Após descobrir que a farsa do 'filho de fazendeiro do Mato Grosso' nunca enganou a ninguém, Dimas tem um encontro definitivo com seu destino.
Capítulo 5
Garrincha não reagiu bem quando viu o amigo de infância entrar da sede do QG do movimento, com Elisa a tiracolo. “Qual é, camarada? Tá pensando que isso aqui é ponto turístico?”, foi a imediata reação. Elisa entendeu a indireta e tratou de tentar causar boa impressão. Falou, entre outras coisas, dos pais, em viagem de férias pela Europa. Dimas confirmou tudo, sem pestanejar; revelar que o pai da garota não passava de um reles porteiro de prédio estava totalmente fora de cogitação.
-
Essa garota pode até ser riquinha, ter nascido em berço de ouro, o cacete, mas
é piranha perigosa, tem sangue nos olhos. – insistiu Garrincha – Papo reto,
mano. É vagabunda. Pode crer.
Abadia,
por outro lado, tão logo bateu os olhos em Elisa, ficou encantada. A faxineira
não soube o que fazer para agradar, afinal era a primeira vez que o filho
apresentava uma namorada.
-
A casa é de pobre, mas é limpinha. – ela disse, cheia de lisonjas – Sempre faço
questão de manter tudo no capricho. Dimas fala que eu sou muito enjoada. Mas pobreza
não é motivo pra desmazelo, não é? A gente pode ser pobre e...
Elisa
fez um verdadeiro contorcionismo para disfarçar o espanto diante da esquelética
figura; difícil acreditar que se tratasse da mãe de Dimas e, acima de tudo, que
vivesse com ela naquele casebre.
-
Vim conhecer a ricaça da Vieira Souto que o seu menino fisgou. – disse dona
Santana entrando, acompanhada dos três filhos – A moça é essa? Pensei que fosse
mais de cheia de corpo, mais alta... E então? Mora na zona sul, né? Apartamento
ou casa? O teu pai faz o quê mesmo pra viver? É político, empresário, bicheiro?
Porque hoje em dia tendo dinheiro não importa de onde vem, não é? Tempos
modernos. No tempo antigo...
-
O pai da Elisa é empresário, dona Santana. – cortou Dimas.
-
Empresário não diz muita coisa, menino. Empresário de quê? Qual o ramo de
negócio dele? Ou é segredo? Porque, olha...
-
Chega, dona Santana! – interveio Dimas, mais uma vez, interrompendo a falante
vizinha – A gente tá de saída. Outro dia a senhora continua o interrogatório.
-
Oxente! Que pressa é essa? Por que tem de ficar pra outro dia? Coisa de gente
metida a besta, não é? Tô por dentro dessas modas. Vi isso na novela.
Enquanto
dona Santana tagarelava, Genivaldo, o filho mais novo, não tirava os olhos de
Elisa: tudo o que mais desejava era arrumar uma namorada, nem precisava ser tão
bonita. O problema era a mãe que não dava folga; achava que ele e os irmãos não
tinham necessidades das coisas da vida. Se soubesse o quanto padeciam... “Os manos
sofrem sem reclamar, mas eu não. Se pego uma loirinha dessas, ia estraçalhar.”,
ele pensou.
-
O que foi menino? Se abestou, foi? – disse dona Santana, dando um tempo no
falatório – Tira o olho da moça. Que coisa mais feia! Não te dei educação, não?
Constrangimento
do garoto (e dos irmãos) à parte, Elisa gostou de saber que era alvo de interesse.
Se a ocasião fosse outra, ela daria um jeito de se divertir não somente com o
mais novo, mas também com os dois mais velhos; os três pareciam animais no cio.
“Dá para perceber que vivem na maior secura. Pena que não passem de pobretões”,
ela pensou.
-
Vamos, Elisa. – apressou Dimas ao notar as trocas de olhares.
-
Claro, amor. – disse Elisa, dissimulando – Papai nem pode me imaginar num
lugar...
-
O pai da moça pode ficar descansado. – disse Abadia – Aqui só tem trabalhador,
gente de bem. Não é...
-
A senhora tá sendo deselegante com a visita, mãe.
Elisa
tratou de contornar a situação (os pais até poderiam ser preconceituosos, mas
ela, pelo contrário, adorava pobre), porém, a essa altura, dona Santana também
entrara na conversa e, como a dona da casa, se mostrou bastante ofendida. Dimas,
prevendo o pior, arrastou a namorada para fora do barraco.
-
Vão embora assim, sem nem tomar um cafezinho? – reclamou Abadia – A moça
desculpa o mau jeito. É que me pegaram desprevenida. Espera, pelo menos, eu
passar o café.
Dimas
e Elisa, no entanto, já haviam ganhado a rua.
-
Se quiser passar o café pra mim e pros meninos, não se acanhe, Badia. A gente
aceita. Não somos de fazer desfeita. Até porque um cafezinho, numa hora dessas,
cai muito bem. Se for acompanhado de uma broa, melhor ainda. – disse dona
Santana.
Sem
saída, Abadia preparou o café, com broa, e serviu. Enquanto isso, dona Santana matraqueava,
incessantemente:
-
Esse barraco tá quase caindo na tua cabeça, Badia. Desculpa a franqueza, mas dá
até medo ficar aqui dentro, mulher. Teu filho tem obrigação de dar um jeito
nisso. Ainda mais agora que tá colado na ricaça. Quem sabe ele te dá um barraco
novo ou mesmo um apartamento lá no asfalto, hein? Dinheiro pra isso, pelo que
vejo, não vai faltar.
Tão
logo se livrou da vizinha, e os filhos, Abadia ajoelhou-se diante da imagem de
Nossa Senhora Aparecida, no altarzinho improvisado no canto da sala, persignou-se
e recitou a Ave Maria. A oração, aos poucos, transformou-se em desabafo:
-
Não é por mal, minha santinha, mas tem alguma coisa na moça que não me agradou.
Parece que vai arrastar meu menino pro abismo. Livra e guarda ele de todo o mal,
senhora. É uma mãe que te implora.
Apesar
da desconfiança de Garrincha, nasceu uma inusitada parceria, que não tardou a
dar frutos; em ação pelas praias, ruas, bares, boates e festas da zona sul,
Elisa e Dimas conquistaram grande clientela. Entretanto, na mesma medida, vieram
os desafetos.
-
Não dá mais pra gente sair por aí de peito aberto. – reclamou Elisa, após mais
uma confusão com a concorrência – Melhor a gente se precaver. Amanhã mesmo vou
falar com o chefe. Quero duas pistolas pra gente se garantir, uma pra mim e
outra pra tu.
-
Não é o momento de procurar encrenca, Elisa. – ponderou Dimas – A gente tá
ganhando uma grana legal. Já alugou apê. Não precisa pressa.
-
Sem essa de pensar pequeno, cara. – rebateu Elisa – Não vou me contentar com
mixaria.
Enquanto
o casal não se entendia quanto à necessidade ou não de se armar, no morro, não
bastasse a falta de notícias do filho, Abadia enfrentava as constantes
insinuações da vizinha.
-
Esse menino é um ingrato, Badia. Te deixa aí jogada às traças, enquanto se
esbalda nos luxos na casa da ricaça. Mas deixa estar. O que é dele tá a
caminho.
Targino,
igualmente sem notícias da filha, via seu sumiço como um sinal de que tivesse
se acertado com o bem-intencionado rapaz do Mato Grosso.
-
Papo reto, parceiro. – disse Elisa – Se tu não descolar as armas, dou meu jeito.
Tenho um canal aí. Na hora que eu quiser...
-
Já falei que a gente tá indo depressa demais, pô. Pra quê andar armado? Pra
chamar atenção da polícia, é isso? Outro dia mesmo... Já pensou se a gente tivesse
armado? Não dá pra perder tudo o que já conquistou até agora, cara. A gente
ainda não tá no Leblon, mas tá em Copacabana. Do morro até aqui o passo foi
grande. Vai dizer que não?
-
Só se foi pra tu. Não esquece que sou cria da Vieira Souto, bebê.
-
Deixa de marra, garota. Cresceu escondida na ala de empregados, caladinha, pra
não incomodar os patrões do pai.
-
Mas foi na Vieira Souto, porra! E é pra lá que eu vou voltar. E pela porta da
frente, elevador privativo e a porra toda. Quero o topo da pirâmide, tá ligado?
-
Por mim, a gente casava, levava uma vida modesta... Quem sabe um filho, hein?
-
Pra virar um casalzinho classe média, com dinheirinho contado, filho chorando
na cabeça a noite inteira...? Relação careta, tô fora. Contigo, malandro, quero
sexo, somente sexo. Casamento? Só se for com um milionário, jogador de futebol,
artista famoso...
Diferentemente
da milionária tonta e alienada que Dimas buscava, Elisa era ambiciosa,
destemida, enfim, exatamente o oposto. A constatação, embora assustasse, também
excitava. Dias depois, sem esperar que se recuperasse dos apuros que passara
para transportar as armas do morro até o apartamento, ele viu Elisa avançar
sobre a mochila, que trazia presa às suas costas, e se apossar das duas
pistolas.
-
Agora não vai ter pra ninguém. – ela disse, empunhando as duas armas, como se
fosse uma pistoleira – Só vai dar nóis.
Não
demorou muito, arma em punho, a dupla passou a ser conhecida como o ‘casal do
pó’. O sucesso levou Elisa a desejar alçar voos mais altos.
-
Chega de trabalhar de empregadinho, cara. A gente pode pegar a droga
diretamente da fonte. Trabalhar por conta própria.
-
Com que grana? A gente torra tudo o que ganha, esqueceu?
-
Tenho a ideia perfeita pra fazer capital, vamos investir na ideia do assalto.
Mas nada de pensar pequeno. Tem de ser um assalto grande, coisa de cinema, saca?
A
rotina do casal era de trabalhador noturno: passavam a noite rodando de um lado
para o outro atrás dos clientes e dormiam durante o dia. Elisa, no entanto, logo
se cansou.
-
Essa vida de peão não é pra mim. – ela disse.
Por
isso, decidiu passar a atender a clientela em casa. Dimas se posicionou contra,
porém não houve jeito. No entanto, como era de se esperar, o entra e sai de
‘gente suspeita’ no apartamento despertou a atenção dos vizinhos do andar.
-
Este prédio é familiar. – gritou um vizinho, num dia de grande movimento – Se o
síndico não tomar providências, eu vou buscar os meus meios.
Elisa,
também como era de se esperar, não se deixou intimidar. A atitude fez a
confusão aumentar. O vizinho, um militar aposentado, protocolou uma reclamação
no livro da portaria. A pressão pelo fim da ‘boca de fumo’ aos poucos ganhou a
adesão de todos os condôminos do prédio.
-
É melhor a gente dar o fora daqui. – ponderou Dimas.
-
Deixa de ser cagão, cara. Tá com medo de um aposentado que não tem o que fazer
na vida? Vamos continuar atendendo a clientela sim. Quero ver quem vai impedir.
Despeito
da oposição do síndico e dos moradores, liderados pelo militar aposentado, a
boca continuou funcionando a todo vapor. Certa noite, porém, quando o casal
entrava em casa percebeu que havia duas viaturas da polícia na porta do prédio.
Não foi difícil deduzir o motivo de estarem ali. Resultado: teve que passar a
noite num hotelzinho, na mesma Avenida Nossa Senhora de Copacabana, esperando
‘a poeira baixar’. A estadia no hotel, no entanto, se estendeu.
-
Oh, perdão! – disse o homem – Desculpa esse velho desastrado. Ai, meu Deus! A
menina se machucou?
A
menina que acabara de levar uma trombada e estava estatelada no piso da
recepção do hotel era ninguém menos que Elisa, que, ainda estendida no chão,
viu um senhor, bastante constrangido, oferecer-lhe ajuda para que se erguesse.
“Velho cego, não olha por onde anda?”, ela pensou pronta para soltar os
cachorros. Entretanto, ao encarar o homem, alto e forte, cerca de uns setenta
anos, que usava roupas chamativas, o que lhe dava um ar de bicheiro, ou coisa
do gênero, Elisa intuiu que talvez devesse explorar a situação.
-
Ai, ui, ai, ui... – ela gemeu, contorcendo-se.
O
homem entrou em pânico.
-
Cadê seus pais, garota? – ele gaguejou – Tá ferida? Quer que eu chame uma
ambulância? Precisa dar uma olhada pra ver se não quebrou nenhum ossinho? A
família tá hospedada no hotel? Qual é o quarto?
-
Entrei aqui por engano, senhor. – disse Elisa – Não sou daqui. Acho que me
perdi.
-
Não se meche, cuidado. Fala o seu endereço, meu bem, que vou mandar meu
motorista... Uma garota da sua idade não pode ficar perdida por aí. Fala o nome
de seus pais, eu quero falar com eles.
-
Meus pais estão viajando...
Mais
tarde, naquele mesmo dia, Elisa confidenciava a Dimas ter dado ‘a trombada de
sua vida’.
-
Não é o momento de pensar em outra coisa que não seja a mercadoria entocada no
apartamento, Elisa. Temos de resolver essa parada antes que o Garrincha...
-
Qual é, cara? Esquece isso. Não percebeu que a onda agora é outra? Esse coroa
apareceu na hora certa, tá ligado? Não posso perder a chance de dar um adianto
na minha vida.
Elisa
cuidou de convencer o homem da trombada de que, além de ser uma garota frágil e
indefesa, era obrigada a viver sozinha numa cobertura imensa, enquanto os pais
curtiam férias pelo mundo.
-
Por isso, pensei que, talvez, quem sabe, eu pudesse passar uns dias na sua
companhia. Só assim tenho certeza de que não vou me sentir tão só. Você, quer
dizer, o senhor é tão divertido, me distraio tanto com suas histórias...
-
Seus pais podem não gostar, muleca. – hesitou o homem.
-
Que nada! Eles vão te agradecer, pois sabem que estarei segura, protegida.
-
Eles não deixaram ninguém pra cuidar...
-
Deixaram, claro, os empregados. Mas não é a mesma coisa. Preciso conviver com
gente do meu nível. Alguém em que eu possa confiar, entende?
-
O que viu nesse velho, menina? – disse o homem, completamente enredado – Poderia
ser minha filha ou, sei lá, minha neta.
Através
de pesquisas, Elisa descobriu que o ‘homem da trombada’ era Basílio Trindade,
empresário do ramo da construção civil, conhecido por excentricidades, como
guardar dinheiro e joias dentro de casa, pois tinha pouca confiança em bancos e
afins.
-
É possível que ele guarde grana até mesmo debaixo do colchão. – ela disse,
dando asas a imaginação – Nunca se sabe. Falando o português claro, eu vou
depenar o babaca. Penso até na possibilidade de me engravidar. Aí o golpe vai ser
perfeito, não é não?
Dimas
alertou Elisa de que não se tratava de um jogador de futebol, cheio de
testosterona, mas um homem de idade.
-
Que papo de gravidez é esse?
-
É aí que tu entra. – ela disse, sem se deixar abalar – Ou não se garante?
-
Existe teste de DNA, sabia? Além do mais, o velho deve ser casado, ter um monte
de filhos, genros, noras, netos, irmãos, sobrinhos e até cunhados, todos de
olho na grana dele.
Bastante
precavida, Elisa se informou que o coroa era sozinho no mundo. Portanto, o
caminho estava livre. O próximo passo era entrar em sua casa, para pôr em ação o
antigo plano do assalto. O esquema era o seguinte: num dia previamente marcado,
na ausência de Basílio, Dimas entraria no apartamento por uma porta que seria,
estrategicamente, esquecida aberta. Então, faria ‘a limpa’ na casa. Antes de
sair, depois de praticar algum vandalismo no local, Elisa, que estaria lá no
papel de vítima, deveria ser violentada.
-
Estupro, porrada... Mas nada de simulação, precisa ser real, pra dar mais
veracidade. Sem exagerar, é claro. Só pra parecer convincente. Depois, tu me
amarra e amordaça. Aí, traz o produto do roubo aqui pro hotel e fica me esperando,
enquanto desenrolo o resto. Daí, pé na estrada, sem deixar rastro.
Dimas
desceu do táxi, atravessou a via movimentada e iniciou a subida do morro. Ao
passar pela porta do barraco de dona Santana, apesar da mútua implicância,
sentiu falta de ver a vizinha sentada na cadeira de balanço, ladeada pelos
filhos, cuidando da vida alheia, na verdade, cuidando de sua vida. Quando se
viu em frente ao barraco da mãe, a sensação foi a de um viajante que retornava ao
lar, depois de um longo período de forçada ausência.
-
Onde esteve esse tempo todo, meu filho? – saldou a mãe, confundida com a decrepitude
e o abandono do lugar – O que andou fazendo?
Diante
do silêncio do filho, que parecia contemplá-la como um fiel católico contemplaria
a imagem da Virgem Maria, Abadia teve dúvida de que ele estivesse realmente ali
ou se tratava de ‘doidices de sua cabeça fraca’. Embora não tivesse certeza se
o que vivia fosse realidade ou fantasia, ela preparou comida, que viu o filho
comer, com apetite de peregrino.
-
Tava com saudade da sua comida.
A
incerteza de que estivesse em seu juízo perfeito cresceu; o filho sempre fez
pouco de sua comida, mais que isso, sempre fez pouco dela. “Por que não me deixou
num orfanato? Por quê? Eu teria tido a chance de ser adotado por uma família
rica.” “Não posso negar que tive sorte de você ter se deitado com um homem
branco...”, ela recordou as tiradas do filho. Porém, ele, que nunca medira
esforços para humilhá-la, estava elogiando sua comida, a mesma que desprezou a
vida inteira. “Fui um tolo, mãe, me perdoa”, ela julgou ter ouvido.
Por
um momento, Abadia teve vontade de chamar a vizinha para que testemunhasse a
mudança do filho. Pensando melhor, não chamaria a vizinha somente, mas todo o
morro; ninguém acreditaria se visse Dimas a tratando como um filho amoroso
trata uma mãe. E, o mais surpreendente, comendo de sua comida, sem reclamar.
-
Vai ficar pra dormir? – ela arriscou.
Abadia
trocou o lençol da cama, a fronha do travesseiro e, como estava chovendo, providenciou
uma manta. Mais tarde, voltou ao quarto e se espantou ao constatar que o filho dormia
como um trabalhador depois de um dia de labuta. “Será que esse menino tá
doente, meu Deus?”, se perguntou, colocando a mão sobre sua testa. Na dúvida,
passou a noite praticamente sem pregar o olho. Pela manhã, antes de sair para
trabalhar, constatou que ele ainda dormia tranquila e serenamente. Teve o
ímpeto de fazer-lhe um carinho, mas se conteve, temendo que acordasse. Ao
deixar o quarto, Abadia sentiu-se invadida pela sensação de que talvez fosse a
derradeira vez que seus olhos miravam o filho. Um calafrio atravessou-lhe o
corpo. “O que isso, mulher? Que maluquice é essa? Logo agora que o menino
parece que tomou jeito...”, se questionou. Dominada pela emoção, desejou ficar
em casa, para cuidar do filho de uma forma que ele nunca a permitiu que
cuidasse. Na verdade, desejou colocá-lo no colo, niná-lo, como fazia quando era
bebê, o seu bebê.
Na
condução a caminho do trabalho, Abadia estava convencida de que sonhara que o
filho rebelde voltara para casa, dócil e amoroso, do jeito que sempre desejou.
-
Mãe! – Dimas chamou, ao despertar – A senhora tá aí?
“Já
foi pro trabalho”, ele murmurou diante do silêncio. Faltou dizer a ela que,
apesar de tudo, sempre a quis bem. Acima de tudo, sempre a amou. Então,
afloraram na mente as perguntas que sempre se fez: Quem é meu pai? Qual o seu
nome? Onde e como a mãe o conheceu? Ele sabe que eu existo? Mais do que nunca,
essas informações eram vitais. O relógio de bolso, que empenhou com Manduca,
voltou à mente; várias vezes surpreendeu a mãe com ele na mão, numa espécie de contemplação,
como se lhe trouxesse lembranças caras.
-
Badia! Tu tá aí, mulher? – gritou dona Santana, do lado de fora – Abre. É a
Santana. Tô ouvindo barulho. Que novidade essa? Por que ainda não saiu pra
trabalhar? Tá doente?
“A
vizinha enxerida já veio bisbilhotar”, Dimas murmurou baixinho. Dona Santana
bateu na porta mais algumas vezes. “Tenho certeza que tem gente aí. Meu ouvido
não me engana. Será que aquele filho sem coração voltou pra atazanar a mãe?”,
escutou a vizinha dizer antes de se afastar.
Ao
deixar a casa da mãe, Dimas teve a sensação de estar fechando um ciclo de sua
vida. Depois, protegido pelo disfarce que usava (capuz e óculos escuros), desceu
o morro reparando os becos, as vielas, os barracos, as pessoas e, para seu próprio
espanto, viu que nada era tão feio, nem tão pobre ou miserável, apenas era o
que era.
-
Onde passou a noite? Posso saber?
A
cobrança de Elisa não desagradou a Dimas, pois a interpretou como sinal de que
a companheira não lhe era tão indiferente quanto fazia crer. “Dei um rolê por
aí. Tô na pista de uma nova herdeira. Dessa vez a coisa vai”, ele preparou para
dizer.
-
Fui fazer uma visita pra velha. E acho que devia fazer a mesma coisa. A gente vai
dar um passo arriscado. Nunca se sabe... – foi o que realmente saiu de sua boca.
-
Sem essa, cara. Seu Targino é um estorvo. Se pudesse, apagaria da minha
memória, da minha certidão de nascimento e de onde mais fosse possível a triste
realidade de ser filha de um ser tão insignificante. – disse Elisa.
Depois
de um tempo, ela completou:
-
Peraí. Fala sério. O Dimas que eu conheço não perderia tempo se preocupando com
uma diarista ou um porteiro de prédio, dois cretinos que passam a vida dizendo
‘sim senhor, não senhor’. Que qui tá pegando? Presta atenção. O bonde tá
passando. Enquanto tu fica aí com suas crises existenciais, tô me mandando pra
casa do Basílio. Chupa essa pica: o velho finalmente caiu na arapuca.
Dimas,
embora surpreendido com a novidade, se esforçou para fingir naturalidade.
-
Vai pra casa do coroa assim sem mais nem menos? E eu? Como fico?
-
Qual é a dúvida, bebê? Tu fica aqui no hotel, vendendo o bagulho. No meu caso, como
mulher de empresário rico, não posso andar por aí, altas madrugadas, tá ligado?
Agora, meu papel é de esposinha apaixonada, sempre ao lado do maridinho. No
mais, vida que segue. Voltamos a ser amantes, como antes. Muito mais excitante,
lembra? Só precisamos combinar os horários dos encontros, pra nada dar errado. Tava
pensando aqui: Que tal a gente se encontrar sempre às tardes? Vi isso num filme
antigo, da Catherine Deneuve. Hipererótico, né? Sem a paranoia, claro.
Elisa
partiu para a casa de Basílio deixando na mão do parceiro a batata quente que
era resolver a questão da mercadoria presa no apartamento da Nossa Senhora de
Copacabana. Não havia dúvida de que, mais cedo ou mais tarde, Garrincha
apareceria para cobrar a fatura.
-
Toda essa beleza foi obra da falecida. – disse Basílio apresentando a
cobertura, um verdadeiro tributo ao mau gosto, a Elisa – Lindalva, que Deus a
tenha num bom lugar, levava muito jeito com essas coisas de casa, não acha? Pena
que um infarto inesperado...
Então, Basílio narrou, com riqueza de detalhes, a história da esposa morta, com quem vivera por quase quarenta anos. Enquanto isso, Elisa bolava uma forma de se livrar da decoração carnavalesca tão logo tivesse oportunidade. Entretanto, por ainda se considerar viúvo, Basílio estava decidido manter a cobertura tal qual deixara a falecida.