convento de Itabira. Vou para lá. Como dizia a Sarinha, acho que o meu destino é ser freira.

JANETE – (AGRESSIVA) Já devia ter ido há muito tempo. Não aguento mais você com seus ataques.

TITA – (LEVANTANDO) É isso que eu vou fazer. Adeus, Janete! (VAI SAINDO)

JANETE – (BRUSCAMENTE TENTA IMPEDIR QUE TITA SAIA) Não me deixe, por favor! Eu preciso de você. É tudo o que me restou. Você e ele. (APONTA PARA O VESTIDO)

TITA – Ele quem?

JANETE – O vestido.

TITA – O vestido!?

JANETE – Sim. Veja como ele resiste ao tempo. Fica ali como que para me lembrar dos momentos felizes que não voltam mais. (PARA TITA) Um dia eu fui muito feliz. (PAUSA) Você tem coragem de ir embora me deixando aqui sozinha?

TITA – Você vive dizendo que sou um peso na sua vida.

JANETE – E é! Só que um peso necessário. Já me acostumei com seus ataques. E depois, mamãe deixou esta casa para nós duas.

TITA – Já combinei tudo com a Irmã Catarina.

JANETE – (FRIA) Traidora! (AMÁVEL) Fica comigo. Deixa eu cuidar de você, deixa? (ABRAÇA TITA E FAZ CARINHO EM SEUS CABELOS) Seu cabelo é tão macio.

TITA – Saí puxando ao papai. Lembra-se do cabelo dele? Eram tão lisos e macios!

JANETE – Mamãe também tinha cabelos bonitos.  

TITA – Os cabelos do papai eram mais bonitos.

JANETE – Mentirosa! (COMEÇA A RIR DESCONTROLADAMENTE. TITA FAZ O MESMO. PARAM DE ESTALO) Você vai?

TITA – Acho que não.

JANETE – Então guarda essa mala. (TITA SAI COM A MALA PELA SAÍDA DOS QUARTOS. JANETE FICA PARADA OLHANDO PARA O VAZIO. LUZ APAGA)


CENA X

JANETE ESTÁ SENTADA NUMA POLTRONA. TITA ENTRA VINDO DA RUA.

TITA – O Julinho chegou.

JANETE – Trouxe notícias do Mazinho?

TITA – Trouxe.

JANETE – (AFLITA) Fala.

TITA – Foi para Belo Horizonte visitar a tia.

JANETE – Agora ela é a mãe dele.

TITA – Vai fazer inscrição para o vestibular da UFMG.

JANETE – Só para ficar perto dela.

TITA – Quando será que  isso vai acabar?

JANETE – Fico me lembrando do tempo em que a gente era uma família feliz. Mazinho e Sarinha eram pequenos, o Osmar ainda não tinha sofrido o acidente com o táxi... (PAUSA) De repente, tenho a impressão de que eles vão entrar por esta sala a dentro pedindo alguma coisa.

TITA – (IMITANDO CRIANÇA) “Quero papa, mamãe.” Mazinho falava bem assim.

JANETE – Sarinha demorou para falar, lembra?

TITA – Claro. Você fez tudo que foi simpatia que te ensinaram.

JANETE – Tinha cada uma engraçada.

TITA –  Como comer língua de periquito?

JANETE – Tudo bobagem. Quando tem que falar, fala. (PAUSA) Até que naquele domingo o Osmar saiu para fazer uma corrida. Era o dia do aniversário dele. Eu estava preparando o almoço, a casa estava cheia, quando ele me disse que tinha acertado a viagem. Ia levar um casal para pegar um ônibus em Araxá com destino a São Paulo. Briguei, mas como sempre, ele acabou me convencendo. A gente estava atravessando uma fase difícil e ele queria trocar o carro velho por um mais novo que não desse tanto problema. Não podia dispensar a chance de ganhar um extra. O casal ia pagar bem. Não era sempre que aparecia uma viagem daquelas, no mais era só a praça e dava muito pouco.  Lá pelas tantas o almoço ficou pronto e nada do Osmar. O dia passou e ele não chegou. (PAUSA) A gente tinha combinado de ir ao baile do Clube Recreativo naquela noite.

TITA – E aí você se arrumou toda, colocou o vestido que ele mais gostava e ficou esperando no portão.

JANETE – (CAMINHA ATÉ O VESTIDO E O ACARICIA) – Foi então que o Nézinho chegou a com a notícia. Na volta de Araxá, um caminhão na contramão... (BARULHO DE CARROS FREANDO BRUSCAMENTE. JANETE REAGE LEVANDO AS MÃOS À CABEÇA DESESPERADAMENTE) Não!!!

TITA – (INTERROMPENDO) Para quê ficar se lembrando dessas coisas?

JANETE – E eu posso esquecer?

TITA –  (PAUSA) Por que não desfaz desse vestido?

JANETE – (NERVOSA) Não!

TITA – (IMPLORANDO) Não vale a pena se torturar tanto, Janete.

JANETE –  (DESESPERADA) Queria apagar aquele dia da minha memória, mas não consigo.

TITA – Por que não queima?

JANETE – O que?

TITA – Por que não queima esse vestido?

JANETE –  (FORA DE SI) O vestido... Sim, meu vestido de baile. (ABRAÇA O VESTIDO E CANTAROLA O BOLERO BESAME MUCHO) Não! Sem ele eu não posso ir ao baile.

TITA – (COMO SE A CHAMASSE DE VOLTA À REALIDADE) Será que ele está bem?

JANETE – (REFAZENDO-SE) Dona Clarinda me disse que ele continua na clínica.

TITA – (PAUSA) Será que lá ele vê televisão?

JANETE – Não sei.

TITA – Ele gosta tanto de ver televisão.

JANETE – Ás vezes esqueço e tenho a impressão de que ele está ali sentado.

TITA – Eu também. (DONA CLARINDA APARECE NA JANELA)

CLARINDA – (DA JANELA) Gente do céu! Acabei de saber de uma coisa horrível.

JANETE – Que foi?

CLARINDA – Dona Florzinha Donato...

JANETE – O que tem ela?

CLARINDA – Morreu.

JANETE E TITA – Oh!

CLARINDA – Estão dizendo que não era vesícula coisa nenhuma. (FALA BAIXO) Era aquela doença ruim: câncer. Seu Donato está arrasado.

TITA – Coitado!

CLARINDA – Ainda não marcaram a hora do enterro. Estão esperando os parentes que moram fora. (PARA TITA) Você não vai ao velório?

TITA – Mais tarde.

JANETE – Vai, Tita. Não tem nada para fazer mesmo. Dona Florzinha sempre foi muito boa pessoa. O filho é que nunca prestou.

CLARINDA – Qual?

JANETE – O Tavinho, ora!

CLARINDA – Tem mais uma grávida dele.

TITA – Quem?

CLARINDA – Lúcia Marina.

TITA – Que absurdo! Tão nova e perdida.

JANETE – Que pecado! Fez quinze outro dia. Foi um dos vestidos mais bonitos que já fiz.

CLARINDA – Dizem que o Vilela vai exigir o casamento sob a alegação de que a filha é menor de idade.

JANETE – E adianta? O canalha tem costas quentes.

CLARINDA – Não deixa de ser verdade. Vamos, Tita.

JANETE – Veja do que eu livrei a Sarinha.

CLARINDA – Você sempre foi uma mãe vigilante.

TITA – Não vai, Janete?

JANETE – Não.

CLARINDA – Precisa sair, Janete. A vida continua. Vai perder o resto da vida trancada dentro de casa?

JANETE – Não tenho mais coragem de andar na rua. Tenho a impressão de que ficam me apontando. (IMITANDO AS PESSOAS) “Vejam! Lá vai a adúltera. A mulher que deixava o marido entrevado em casa passando fome e necessidades e ficava prevaricando por aí. ”

CLARINDA – (CÍNICA) Essa gente é mesmo muito cruel. (PAUSA) E o Zuca, Janete?

JANETE – (ASSUSTADA)  Que tem ele?

CLARINDA – Por onde anda?

TITA – (TENTANDO CORTAR) Dona Clarinda...

JANETE – Deixa, Tita. No fundo todo mundo quer saber mesmo. (PARA DONA CLARINDA) Pode dizer para todo mundo que eu nunca mais vi o Zuca, viu dona Clarinda? Aquilo foi uma tempestade que passou.

CLARINDA – (DESCULPANDO-SE) Não falei por mal, Janete. É que a gente é tão próxima que eu acho que posso tocar nesses assuntos. E depois, eu nunca fui contra esse seu envolvimento com ele.

JANETE – Tem certeza?

CLARINDA – Claro, uai! Afinal de contas você é mulher como qualquer outra. E nós mulheres nos entendemos, não é mesmo?

JANETE – (SEM CONVICÇÃO) É.

CLARINDA – Além do que você é muito moça, bonitona. Tem tudo para refazer a sua vida. Ainda mais agora que o Osmar não está mais aqui.

JANETE – (CHOCADA) O que a senhora quer dizer com isso?

CLARINDA – Nada, ora. Ou melhor, tudo. Se eu fosse você me casava de novo.

TITA – Que isso, dona Clarinda? O Osmar ainda está vivo.

JANETE – (OFENDIDA) Nunca mais diga uma besteira dessas, dona Clarinda.

CLARINDA – Desculpa. É a minha maneira de falar. (DISSIMULADA) É que não me conformo de ver você tão moça se consumindo nessa vida de sofrimento. Você merece ser feliz, Janete.

JANETE – Obrigada pela sua preocupação, dona Clarinda. Mas eu estou bem assim como estou. 

CLARINDA – Você não vem, Tita?

TITA – Não sei.

JANETE - Vai, Tita. Pega umas rosas no jardim. Abriram hoje. Estão lindas. Leva para ela.

TITA – (SAINDO) Está bem. (DONA CLARINDA DESAPARECE DA JANELA. TITA SAI. JANETE PERMANECE AO LADO DO VESTIDO.)

JANETE – Não pense que eu não sei que foi a senhora quem escreveu aquelas cartas, dona Clarinda? Não pense que eu não sei. (LUZ APAGA)


CENA XI

MESES DEPOIS. JANETE ESTÁ COSTURANDO. PERCEBE-SE QUE O NÚMERO DE ENCOMENDAS  VOLTOU A AUMENTAR. TITA ENTRA, ESTÁ EUFÓRICA.

TITA – O Mazinho passou no vestibular da UFMG!

JANETE – Que história é essa?

TITA – É verdade! O Julinho trouxe a notícia.

JANETE – (MAL CONTENDO DE FELICIDADE) Medicina!?

TITA – Medicina.

JANETE – (LEVANTA-SE E ADERE A EUFORIA DE TITA) Que bom! Deus ouviu as minhas preces. Meu filho merece. (DE REPENTE CAI EM SI E SENTA TRISTE)

TITA – Que foi, Janete?

JANETE – Esqueceu que ele agora é filho dela?

TITA – Estou feliz assim mesmo. Feliz por você, por ele, pelo Osmar. Seu filho vai ser doutor, Janete.

JANETE – Tudo que eu sempre sonhei foi ver o Mazinho formado, sendo tratado com respeito por todo mundo. (DELIRA) Olha o doutor Mazinho! Mazinho, não. Doutor Osmar. Bom médico. Diriam as pessoas quando ele passasse na rua. (VOLTA A SI) Ela deve estar se sentindo vitoriosa. (TITA SAI. JANETE VOLTA A COSTURAR. PAUSA. CLARINDA ENTRA, TRAZ UM TERÇO E UM MISSAL NAS MÃOS )

CLARINDA – Cadê a Tita?

JANETE – Está lá dentro se arrumando.

CLARINDA – Ela vai à missa?

JANETE – Acho que não.

CLARINDA – Que está acontecendo com ela?

JANETE – Não reparou? Depois que começou a namorar o João Padeiro mudou muito. Missa, agora, só aos domingos e com ele à tira colo.

CLARINDA – Que mudança!

JANETE – Está esperando por ele. Vão à estreia do circo que chegou à cidade. Está que é pura animação.

CLARINDA – Vou pedir para o Vivi me levar. (CONFIDENCIAL) Depois daquele trabalhinho que eu fiz, ele está uma cera comigo. Precisa ver.

JANETE – Que bom! (RISOS) Esse namorado fez muito bem pra Tita. Até os ataques acabaram.

CLARINDA – Deus conserva.

JANETE – Amém! (PAUSA) E o Jadir? Como tem passado?

CLARINDA – Bem melhor, graças à Deus!

JANETE – Quem diria!? Um menino tão calado metido com drogas.

CLARINDA – São as más companhias. Agora trago ele debaixo dos meus olhos, não o perco de vista. Onde já se viu? Um filho meu metido com essas coisas.

JANETE – (COM CINISMO) E nem precisou sair da cidade para isso, né?

CLARINDA – Para você ver. Isso é o fim do mundo. Mas comigo não tem conversa. Agora mesmo está lá fora. Vai à missa comigo. Quero ver se não entra nos eixos. Depois, vou cuidar da Marcinha.

JANETE – O que tem ela?

CLARINDA – Nem te conto. Aquela menina só me traz desgosto.

JANETE – Como assim?

CLARINDA – Só quer saber de coisas de homem. Até parece que nasceu de sexo trocado. (BENZENDO-SE) Deus me perdoe!  (PAUSA) Acha que eu não sei?

JANETE – O que?

CLARINDA – O que dizem dela por aí. Sei que a chamam de macho-fêmea. Ouvir isso, para uma mãe, é muito doloroso. Queria ter tido filhos como os seus. Mazinho e Sarinha é que dão gosto. Você teve sorte.  Apesar de tudo, é claro. Veja o meu caso: um marido que só liga para mim na base do “trabalhinho de amarração”, um filho drogado e uma filha macho-fêmea. Pode?

JANETE – Não se preocupe. É a idade.

CLARINDA – Pode ser.  E o Vivi?

JANETE – Que tem?

CLARINDA – Acha que também é da idade?

JANETE – (PENSATIVA) Também pode ser da idade.

CLARINDA – (SEM NADA ENTENDER) É. Até logo! (DONA CLARINDA SAI. JANETE VOLTA A COSTURAR. LUZ APAGA)


CENA XII

OUTRO DIA. JANETE ESTÁ NA PORTA CONVERSANDO COM ALGUÉM.

JANETE – Tudo bem. Pode vir pegar no dia combinado. Até logo! (ENTRA COM ALGUMAS FAZENDAS NA MÃO. TITA ENTRA VINDO DOS FUNDOS)

TITA – Mais encomendas?

JANETE – (ALEGRE) É.

TITA – Não acha que está pegando costura demais? Agora você não precisa trabalhar tanto.

JANETE – Tenho que aproveitar. As freguesas antigas estão voltando.

TITA – Quem era?

JANETE – Salete. Disse que não gostou das costuras que a Helena fez.

TITA – Você é muito boba.

JANETE – Se fosse comigo, não aceitava. Depois de tudo que fizeram com você.

JANETE – É o costume. Não sei fazer outra coisa mesmo.

TITA – E o meu vestido?

JANETE – Está quase pronto. Só faltam uns arremates. Está lá no quarto, em cima da cama. (TITA SAI NA DIREÇÃO DOS QUARTOS. JANETE SAI ATRÁS. LUZ APAGA)


CENA XIII

NOVO DIA. JANETE ESTÁ DE PÉ NO CENTRO DA SALA. ESTÁ VESTINDO O VESTIDO QUE ESTAVA NO MANEQUIM.

JANETE – Vem, Tita.

TITA – (ENTRA. ESTÁ VESTIDA DE NOIVA) Fiquei bem?

JANETE – (EMOCIONADA) Ficou.

TITA – Que bobagem é essa?

JANETE – (AINDA EMOCIONADA) É que nunca  imaginei você vestida assim saindo para casar.

TITA – Quer saber de uma coisa?

JANETE – O que?

TITA – (RINDO) Nem eu!

CLARINDA – (ENTRANDO) Vamos, Tita. Vivi já está no carro. Ele detesta esperar.

TITA – Estou tão nervosa!

JANETE – Isso é normal. (SAEM. LUZ APAGA)


CENA XIV

MESMO DIA DA CENA ANTERIOR. JANETE ENTRA VINDO DA RUA. AINDA ESTÁ VESTIDA COM O VESTIDO DO MANEQUIM. DURANTE ALGUM TEMPO REPARA NA CASA, COMO SE SENTISSE QUE FICOU SOZINHA. PAUSA. DONA CLARINDA ENTRA. ELA ESTÁ DEMONSTRANDO CERTA ANSIEDADE E NERVOSISMO.

CLARINDA – Tudo bem, Janete?

JANETE – (ASSUSTA AO VER DONA CLARINDA) Ah! É a senhora? Estou aqui tentando me convencer de que viver sozinha não será tão ruim assim. (PAUSA) Vou sentir falta da Tita.

CLARINDA – Às vezes acontecem umas coisas chatas, não é?

JANETE – Por que está dizendo isso,  dona Clarinda?

CLARINDA – Dizem que depois de um acontecimento alegre vem um triste.

JANETE – Está estranha,  dona Clarinda.

CLARINDA – Impressão sua. (TOMA CORAGEM) Quer dizer... Não trago boas notícias.

JANETE – Que foi?

CLARINDA – É o Osmar...

JANETE – Que aconteceu com ele?

CLARINDA – Mazinho e Sarinha estão no telefone...

JANETE – Fala mulher.

CLARINDA – Ele faleceu!

JANETE – O quê?                                                                                                           

CLARINDA – Mazinho e Sarinha estão dizendo isso. Eles estão muito nervosos. Não estão dizendo coisa com coisa. É melhor você ir falar com eles.

JANETE – Morreu de que?

CLARINDA – O que?

JANETE – A causa da morte, qual foi?

CLARINDA – Acho que foi de tristeza, saudade. Sei lá. (SINCERA) Nunca te disse isso, mas acho que não dá para continuar escondendo.

JANETE – O que foi?

CLARINDA – (SINCERA) Essa mudança foi um desastre para o pobre do Osmar.

JANETE – Do que a senhora está falando?

CLARINDA – Ele nunca se adaptou lá, Janete. Foi uma judiação o que Dulce fez. Ele aceitou não aceitou a mudança. E de uns tempos para cá estava se negando a se alimentar ou receber qualquer tipo de tratamento.

JANETE – (RI COMO SE ENTENDESSE O GESTO DE OSMAR) Meu Osmar!

CLARINDA – O que eu digo para os meninos? Eles querem saber se você quer que tragam o corpo do Osmar para ser sepultado aqui em Ibiá. (PAUSA) Estão esperando sua resposta.

JANETE – Não tem resposta.

CLARINDA – Como?

JANETE – Diga que façam o que acharem melhor. Na verdade, Osmar já está morto há muito tempo.

CLARINDA – Como?

JANETE –  Ele morreu no dia em que o levaram daqui.

CLARINDA – Posso fazer alguma coisa por você?

JANETE – Não. Estou bem! (CLARINDA SAI. JANETE CAMINHA LENTAMENTE ATÉ O APARELHO DE TELEVISÃO E O LIGA. EM SEGUIDA, SENTA-SE DIANTE DELE E FICA PARALISADA. PAUSA. ENTRA OSMAR. ESTÁ VESTIDO DE TERNO E GRAVATA, ELEGANTEMENTE. PEGA UM DISCO E COLOCA NO APARELHO DE SOM. A MÚSICA INVADE O AMBIANTE. É O BOLERO BESAME MUCHO. CAMINHA ATÉ O APARELHO DE TELEVISÃO E O DESLIGA. APROXIMA-SE DE JANETE E A  DESPERTA DE SUA PARALISIA. TIRA-A PARA DANÇAR. JANETE ACEITA FELIZ. OS DOIS DANÇAM. DE REPENTE, OSMAR COMEÇA A GIRAR COM JANETE)

JANETE – (HISTÉRICA) Não, Osmar! Estou ficando tonta. Estou ficando tonta, tonta, tonta... (AOS POUCOS A VOZ DE JANETE VAI SUMINDO E SÓ SE OUVE A MÚSICA. DEPOIS DE ALGUM TEMPO, A MÚSICA PARA BRUSCAMENTE. LUZ APAGA)


FIM



Nenhum comentário:

Postar um comentário