Em meio a mentiras e esquemas, Dimas acaba caindo no golpe de Garrincha e fica em suas mãos; se fizer a vontade do traficante morre.
Capítulo 3
Garrincha
montou guarda na porta da casa de Dimas, numa forma clara de intimidação. A
movimentação, como não poderia deixar de ser, despertou a atenção de dona
Santana, e de toda a vizinhança. Abadia, no entanto, sempre ocupada com as
faxinas, nada percebeu.
“Talvez
meu destino seja mesmo o tráfico”, Dimas refletiu; fugiu o quanto pôde, porém não
restava outra saída senão encarar a realidade. Além disso, andava cismado que a
qualquer momento a turma da praia descobriria que a história do pai criador de
gado do Mato Grosso não passava de invenção e que, na verdade, se chamava Dimas
da Silva, filho de mãe-solteira, faxineira-diarista e, cereja do bolo, morador
de comunidade pobre do subúrbio.
O
enredo do filho de fazendeiro rico permitiu que frequentasse as altas rodas,
experimentasse comidas finas, bebesse champanhe, visitasse balneários da moda e,
não podia esquecer, sem gastar um centavo que fosse. Afinal, de que outra forma
teria tido acesso ao mundo dos ricos sem lançar mão de muita astúcia, mentiras
e estratagemas? Por sorte, desde que inventara a história do pai rico, poucas
vezes se vira em maus lençóis. Apenas uma vez, quando Jane demonstrou desejo de
conhecer a fazenda do pai, chegou a ficar preocupado. A insistência da garota o
levou a se atentar pelo fato de que ao criar a história do pai rico não
imaginara nada além de um monte de cabeças de gado espalhadas numa grande
extensão de terra. Nem ao menos fazia ideia de que o tão falado Pantanal
ficasse no Mato Grosso do Sul e não no Mato Grosso, como afirmava. Na verdade, ele
nem fazia ideia da existência dos dois estados. Jane, alheia a tudo isso, se
via mergulhando nos rios, nuazinha em pelo, tomando leite nas tetas das vacas,
comendo frutas colhidas diretamente do pé, cavalgando, enfim, interagindo com
os animais nativos e com todo o ambiente.
-
Como pode abrir mão daquele paraíso, maluco? – disse Jane.
A
saída foi a de sempre.
-
Pô, amor. Sabe que tô estremecido com o velho, né? O clima não tá legal. Esse
não é um bom momento, sacou? Olha... Mas quando eu voltar às boas com o velho,
eu prometo que te levo lá.
No
fim das contas, para seu alívio, Jane desistiu da viagem; de problemas com o
pai ela entendia bem.
-
Suzaninha vai casar. – anunciou Demétrio, para espanto geral.
-
Que danadinha! – reagiu Larissa, deixando entrever uma ponta de despeito – Pensei
que, no máximo, Suzana se envolveria com algum personagem dos romances que lê.
Já que o PH...
-
O bofe é de carne e osso, meu amor. – garantiu Demétrio – Um verdadeiro Apolo. Mas
como nada é perfeito, que ninguém me ouça, tão dizendo por aí que não passa de
um pobretão. O pai tem uma lojinha de autopeças, em São João do Meriti. Alguém
tem ideia de onde fica isso?
A
novidade não caiu bem para Dimas; era ele quem deveria estar no lugar do noivo.
Desistiu muito facilmente da garota feiosa e insossa. O único consolo era que,
pelo que conhecia do pai da noiva, o renomado médico, doutor Antero Borges, que
acabara de ser eleito, pelo Rio de Janeiro, para a câmara federal, jamais daria
vida boa ao genro.
-
Sou um homem do trabalho. Todos os dias, às seis da manhã já estou atendendo no
hospital. – ouvira o quase sogro dizer certa vez.
-
Não tá com dor de cotovelo, Dimas? – provocou Demétrio – Afinal de contas,
pegou a Suzana. Quer dizer, Suzana, Larissa, Jane...
-
Tira o meu nome e, no lugar, coloca o teu. – reagiu Larissa.
-
Que papo é esse, Dê? – disse Lucas – Tá me traindo, é?
A
intervenção de Lucas, embora o tom fosse de brincadeira, surpreendeu a turma. O
próprio Demétrio, que não perdia a chance de fazer comentários, pareceu desconsertado.
Entretanto, antes que alguém tivesse tempo de dizer qualquer coisa, as atenções
foram atraídas para um senhor, de aparência bastante humilde, que se aproximou
da turma.
-
Com licença. Desculpa atrapalhar. O moço daquele quiosque falou que a moça
desse retrato andava por aqui. – o homem disse apontando na direção do quiosque
de Manduca – Alguém viu?
A
foto passou de mão em mão. “O que uma foto de Elisa tá fazendo nas mãos desse
homem?” – foi a pergunta que todos se fizeram, silenciosamente.
-
Quem é o senhor? – disse Larissa rompendo o silêncio – O que deseja?
-
Precisava muito de notícias dessa menina. – ele disse – Coisa de urgência.
-
Elisa tá na casa do namorado. – disse Demétrio.
-
O senhor poderia, por favor, dizer o endereço? É coisa de muita urgência mesmo.
-
Afinal, quem diabos é o senhor? – perguntou Larissa, impacientemente – Ninguém
aqui tá autorizado a dar informações. O senhor tá atrapalhando...
O
tom áspero usado por Larissa fez aumentar o constrangimento e o embaraço do
pobre homem que, sem demora, pediu desculpa pelo incomodo causado, tomando o
caminho do calçadão pisando a areia fofa, debaixo do sol escaldante.
-
“Desculpa atrapalhar o descanso dos moços”. – zombou Demétrio.
-
Que assunto ele pode ter com a Elisa? – questionou Dimas – Alguém faz ideia?
-
Deve ser empregado da família. – arriscou Pedrão – Não viu o uniforme que ele usava?
-
Olha o Pedrão! – disse Lucas – Depois dizem que ele dorme o tempo todo.
-
E não é que faz sentido? – especulou Demétrio – Esse homem, provavelmente, é um
ex-empregado da família de Elisa, que pediu demissão, voltou pra terrinha,
gastou toda a grana do acerto e agora tá de volta, querendo reaver o emprego. Só
pode ser isso, turma. Um motorista lá de casa fez a mesma coisa. Pediu pra ser
despedido, imaginem, porque tava chovendo na terra dele. Pouco tempo depois pediu
o emprego de volta porque a chuva não foi o suficiente pra molhar a terra e
fazer a plantação crescer. Dá pra acreditar?
No
final do dia, seguindo o roteiro, Dimas simulou a caminhada até Copacabana,
onde pegou a condução. Ao tentar entrar em casa, entretanto, viu-se encurralado
pelo bando de Garrincha.
-
Para de se fazer de desentendido, maluco. Vem comigo. – disse Garrincha
surgindo do meio do banco, pois estava oculto – Temos que levar um papo.
-
Pô, cara. Não vai dar. A velha me ligou. Tá passando mal. Acho que vou precisar
levar no pronto-socorro e tudo.
-
Vem comigo ou prefere ter a conversa aqui mesmo, na frente da vizinhança?
Dona
Santana que, como de costume, estava sentada na porta de casa, ladeada pelos
filhos, sorriu de satisfação ao ver o filho da vizinha, cabisbaixo, obedecer à
ordem do traficante. Pelo caminho, no olhar daqueles que encontrava, Dimas viu
um misto de espanto e prazer por vê-lo encrencado com o movimento; sempre
orgulhoso e esnobe, não contava com a simpatia geral.
-
Cadê a grana, maluco? – disse Garrincha tão logo chegaram à sede do movimento –
Ando com o caixa baixo. Tô precisando me fortalecer. E aquela grana...
-
Já disse que devolvo a mercadoria. Tá lá. Não toquei em nada.
-
Já falei que não aceito devolução. Quero a grana, camarada!
-
Entende o meu lado, Garrincha.
-
Chega de embromação, camarada. Se não arrumar a grana, a coisa vai feder pro teu
lado. De repente, posso, sei lá, te encrencar com os home. Sabe que tenho meus
contatos. Nesse caso, até dona Badia entraria no rolo.
-
Deixa minha mãe fora disso. Tenho lá minhas diferenças ela, mas... Pô, cara, você
conhece a luta daquela mulher.
-
Olha só. O filho desalmado tá com peninha da mamãezinha? Quem diria? Só depende
de tu. Só de tu. Tô te dando a chance de entrar pro movimento. Se fosse tu, agarrava
com unhas e dentes. É a solução pra todos os teus problemas. Só tu não vê.
Dona
Santana ainda estava de plantão na porta de casa quando Dimas, depois de mais
de duas horas de verdadeira tortura, retornou à casa da mãe. “Não foi dessa vez
que eu fui pra a vala, velha enxerida”, ele teve vontade de gritar. Em vez
disso, entrou em casa, de cabeça baixa. Não imaginava que o amigo de infância o
atrairia para uma armadilha; Garrincha somente fornecera a droga para tê-lo nas
mãos, agora tinha certeza disso. Se pudesse contar com a mãe, mas ela vivia
dura. Em último caso, poderia vender o barraco e com a grana quitar a dívida.
Assim, se livraria do pesadelo.
-
Nunca mais chegava. – disse Abadia assim que viu o filho entrou em casa – Tava
preocupada.
-
Que saco! Sai do meu pé, assombração. – ele disse.
Atravessou
a noite em claro pensando em alguma saída. Nunca dera atenção aos alertas da
mãe, que insistia para que não se envolvesse com a gente do tráfico; no fundo,
sempre dificuldade de levar a sério os conselhos da criatura de cabeça estreita
que só dizia besteira e choramingava pelos cantos.
-
Cadê a manteiga? Como eu posso comer pão sem, pelo menos, manteiga? Porque
geleia...
O
questionamento foi feito diante do café que a mãe, como fazia todos os dias,
deixara preparado. A velha geladeira, caridade de uma das patroas, pifou de
vez. “Sem geladeira, não tem manteiga”, raciocinou. Também pifou a televisão, o
velho aparelho de tubo, que chegou da mesma forma que a geladeira. Aliás, tudo
ali era proveniente de caridade: a mesa, as cadeiras, o armário, o sofá, que a
mãe usava para dormir, a cama aonde dormia, o fogão, enfim, descarte, lixo.
Dimas
divertiu-se imaginando a mãe recebendo aquela tranqueira, com sua humildade
doentia. E se deu conta de que nunca na vida usara algo que fosse de primeira-mão,
comprado diretamente da loja. As roupas e os sapatos, alguns de marca, que usava
provinham de doações das patroas da mãe que tinham filhos, sobrinhos ou netos
que regulavam a sua idade.
Ao
sair de casa, Dimas não viu a enxerida dona Santana na porta de casa. Desejou,
ardentemente, receber a notícia de que ela tivesse morrido sufocada pela
língua, ou se mudara com ‘as filhinhas’, para bem longe. Chegou à praia, por
volta de meio-dia. A novidade era Príncipe Carlos que fazia embaixadinhas, em
frente ao quiosque do pai, envergando o uniforme do Flamengo.
-
Aproveita, minha gente, pra tirar self com o futuro craque. É só aproximar. Não
se acanhem. Príncipe Carlos vai atender todo mundo. Vamos lá. Meu filho ainda não
fechou com nenhum clube, mas os maiores tão disputando seu passe.
Apesar
do esforço de Manduca, ninguém se aproximou para fazer self com o futuro craque
do futebol. Em seguida, Dimas se juntou à turma. PH estava por lá arrasado com
a situação do pai, que se agravava a cada dia.
-
Força, mano. – disse Lucas – Seu velho vai provar que tudo isso não passa de mal-entendido.
-
Sei não, cara. Existem documentos e filmagens que provam o envolvimento. O velho
deu mole. Agora tá todo mundo encrencado. Minha mãe tá se esforçando pra manter
a família unida, mas tá brabo. As contas bancárias e os bens tão bloqueados.
-
As contas do exterior também? – quis saber Demétrio.
-
Não tem conta no exterior.
-
Tô bege. – prosseguiu Demétrio – Teu velho não mandou a grana pra paraísos
ficais...? Que tipo de corrupto é esse, meu povo? Taí, acho que tá na hora de
criarem um curso pra formar corruptos. Se é que já não existe, né?
O
comentário causou mal-estar não somente em PH, mas em toda a turma. Lucas se
esforçou para consertar o estrago convidando o colega para pegar onda, porém,
PH ignorou o convite; impossível pensar em alguma coisa que não fosse a prisão
do pai e, consequentemente, a derrocada da família: sem grana, os empregados
precisaram ser dispensados e a mãe estava cozinhando, lavando e passando roupa,
enfim, cuidando da casa, o que antes seria impensável.
-
No meio de tudo isso a Elisa simplesmente desapareceu. Nem o telefone ela
atende. E o pior é que não tenho a menor ideia de onde ela mora. Alguém sabe?
Ninguém
da turma sabia o endereço de Elisa ou tinha qualquer outra informação a seu
respeito; tudo o que sabiam fora dito por ela mesma, ou seja, quase nada.
-
Elisa é mesmo muito reservada. – disse PH.
-
E não esquece que foi você que apresentou a garota pra turma. – disse Demétrio.
O
restante da turma fez coro com Demétrio: antes de aparecer na praia, na
companhia de PH, Elisa era completamente desconhecida.
-
Quer saber? Saquei tudo. – disse Pedrão mostrando, mais uma vez, seu lado
Sherlock Holmes – Elisa é uma multimilionária e foi sequestrada por aquele homenzinho
esquisito que teve aqui na praia. Vai por mim.
Dimas
não fez questão de tomar parte da conversa, no entanto, manteve-se atento o
tempo todo. A informação do sumiço de Elisa acendeu o alerta; talvez os ventos
estivessem começando a soprar a seu favor.
Dias
depois, jornais e revistas davam conta de que novas acusações pesavam sobre o
empresário Pedro Henrique Soares Alves. Um freguês comentou com o dono da banca
de revistas que a família do ‘empresário corrupto’, afundada em dívidas, fora obrigada
a trocar o espaçoso apartamento do Leblon por um quarto e sala, num lugar
afastado do centro de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. O comentário levou
Dimas a não ter mais dúvida de que o destino estava mesmo do seu lado; Elisa,
quando voltasse da viagem – tinha como certo que o sumiço não passava de uma
forma elegante de ela romper o compromisso –, jamais reataria o noivado com o ‘morador
da Baixada’, filho de presidiário, preso por crime do colarinho branco, bem
verdade, porém, presidiário de qualquer forma. Em contrapartida, e para todos
os efeitos, ele era filho de um dos maiores criadores de gado do Mato Grosso, e
do Brasil, ou seja, um excelente partido, detalhe que, certamente, contaria a
seu favor na hora em que os pais de Elisa descobrissem que a filha estava
dividida entre o ‘herdeiro de fazendas de gado’ e o ‘filho do presidiário’.
Entretanto,
desde que se imiscuíra entre os riquinhos da praia, apresentando-se como fosse um
deles – admirava-se da facilidade com que os convencera –, era obrigado a
inventar meios para fugir de pagar contas ou assumir compromissos que
envolvessem despesas de qualquer ordem. O manjado golpe dos cartões bloqueados,
devido a algum acontecimento extraordinário, e o fato de andar sem dinheiro, em
espécie, pois, segundo afirmava, gente do interior tinha o costume de mandar ‘anotar
no caderno’ para pagar depois, eram as desculpas preferidas. Dessa forma, explorou
o quanto pôde Larissa, Suzana, Jane e várias outras. Durante os relacionamentos
com as três amigas da praia, por exemplo, tinha sempre desculpas na ponta da
língua. Suzana e Jane nunca estranhavam o fato de o namorado estar sempre
desprevenido. Na verdade, pareciam sentir prazer em bancar os programas. O mesmo
não acontecia com Larissa.
-
Gosto de receber flores, joias caras, que abram a porta do carro, que puxem a
cadeira e, o principal, que paguem a conta. – Larissa fazia questão de deixar
claro – Sem essa de mulher moderna. Sou mulherzinha mesmo. Quero ser bancada. E
sou cara, queridinho. Pra me manter o homem tem de abrir a carteira. Do
contrário, fico avulsa mesmo.
A
saída foi se afastar da garota que, das três, era a preferida. Na real, chegou
a gostar de Larissa, não tanto quanto estava gostando de Elisa, mas o bastante
para ficar profundamente abalado com o fim do namoro.
PH
continuou frequentando a praia. No entanto, os constantes problemas causados
pela grana curta e a prisão do pai, somadas ao sumiço de Elisa, o tornaram, na
opinião da turma, um chato insuportável. Além disso, Larissa, Pedrão, Lucas e
mesmo o descolado Demétrio não o tratavam da mesma forma que antes. Dimas, seguindo
a onda, experimentou o gostinho de esnobar o rival, pelo mesmo motivo que, com
certeza, também seria esnobado, se conhecessem sua verdadeira condição social. Não
demorou muito, o ex riquinho não deu mais o ar da graça.
Dimas
mudou de ideia: não mais vislumbrava um casamento por interesse, mas a união
feliz de dois apaixonados. Não tinha dúvida de que Elisa estivesse descansando
num resort da moda, na companhia dos pais. Por outro lado, conscientizou-se de
que não poderia continuar usando as velhas desculpas para justificar a eterna
falta de grana. Cedo ou tarde teria de provar que fazia parte da classe dos
endinheirados. Dessa vez, disposto a impressionar, planejou que assim que a
garota retornasse a convidaria para um jantar romântico, num restaurante
bacana. Nesse dia, alugaria um carro de luxo, usaria uma beca elegante, que
tomaria emprestada com o Kiko – um conhecido do morro que trabalhava com figurino
para cinema e quebrava seus galhos toda vez que precisava se apresentar bem em festas
e eventos importantes –, e, com a Duda, travesti com salão montado no morro, daria
um bom trato no visual: cabelo, barba, limpeza de pele, unhas, ou seja, um
‘upgrade’ para apagar qualquer possível vestígio de pobreza. Mas como financiaria
o jantar? Faltava grana até para manter a conexão de internet do celular. O aparelho,
proveniente de receptação, até fazia boa figura diante dos colegas, mas, na
maior do tempo, servia apenas para receber chamada. A mãe, quando viu aquele
aparelho vistoso, desconfiou de sua procedência. No entanto, pouco interessava os
pruridos de honestidade da mãe; o importante era ter um aparelho digno do filho
de um fazendeiro rico para apresentar. Além do celular, roupas, tênis, sapatos,
chinelos, óculos de sol, adereços em geral, nem precisavam ser originais ou
mesmo de primeira mão, desde que fizessem boa figura, claro.
-
Por que não avisou, mãe? Eu ia te buscar lá embaixo.
Abadia
sorriu embevecida por ver o filho, que a esculachava o tempo todo, oferecer
ajuda. A explicação para o ataque de generosidade estava nas sacolas repletas
de roupas, calçados e artigos masculinos, quase sempre de marcas caras, que
trazia da casa das patroas. Nessas ocasiões, única por sinal, Dimas não reclamava
do fato de a mãe ser uma simplória diarista; das doações que ela recebia extraía
os figurinos do personagem que interpretava na vida.
Ao
entrar em casa, naquele início de noite, Dimas deu de cara com Garrincha,
escarrapachado no sofá. A mãe, que preparava alguma coisa no fogão,
diferentemente do que fazia todos os dias, não tomou conhecimento de sua
chegada.
-
Que bom que chegou a tempo de jantar comigo, brother. Nunca mais deu notícias.
Daí, eu vim saber como andam as modas. Vamos lá fora. – disse Garrincha, já de
pé – Enquanto dona Badia prepara o rango, a gente troca uma ideia.
Do
lado de fora da casa, Garrincha continuou:
-
Dona Badia é mulher de responsabilidade. Coisa rara neste mundo. Pedi pra fazer
um rango pro pessoal do movimento e ela topou na hora. Admiro gente assim, pau
pra toda obra, sabe como é?
-
Minha mãe... Jantar pro pessoal do movimento... Que conversa é essa? –
estranhou Dimas.
-
De repente, tive essa ideia. Aposto que se amarrou, né? Daqui a pouco, o bando
tá chegando aí. Hoje é o aniversário do Pelado. Quero fazer um afago no muleque.
Ele tá com a gente desde quase bebê. Sabia que ele foi abandonado pela mãe
‘cracuda’ e que nem sabe quem é o pai, né?
-
Que papo é esse, Garrincha? O morro inteiro sabe que o garoto foi abandonado pelado,
numa viela. Qual é a novidade? E essa história de aniversário? Por que tem de ser
na minha casa?
-
Qual é, irmão? Deixa escândalo. Esqueceu que tá em falta com o movimento?
-
Já disse que vou resolver.
-
Quando? No dia de ‘são nunca’? Acabou o tempo, acabou o caô, meu bom. Daqui pra
frente, vai ser do meu jeito. Pra começo de conversa, quero dona Badia no
movimento. Acabei de decidir. A gente come muito mal por lá. Como ela tem fama
de boa cozinheira, pensei: por que não recrutar a progenitora do amigo Dimas pra
ser a cozinheira? Ideia do caralho, não acha?
O
barulho provocado pela aproximação do bando que, como anunciou Garrincha, vinha
participar do jantar, impediu Dimas de reagir.
-
Olha a alegria do Pelado. – disse Garrincha – O muleque tá que não se aguenta.
Primeira festa de aniversário que ganha na vida. Tenho ele como um filho, sabia?
Pelado,
garoto de cerca de quatorze anos, vinha à frente do bando, ostentando o fuzil
que acabara de ganhar do protetor.
-
Pode entrar que a casa é nossa, meu povo. – disse Garrincha abrindo a porta da
casa para dar passagem ao bando – Entra e se abanca.
Dimas
tentou ficar do lado de fora do barraco, mas foi constrangido a entrar, por
Garrincha. Dentro do barraco, num discurso improvisado, o chefe do bando
destacou as qualidades do aniversariante e sua história de garoto abandonado,
salvo pelo movimento que, ao contrário do que diziam as más línguas, tinha
preocupações sociais.
-
A gente pega essa garotada ociosa e faz o quê? Dá ocupação, tira da
vagabundagem...
O
discurso só foi interrompido quando a dona da casa anunciou que a comida estava
pronta para ser servida.
-
Muito boas falas, minha santa senhora. – disse Garrincha – Tá todo mundo com a
barriga nas costas. Olha a cara deles. O que tá esperando pra cair de boca,
macacada?
Apesar
de ruidoso, o grupo teve receio de ‘atacar’. Então, Garrincha ordenou que dona
Abadia servisse os pratos.
-
E aí, Dimas? – disse Garrincha ao notar que o filho da dona da casa não se
servira – Não vai dizer que precisa que a mamãezinha faça seu prato?
-
Desculpa, filho. Pensei que... – disse Abadia – Mas pode deixar. Eu vou fazer
seu prato. Faço isso a vida inteira, né?
-
Não precisa, mãe. Tô sem fome.
-
Tem problema não, dona Badia. Se o garoto da zona sul não quer se envolver com
os favelados é melhor que sobra mais, né não?
O
bando, que comia em silêncio, irrompeu em grande gargalhada, somente interrompida
quando, de repente, dona Santana entrou na casa, acompanhada dos filhos.
-
O que é isso, Badia? Deu de fazer festa e não convidar a vizinhança?
-
Não tem festa nenhuma, dona Santana. É só...
-
A dona da casa não convidou – disse Garrincha interrompendo Abadia –, mas eu,
Garrincha, convido a senhora e as suas, quero dizer, seus filhinhos, pra
participar do jantar de aniversário do Pelado. Pode se abancar que o rango tá
liberado.
-
Que novidade é essa, cabra? Deu pra invadir casa de trabalhador?
-
Falou bem, dona Santana, porque aqui só tem trabalhador. Inclusive, gostaria de
informar, em primeira mão, que a dona Badia, grande representante da classe
trabalhadora deste país, será, a partir de amanhã, a cozinheira do movimento.
-
Brigado pela deferência, seu Garrincha. Mas eu não posso não. Tenho compromisso
a semana inteira com as madames da zona sul. – disse Abadia, sem digerir o que
acabara de ouvir – Deus me livre deixar as patroas na mão. Elas são muito boas
pra mim. E o trabalho é meu ganha-pão. Como é que vou viver sem as minhas
faxinas?
-
Isso não é problema meu, dona Badia. – respondeu Garrincha – Teu filho tá me
devendo. Aliás, tá devendo pro movimento. E como tem se negado a comprimir o
compromisso feito sujeito homem, a senhora, como mãe dele, vai... Aliás, a presença
do movimento aqui hoje, além de comemorar o aniversário do estimado Pelado (o adolescente
sorriu de orelha a orelha, mostrando os dentes encavalados), tem o objetivo de experimentar
o tempero da senhora. E pelo jeito o bando aprovou, com louvor, não é não?
O
bando, em nova algazarra, não economizou elogios ao ‘rango’ de dona ‘Badia’.
-
Diante de toda essa manifestação, a senhora tá mais que aprovada. E a partir de
amanhã, dá expediente na sede do movimento.
-
Isso quer dizer que tua mãe vai pagar por mais uma besteira que tu fez, Dimas?
Se emenda não? – disse dona Santana – Badia não tem nada que ver com tuas
trapalhadas, rapaz. O único erro dela é trabalhar de sol a sol pra te sustentar.
-
Se mete nisso não, velha fuxiqueira. Vai cuidar de suas ‘filhinhas’. – disse
Garrincha – Bora, pessoal. A gente já fez o que tinha pra fazer aqui. Até
amanhã, dona Badia. E nada de dar furo, hein? A saúde do teu filhinho tá em tuas
mãos. Se é que a senhora me entende. Além do mais, não vai ficar bem eu bater
na porta das ‘madames da zona sul’ à tua procura, né? O que a senhora me diz?
Tão
logo Garrincha saiu com o bando, Dimas correu para a sede do movimento;
tencionava reverter a situação.
-
Deixa minha velha fora disso, cara. –
ele implorou, ajoelhando aos pés do traficante – Sabe que é com as faxinas que
ela paga as contas, coloca o rango na mesa, compra remédio... Sem isso, ela não
tem como viver.
-
Não tem conversa, camarada. Minha decisão é soberana e não tem chororô. Se
quiser um conselho: aceita que dói menos.
-
Alivia pra velha, cara. – insistiu Dimas – Ela é uma mulher do bem. Nunca fez
mal pra ninguém. Veja a figura triste e acabada que é.
-
Se o filho dela não vê, por que eu tenho que ver? E levanta daí. Deixa de ser
otário. Age como sujeito homem. Pega a mercadoria e cai na pista. Tenho certeza
de que em pouco tempo tu consegue a grana pra me pagar e ainda fica
fortalecido. Vai poder até tirar onda. É só agir com a cabeça. Metido no meio
dos playboys como é tu tá com a faca e o queijo na mão, camarada. Só toma
cuidado pros hôme não te pegar. E se acontecer, oh, tu não me conhece, nem
nunca me viu. Sabe o que acontece com X9, não sabe?
Garrincha
engatilhou a arma, que trazia do lado, e disparou para o alto, prometendo
atirar para valer da próxima vez. Dimas saiu da sede do movimento tão perturbado
que não notou que dona Santana estava na porta de casa, esperando seu retorno. Pela
manhã, da cama, ouviu a conversa da mãe, no ultrapassado aparelho celular, com
uma das patroas.
-
Hoje, infelizmente, não posso ir, dona Zélia. Não vou poder mesmo. A senhora
vai desculpar. Não tá acontecendo nada comigo, não senhora. É coisa minha. Eu
sei que seu filho, doutor Bartolomeu, vem do estrangeiro e a senhora precisa da
casa em ordem. Ele é médico muito importante, faz tempo que não visita o
Brasil, a senhora me falou. Mas, olha, conversa com a dona Alerte. Talvez seja
melhor botar outra faxineira no meu lugar. Acho que não vou poder voltar tão
cedo. Às vezes as coisas tomam um rumo que a gente não espera, dona Zélia.
Desculpa o mau jeito, mas vou ter que desligar.
“O problema é meu, mãe. Deixa que eu resolvo”, Dimas ensaiou dizer. Não teve forças. Durante a infância, alimentava a fantasia de que de uma hora para outra alguém apareceria do nada e o resgataria da vida desgraçada que levava ao lado da mãe. Na adolescência, passou a imaginar que o pai, que nunca conhecera, era um milionário que surgiria do nada para abrir-lhe as portas de um mundo de riquezas e encantos. Mais tarde, entendeu que o pai idealizado jamais bateria à sua porta e que somente mudaria de vida por meio de algum plano mirabolante ou um golpe de sorte. E, pela primeira vez, considerou a possibilidade de entrar para o tráfico. No entanto, a vida marginal não interessava; queria grana, poder, mas também liberdade, visibilidade. Então, o pai que nunca deu as caras ou quis saber dele ganhou vida através do criador de um gado do Mato Grosso, chamado Paulo Otávio Capanema, transformando o favelado Dimas da Silva, em Dimas Capanema, herdeiro de inúmeras fazendas de gado.
Bom domingo e excelente semana.
Esperança, fé, amor e GRATIDÃO.
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