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outubro 18, 2024

Investimentos com retorno garantido.

Muito se fala em investimentos financeiros. Há muita gente por aí que se especializa em estudos buscando descobrir o que rende mais e em que tipo de aplicação pouco dinheiro pode, da noite para o dia, se transformar numa bolada e te deixar milionário, sonho acalentado por praticamente todos os mortais.

Nada mais fácil de entender, não é mesmo? Afinal de contas, vivemos num mundo descaradamente materialista em que o dinheiro é a mola mestra, sem ele não conseguimos dar um passo. Porém, como disse Jesus, "nem só de pão vive o homem". Temos muitas outras necessidades as quais o dinheiro não pode comprar.

Uma dessas necessidades que o dinheiro não compra é o amor das pessoas que queremos bem. Amor esse que pode ser carnal, mas também pode vir na forma de uma amizade em que vale a pena investir. Sim, a palavra é essa mesma. Podemos e devemos investir no amor, na amizade, no companheirismo sem medo de sofrer qualquer prejuízo.

Quando investimos em bons sentimentos o retorno é sempre certo. Não precisamos temer. Mesmo quando sofremos alguma decepção, e elas são possíveis de acontecerem, não devemos nos entristecer, pois o bom sentimento investido voltará a nós de uma forma ou de outra antes que possamos perceber.

Bom final de semana.

Esperança. fé, amor e GRATIDÃO.

outubro 13, 2024

A mão invisível - Capítulo 3

Em meio a mentiras e esquemas, Dimas acaba caindo no golpe de Garrincha e fica em suas mãos; se fizer a vontade do traficante morre.

Capítulo 3

Garrincha montou guarda na porta da casa de Dimas, numa forma clara de intimidação. A movimentação, como não poderia deixar de ser, despertou a atenção de dona Santana, e de toda a vizinhança. Abadia, no entanto, sempre ocupada com as faxinas, nada percebeu.

“Talvez meu destino seja mesmo o tráfico”, Dimas refletiu; fugiu o quanto pôde, porém não restava outra saída senão encarar a realidade. Além disso, andava cismado que a qualquer momento a turma da praia descobriria que a história do pai criador de gado do Mato Grosso não passava de invenção e que, na verdade, se chamava Dimas da Silva, filho de mãe-solteira, faxineira-diarista e, cereja do bolo, morador de comunidade pobre do subúrbio.

O enredo do filho de fazendeiro rico permitiu que frequentasse as altas rodas, experimentasse comidas finas, bebesse champanhe, visitasse balneários da moda e, não podia esquecer, sem gastar um centavo que fosse. Afinal, de que outra forma teria tido acesso ao mundo dos ricos sem lançar mão de muita astúcia, mentiras e estratagemas? Por sorte, desde que inventara a história do pai rico, poucas vezes se vira em maus lençóis. Apenas uma vez, quando Jane demonstrou desejo de conhecer a fazenda do pai, chegou a ficar preocupado. A insistência da garota o levou a se atentar pelo fato de que ao criar a história do pai rico não imaginara nada além de um monte de cabeças de gado espalhadas numa grande extensão de terra. Nem ao menos fazia ideia de que o tão falado Pantanal ficasse no Mato Grosso do Sul e não no Mato Grosso, como afirmava. Na verdade, ele nem fazia ideia da existência dos dois estados. Jane, alheia a tudo isso, se via mergulhando nos rios, nuazinha em pelo, tomando leite nas tetas das vacas, comendo frutas colhidas diretamente do pé, cavalgando, enfim, interagindo com os animais nativos e com todo o ambiente.

- Como pode abrir mão daquele paraíso, maluco? – disse Jane.

A saída foi a de sempre.

- Pô, amor. Sabe que tô estremecido com o velho, né? O clima não tá legal. Esse não é um bom momento, sacou? Olha... Mas quando eu voltar às boas com o velho, eu prometo que te levo lá.

No fim das contas, para seu alívio, Jane desistiu da viagem; de problemas com o pai ela entendia bem.

- Suzaninha vai casar. – anunciou Demétrio, para espanto geral.

- Que danadinha! – reagiu Larissa, deixando entrever uma ponta de despeito – Pensei que, no máximo, Suzana se envolveria com algum personagem dos romances que lê. Já que o PH...

- O bofe é de carne e osso, meu amor. – garantiu Demétrio – Um verdadeiro Apolo. Mas como nada é perfeito, que ninguém me ouça, tão dizendo por aí que não passa de um pobretão. O pai tem uma lojinha de autopeças, em São João do Meriti. Alguém tem ideia de onde fica isso?

A novidade não caiu bem para Dimas; era ele quem deveria estar no lugar do noivo. Desistiu muito facilmente da garota feiosa e insossa. O único consolo era que, pelo que conhecia do pai da noiva, o renomado médico, doutor Antero Borges, que acabara de ser eleito, pelo Rio de Janeiro, para a câmara federal, jamais daria vida boa ao genro.

- Sou um homem do trabalho. Todos os dias, às seis da manhã já estou atendendo no hospital. – ouvira o quase sogro dizer certa vez.

- Não tá com dor de cotovelo, Dimas? – provocou Demétrio – Afinal de contas, pegou a Suzana. Quer dizer, Suzana, Larissa, Jane...

- Tira o meu nome e, no lugar, coloca o teu. – reagiu Larissa.

- Que papo é esse, Dê? – disse Lucas – Tá me traindo, é?

A intervenção de Lucas, embora o tom fosse de brincadeira, surpreendeu a turma. O próprio Demétrio, que não perdia a chance de fazer comentários, pareceu desconsertado. Entretanto, antes que alguém tivesse tempo de dizer qualquer coisa, as atenções foram atraídas para um senhor, de aparência bastante humilde, que se aproximou da turma.

- Com licença. Desculpa atrapalhar. O moço daquele quiosque falou que a moça desse retrato andava por aqui. – o homem disse apontando na direção do quiosque de Manduca – Alguém viu?

A foto passou de mão em mão. “O que uma foto de Elisa tá fazendo nas mãos desse homem?” – foi a pergunta que todos se fizeram, silenciosamente.

- Quem é o senhor? – disse Larissa rompendo o silêncio – O que deseja?

- Precisava muito de notícias dessa menina. – ele disse – Coisa de urgência.

- Elisa tá na casa do namorado. – disse Demétrio.

- O senhor poderia, por favor, dizer o endereço? É coisa de muita urgência mesmo.

- Afinal, quem diabos é o senhor? – perguntou Larissa, impacientemente – Ninguém aqui tá autorizado a dar informações. O senhor tá atrapalhando...

O tom áspero usado por Larissa fez aumentar o constrangimento e o embaraço do pobre homem que, sem demora, pediu desculpa pelo incomodo causado, tomando o caminho do calçadão pisando a areia fofa, debaixo do sol escaldante.

- “Desculpa atrapalhar o descanso dos moços”. – zombou Demétrio.

- Que assunto ele pode ter com a Elisa? – questionou Dimas – Alguém faz ideia?

- Deve ser empregado da família. – arriscou Pedrão – Não viu o uniforme que ele usava?

- Olha o Pedrão! – disse Lucas – Depois dizem que ele dorme o tempo todo.

- E não é que faz sentido? – especulou Demétrio – Esse homem, provavelmente, é um ex-empregado da família de Elisa, que pediu demissão, voltou pra terrinha, gastou toda a grana do acerto e agora tá de volta, querendo reaver o emprego. Só pode ser isso, turma. Um motorista lá de casa fez a mesma coisa. Pediu pra ser despedido, imaginem, porque tava chovendo na terra dele. Pouco tempo depois pediu o emprego de volta porque a chuva não foi o suficiente pra molhar a terra e fazer a plantação crescer. Dá pra acreditar?

No final do dia, seguindo o roteiro, Dimas simulou a caminhada até Copacabana, onde pegou a condução. Ao tentar entrar em casa, entretanto, viu-se encurralado pelo bando de Garrincha.

- Para de se fazer de desentendido, maluco. Vem comigo. – disse Garrincha surgindo do meio do banco, pois estava oculto – Temos que levar um papo.

- Pô, cara. Não vai dar. A velha me ligou. Tá passando mal. Acho que vou precisar levar no pronto-socorro e tudo.

- Vem comigo ou prefere ter a conversa aqui mesmo, na frente da vizinhança?

Dona Santana que, como de costume, estava sentada na porta de casa, ladeada pelos filhos, sorriu de satisfação ao ver o filho da vizinha, cabisbaixo, obedecer à ordem do traficante. Pelo caminho, no olhar daqueles que encontrava, Dimas viu um misto de espanto e prazer por vê-lo encrencado com o movimento; sempre orgulhoso e esnobe, não contava com a simpatia geral.

- Cadê a grana, maluco? – disse Garrincha tão logo chegaram à sede do movimento – Ando com o caixa baixo. Tô precisando me fortalecer. E aquela grana...

- Já disse que devolvo a mercadoria. Tá lá. Não toquei em nada.

- Já falei que não aceito devolução. Quero a grana, camarada!

- Entende o meu lado, Garrincha.

- Chega de embromação, camarada. Se não arrumar a grana, a coisa vai feder pro teu lado. De repente, posso, sei lá, te encrencar com os home. Sabe que tenho meus contatos. Nesse caso, até dona Badia entraria no rolo.

- Deixa minha mãe fora disso. Tenho lá minhas diferenças ela, mas... Pô, cara, você conhece a luta daquela mulher.

- Olha só. O filho desalmado tá com peninha da mamãezinha? Quem diria? Só depende de tu. Só de tu. Tô te dando a chance de entrar pro movimento. Se fosse tu, agarrava com unhas e dentes. É a solução pra todos os teus problemas. Só tu não vê.

Dona Santana ainda estava de plantão na porta de casa quando Dimas, depois de mais de duas horas de verdadeira tortura, retornou à casa da mãe. “Não foi dessa vez que eu fui pra a vala, velha enxerida”, ele teve vontade de gritar. Em vez disso, entrou em casa, de cabeça baixa. Não imaginava que o amigo de infância o atrairia para uma armadilha; Garrincha somente fornecera a droga para tê-lo nas mãos, agora tinha certeza disso. Se pudesse contar com a mãe, mas ela vivia dura. Em último caso, poderia vender o barraco e com a grana quitar a dívida. Assim, se livraria do pesadelo.

- Nunca mais chegava. – disse Abadia assim que viu o filho entrou em casa – Tava preocupada.

- Que saco! Sai do meu pé, assombração. – ele disse.

Atravessou a noite em claro pensando em alguma saída. Nunca dera atenção aos alertas da mãe, que insistia para que não se envolvesse com a gente do tráfico; no fundo, sempre dificuldade de levar a sério os conselhos da criatura de cabeça estreita que só dizia besteira e choramingava pelos cantos.

- Cadê a manteiga? Como eu posso comer pão sem, pelo menos, manteiga? Porque geleia...

O questionamento foi feito diante do café que a mãe, como fazia todos os dias, deixara preparado. A velha geladeira, caridade de uma das patroas, pifou de vez. “Sem geladeira, não tem manteiga”, raciocinou. Também pifou a televisão, o velho aparelho de tubo, que chegou da mesma forma que a geladeira. Aliás, tudo ali era proveniente de caridade: a mesa, as cadeiras, o armário, o sofá, que a mãe usava para dormir, a cama aonde dormia, o fogão, enfim, descarte, lixo.

Dimas divertiu-se imaginando a mãe recebendo aquela tranqueira, com sua humildade doentia. E se deu conta de que nunca na vida usara algo que fosse de primeira-mão, comprado diretamente da loja. As roupas e os sapatos, alguns de marca, que usava provinham de doações das patroas da mãe que tinham filhos, sobrinhos ou netos que regulavam a sua idade.

Ao sair de casa, Dimas não viu a enxerida dona Santana na porta de casa. Desejou, ardentemente, receber a notícia de que ela tivesse morrido sufocada pela língua, ou se mudara com ‘as filhinhas’, para bem longe. Chegou à praia, por volta de meio-dia. A novidade era Príncipe Carlos que fazia embaixadinhas, em frente ao quiosque do pai, envergando o uniforme do Flamengo.

- Aproveita, minha gente, pra tirar self com o futuro craque. É só aproximar. Não se acanhem. Príncipe Carlos vai atender todo mundo. Vamos lá. Meu filho ainda não fechou com nenhum clube, mas os maiores tão disputando seu passe.

Apesar do esforço de Manduca, ninguém se aproximou para fazer self com o futuro craque do futebol. Em seguida, Dimas se juntou à turma. PH estava por lá arrasado com a situação do pai, que se agravava a cada dia.

- Força, mano. – disse Lucas – Seu velho vai provar que tudo isso não passa de mal-entendido.

- Sei não, cara. Existem documentos e filmagens que provam o envolvimento. O velho deu mole. Agora tá todo mundo encrencado. Minha mãe tá se esforçando pra manter a família unida, mas tá brabo. As contas bancárias e os bens tão bloqueados.

- As contas do exterior também? – quis saber Demétrio.

- Não tem conta no exterior.

- Tô bege. – prosseguiu Demétrio – Teu velho não mandou a grana pra paraísos ficais...? Que tipo de corrupto é esse, meu povo? Taí, acho que tá na hora de criarem um curso pra formar corruptos. Se é que já não existe, né?

O comentário causou mal-estar não somente em PH, mas em toda a turma. Lucas se esforçou para consertar o estrago convidando o colega para pegar onda, porém, PH ignorou o convite; impossível pensar em alguma coisa que não fosse a prisão do pai e, consequentemente, a derrocada da família: sem grana, os empregados precisaram ser dispensados e a mãe estava cozinhando, lavando e passando roupa, enfim, cuidando da casa, o que antes seria impensável.

- No meio de tudo isso a Elisa simplesmente desapareceu. Nem o telefone ela atende. E o pior é que não tenho a menor ideia de onde ela mora. Alguém sabe?

Ninguém da turma sabia o endereço de Elisa ou tinha qualquer outra informação a seu respeito; tudo o que sabiam fora dito por ela mesma, ou seja, quase nada.

- Elisa é mesmo muito reservada. – disse PH.

- E não esquece que foi você que apresentou a garota pra turma. – disse Demétrio.

O restante da turma fez coro com Demétrio: antes de aparecer na praia, na companhia de PH, Elisa era completamente desconhecida.

- Quer saber? Saquei tudo. – disse Pedrão mostrando, mais uma vez, seu lado Sherlock Holmes – Elisa é uma multimilionária e foi sequestrada por aquele homenzinho esquisito que teve aqui na praia. Vai por mim.

Dimas não fez questão de tomar parte da conversa, no entanto, manteve-se atento o tempo todo. A informação do sumiço de Elisa acendeu o alerta; talvez os ventos estivessem começando a soprar a seu favor.

Dias depois, jornais e revistas davam conta de que novas acusações pesavam sobre o empresário Pedro Henrique Soares Alves. Um freguês comentou com o dono da banca de revistas que a família do ‘empresário corrupto’, afundada em dívidas, fora obrigada a trocar o espaçoso apartamento do Leblon por um quarto e sala, num lugar afastado do centro de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. O comentário levou Dimas a não ter mais dúvida de que o destino estava mesmo do seu lado; Elisa, quando voltasse da viagem – tinha como certo que o sumiço não passava de uma forma elegante de ela romper o compromisso –, jamais reataria o noivado com o ‘morador da Baixada’, filho de presidiário, preso por crime do colarinho branco, bem verdade, porém, presidiário de qualquer forma. Em contrapartida, e para todos os efeitos, ele era filho de um dos maiores criadores de gado do Mato Grosso, e do Brasil, ou seja, um excelente partido, detalhe que, certamente, contaria a seu favor na hora em que os pais de Elisa descobrissem que a filha estava dividida entre o ‘herdeiro de fazendas de gado’ e o ‘filho do presidiário’.

Entretanto, desde que se imiscuíra entre os riquinhos da praia, apresentando-se como fosse um deles – admirava-se da facilidade com que os convencera –, era obrigado a inventar meios para fugir de pagar contas ou assumir compromissos que envolvessem despesas de qualquer ordem. O manjado golpe dos cartões bloqueados, devido a algum acontecimento extraordinário, e o fato de andar sem dinheiro, em espécie, pois, segundo afirmava, gente do interior tinha o costume de mandar ‘anotar no caderno’ para pagar depois, eram as desculpas preferidas. Dessa forma, explorou o quanto pôde Larissa, Suzana, Jane e várias outras. Durante os relacionamentos com as três amigas da praia, por exemplo, tinha sempre desculpas na ponta da língua. Suzana e Jane nunca estranhavam o fato de o namorado estar sempre desprevenido. Na verdade, pareciam sentir prazer em bancar os programas. O mesmo não acontecia com Larissa.

- Gosto de receber flores, joias caras, que abram a porta do carro, que puxem a cadeira e, o principal, que paguem a conta. – Larissa fazia questão de deixar claro – Sem essa de mulher moderna. Sou mulherzinha mesmo. Quero ser bancada. E sou cara, queridinho. Pra me manter o homem tem de abrir a carteira. Do contrário, fico avulsa mesmo.

A saída foi se afastar da garota que, das três, era a preferida. Na real, chegou a gostar de Larissa, não tanto quanto estava gostando de Elisa, mas o bastante para ficar profundamente abalado com o fim do namoro.

PH continuou frequentando a praia. No entanto, os constantes problemas causados pela grana curta e a prisão do pai, somadas ao sumiço de Elisa, o tornaram, na opinião da turma, um chato insuportável. Além disso, Larissa, Pedrão, Lucas e mesmo o descolado Demétrio não o tratavam da mesma forma que antes. Dimas, seguindo a onda, experimentou o gostinho de esnobar o rival, pelo mesmo motivo que, com certeza, também seria esnobado, se conhecessem sua verdadeira condição social. Não demorou muito, o ex riquinho não deu mais o ar da graça.

Dimas mudou de ideia: não mais vislumbrava um casamento por interesse, mas a união feliz de dois apaixonados. Não tinha dúvida de que Elisa estivesse descansando num resort da moda, na companhia dos pais. Por outro lado, conscientizou-se de que não poderia continuar usando as velhas desculpas para justificar a eterna falta de grana. Cedo ou tarde teria de provar que fazia parte da classe dos endinheirados. Dessa vez, disposto a impressionar, planejou que assim que a garota retornasse a convidaria para um jantar romântico, num restaurante bacana. Nesse dia, alugaria um carro de luxo, usaria uma beca elegante, que tomaria emprestada com o Kiko – um conhecido do morro que trabalhava com figurino para cinema e quebrava seus galhos toda vez que precisava se apresentar bem em festas e eventos importantes –, e, com a Duda, travesti com salão montado no morro, daria um bom trato no visual: cabelo, barba, limpeza de pele, unhas, ou seja, um ‘upgrade’ para apagar qualquer possível vestígio de pobreza. Mas como financiaria o jantar? Faltava grana até para manter a conexão de internet do celular. O aparelho, proveniente de receptação, até fazia boa figura diante dos colegas, mas, na maior do tempo, servia apenas para receber chamada. A mãe, quando viu aquele aparelho vistoso, desconfiou de sua procedência. No entanto, pouco interessava os pruridos de honestidade da mãe; o importante era ter um aparelho digno do filho de um fazendeiro rico para apresentar. Além do celular, roupas, tênis, sapatos, chinelos, óculos de sol, adereços em geral, nem precisavam ser originais ou mesmo de primeira mão, desde que fizessem boa figura, claro.

- Por que não avisou, mãe? Eu ia te buscar lá embaixo.

Abadia sorriu embevecida por ver o filho, que a esculachava o tempo todo, oferecer ajuda. A explicação para o ataque de generosidade estava nas sacolas repletas de roupas, calçados e artigos masculinos, quase sempre de marcas caras, que trazia da casa das patroas. Nessas ocasiões, única por sinal, Dimas não reclamava do fato de a mãe ser uma simplória diarista; das doações que ela recebia extraía os figurinos do personagem que interpretava na vida.

Ao entrar em casa, naquele início de noite, Dimas deu de cara com Garrincha, escarrapachado no sofá. A mãe, que preparava alguma coisa no fogão, diferentemente do que fazia todos os dias, não tomou conhecimento de sua chegada.

- Que bom que chegou a tempo de jantar comigo, brother. Nunca mais deu notícias. Daí, eu vim saber como andam as modas. Vamos lá fora. – disse Garrincha, já de pé – Enquanto dona Badia prepara o rango, a gente troca uma ideia.

Do lado de fora da casa, Garrincha continuou:

- Dona Badia é mulher de responsabilidade. Coisa rara neste mundo. Pedi pra fazer um rango pro pessoal do movimento e ela topou na hora. Admiro gente assim, pau pra toda obra, sabe como é?

- Minha mãe... Jantar pro pessoal do movimento... Que conversa é essa? – estranhou Dimas.

- De repente, tive essa ideia. Aposto que se amarrou, né? Daqui a pouco, o bando tá chegando aí. Hoje é o aniversário do Pelado. Quero fazer um afago no muleque. Ele tá com a gente desde quase bebê. Sabia que ele foi abandonado pela mãe ‘cracuda’ e que nem sabe quem é o pai, né?

- Que papo é esse, Garrincha? O morro inteiro sabe que o garoto foi abandonado pelado, numa viela. Qual é a novidade? E essa história de aniversário? Por que tem de ser na minha casa?

- Qual é, irmão? Deixa escândalo. Esqueceu que tá em falta com o movimento?

- Já disse que vou resolver.

- Quando? No dia de ‘são nunca’? Acabou o tempo, acabou o caô, meu bom. Daqui pra frente, vai ser do meu jeito. Pra começo de conversa, quero dona Badia no movimento. Acabei de decidir. A gente come muito mal por lá. Como ela tem fama de boa cozinheira, pensei: por que não recrutar a progenitora do amigo Dimas pra ser a cozinheira? Ideia do caralho, não acha?

O barulho provocado pela aproximação do bando que, como anunciou Garrincha, vinha participar do jantar, impediu Dimas de reagir.

- Olha a alegria do Pelado. – disse Garrincha – O muleque tá que não se aguenta. Primeira festa de aniversário que ganha na vida. Tenho ele como um filho, sabia?

Pelado, garoto de cerca de quatorze anos, vinha à frente do bando, ostentando o fuzil que acabara de ganhar do protetor.

- Pode entrar que a casa é nossa, meu povo. – disse Garrincha abrindo a porta da casa para dar passagem ao bando – Entra e se abanca.

Dimas tentou ficar do lado de fora do barraco, mas foi constrangido a entrar, por Garrincha. Dentro do barraco, num discurso improvisado, o chefe do bando destacou as qualidades do aniversariante e sua história de garoto abandonado, salvo pelo movimento que, ao contrário do que diziam as más línguas, tinha preocupações sociais.

- A gente pega essa garotada ociosa e faz o quê? Dá ocupação, tira da vagabundagem...

O discurso só foi interrompido quando a dona da casa anunciou que a comida estava pronta para ser servida.

- Muito boas falas, minha santa senhora. – disse Garrincha – Tá todo mundo com a barriga nas costas. Olha a cara deles. O que tá esperando pra cair de boca, macacada?

Apesar de ruidoso, o grupo teve receio de ‘atacar’. Então, Garrincha ordenou que dona Abadia servisse os pratos.

- E aí, Dimas? – disse Garrincha ao notar que o filho da dona da casa não se servira – Não vai dizer que precisa que a mamãezinha faça seu prato?

- Desculpa, filho. Pensei que... – disse Abadia – Mas pode deixar. Eu vou fazer seu prato. Faço isso a vida inteira, né?

- Não precisa, mãe. Tô sem fome.

- Tem problema não, dona Badia. Se o garoto da zona sul não quer se envolver com os favelados é melhor que sobra mais, né não?

O bando, que comia em silêncio, irrompeu em grande gargalhada, somente interrompida quando, de repente, dona Santana entrou na casa, acompanhada dos filhos.

- O que é isso, Badia? Deu de fazer festa e não convidar a vizinhança?

- Não tem festa nenhuma, dona Santana. É só...

- A dona da casa não convidou – disse Garrincha interrompendo Abadia –, mas eu, Garrincha, convido a senhora e as suas, quero dizer, seus filhinhos, pra participar do jantar de aniversário do Pelado. Pode se abancar que o rango tá liberado.

- Que novidade é essa, cabra? Deu pra invadir casa de trabalhador?

- Falou bem, dona Santana, porque aqui só tem trabalhador. Inclusive, gostaria de informar, em primeira mão, que a dona Badia, grande representante da classe trabalhadora deste país, será, a partir de amanhã, a cozinheira do movimento.

- Brigado pela deferência, seu Garrincha. Mas eu não posso não. Tenho compromisso a semana inteira com as madames da zona sul. – disse Abadia, sem digerir o que acabara de ouvir – Deus me livre deixar as patroas na mão. Elas são muito boas pra mim. E o trabalho é meu ganha-pão. Como é que vou viver sem as minhas faxinas?

- Isso não é problema meu, dona Badia. – respondeu Garrincha – Teu filho tá me devendo. Aliás, tá devendo pro movimento. E como tem se negado a comprimir o compromisso feito sujeito homem, a senhora, como mãe dele, vai... Aliás, a presença do movimento aqui hoje, além de comemorar o aniversário do estimado Pelado (o adolescente sorriu de orelha a orelha, mostrando os dentes encavalados), tem o objetivo de experimentar o tempero da senhora. E pelo jeito o bando aprovou, com louvor, não é não?

O bando, em nova algazarra, não economizou elogios ao ‘rango’ de dona ‘Badia’.

- Diante de toda essa manifestação, a senhora tá mais que aprovada. E a partir de amanhã, dá expediente na sede do movimento.

- Isso quer dizer que tua mãe vai pagar por mais uma besteira que tu fez, Dimas? Se emenda não? – disse dona Santana – Badia não tem nada que ver com tuas trapalhadas, rapaz. O único erro dela é trabalhar de sol a sol pra te sustentar.

- Se mete nisso não, velha fuxiqueira. Vai cuidar de suas ‘filhinhas’. – disse Garrincha – Bora, pessoal. A gente já fez o que tinha pra fazer aqui. Até amanhã, dona Badia. E nada de dar furo, hein? A saúde do teu filhinho tá em tuas mãos. Se é que a senhora me entende. Além do mais, não vai ficar bem eu bater na porta das ‘madames da zona sul’ à tua procura, né? O que a senhora me diz?

Tão logo Garrincha saiu com o bando, Dimas correu para a sede do movimento; tencionava reverter a situação.

- Deixa minha velha fora disso, cara.  – ele implorou, ajoelhando aos pés do traficante – Sabe que é com as faxinas que ela paga as contas, coloca o rango na mesa, compra remédio... Sem isso, ela não tem como viver.

- Não tem conversa, camarada. Minha decisão é soberana e não tem chororô. Se quiser um conselho: aceita que dói menos.

- Alivia pra velha, cara. – insistiu Dimas – Ela é uma mulher do bem. Nunca fez mal pra ninguém. Veja a figura triste e acabada que é.

- Se o filho dela não vê, por que eu tenho que ver? E levanta daí. Deixa de ser otário. Age como sujeito homem. Pega a mercadoria e cai na pista. Tenho certeza de que em pouco tempo tu consegue a grana pra me pagar e ainda fica fortalecido. Vai poder até tirar onda. É só agir com a cabeça. Metido no meio dos playboys como é tu tá com a faca e o queijo na mão, camarada. Só toma cuidado pros hôme não te pegar. E se acontecer, oh, tu não me conhece, nem nunca me viu. Sabe o que acontece com X9, não sabe?

Garrincha engatilhou a arma, que trazia do lado, e disparou para o alto, prometendo atirar para valer da próxima vez. Dimas saiu da sede do movimento tão perturbado que não notou que dona Santana estava na porta de casa, esperando seu retorno. Pela manhã, da cama, ouviu a conversa da mãe, no ultrapassado aparelho celular, com uma das patroas.

- Hoje, infelizmente, não posso ir, dona Zélia. Não vou poder mesmo. A senhora vai desculpar. Não tá acontecendo nada comigo, não senhora. É coisa minha. Eu sei que seu filho, doutor Bartolomeu, vem do estrangeiro e a senhora precisa da casa em ordem. Ele é médico muito importante, faz tempo que não visita o Brasil, a senhora me falou. Mas, olha, conversa com a dona Alerte. Talvez seja melhor botar outra faxineira no meu lugar. Acho que não vou poder voltar tão cedo. Às vezes as coisas tomam um rumo que a gente não espera, dona Zélia. Desculpa o mau jeito, mas vou ter que desligar.

“O problema é meu, mãe. Deixa que eu resolvo”, Dimas ensaiou dizer. Não teve forças. Durante a infância, alimentava a fantasia de que de uma hora para outra alguém apareceria do nada e o resgataria da vida desgraçada que levava ao lado da mãe. Na adolescência, passou a imaginar que o pai, que nunca conhecera, era um milionário que surgiria do nada para abrir-lhe as portas de um mundo de riquezas e encantos. Mais tarde, entendeu que o pai idealizado jamais bateria à sua porta e que somente mudaria de vida por meio de algum plano mirabolante ou um golpe de sorte. E, pela primeira vez, considerou a possibilidade de entrar para o tráfico. No entanto, a vida marginal não interessava; queria grana, poder, mas também liberdade, visibilidade. Então, o pai que nunca deu as caras ou quis saber dele ganhou vida através do criador de um gado do Mato Grosso, chamado Paulo Otávio Capanema, transformando o favelado Dimas da Silva, em Dimas Capanema, herdeiro de inúmeras fazendas de gado.

Bom domingo e excelente semana.

Esperança, fé, amor e GRATIDÃO.

 

outubro 12, 2024

12 de outubro - pureza e santidade.

 Jesus disse que precisamos ter a pureza de uma criança para entrar no reino dos céus. Ao mesmo tempo, a igreja nos ensina que Maria, a mãe de Jesus, foi assunta aos céus, de corpo e alma. Neste dia 12 de outubro quando, no Brasil, celebramos o dia da padroeira, Nossa Senhora Aparecida, também comemoramos o dia das crianças. 

Nada mais justo, não é mesmo? Afinal de contas, a partir do ensinamento do mestre sabemos que a pureza das crianças as torna aptas para entrar no reino dos céus, para onde sua mãe fora levada em corpo e espírito.

Independente de qualquer coisa, é sempre tempo de investirmos em nossa pureza de alma, em buscar não nos tornar santos, mas, pelo menos, nos aproximar de algo que nos torne menos presos às coisas do mundo.

Nosso caminho no mundo pode ser menos árido se, em algum momento, pararmos para prestar atenção naquilo que realmente vale a pena, naquilo que toca os nossos corações de forma tal que nos transforme em agentes da paz e do amor que tanto necessitamos em nossos dias.

Ser criança não é agir de maneira ingênua ou descompromissada, pelo contrário, é ver o mundo e as pessoas que vivem ao nosso lado como parte de nós mesmos, como seres que merecem todo o bem e toda a graça.

Que nos aproximemos cada vez mais da criança que existe dentro de nós que, com certeza, nos levará a habitar os céus.

Bom final de semana.

Esperança, fé, amor e GRATIDÃO.


outubro 06, 2024

A mão invisível - 2° Capítulo.

Neste segundo capítulo do livro 'A mão invisível', Dimas, após sofrer mais uma decepção em sua busca por uma noiva rica, conhece Elisa e vê nela uma nova oportunidade de atingir seu objetivo.

 

Capítulo 2

 

O incômodo que Dimas (da Silva) sentia quando via PH rodeado de garotas, em parte, se dava pelo fato de acreditar que todas fossem filhas de milionários – aliás, ele pensava isso de praticamente toda garota da zona sul –, e também porque, tão logo acabava a curtição com o riquinho, elas simplesmente desapareciam da área e, consequentemente, de seu radar. Naquele momento, entretanto, o que realmente estava tirando-lhe o sono era a dívida que tinha com Manduca; usara todo o arsenal de desculpas de que dispunha, porém, diferentemente das outras vezes, não estava surtindo efeito.

- Não tem outro jeito, Manduca. – disse Jana – A gente vai ter de acionar o Valdomiro.

- Acha mesmo necessário? – reagiu Manduca – Não é precipitado, não?

Acionar o Valdomiro, figura que estava sempre por ali, sob o disfarce de mero banhista, significava encrenca à vista. Afinal de contas, não era novidade para ninguém que toda vez que surgiam problemas entre donos de quiosques e fregueses, ou quem quer que fosse, Valdo, como era mais conhecido, aparecesse, acompanhado de seu grupo, para ‘resolver’ a parada. A cara de poucos amigos, emoldurada pelo peitoral, naturalmente avantajado, a barriga proeminente e a sunga vermelha, sua marca registrada, que se destacava na pele retinta, o cabelo oxigenado, somados a voz rouca e os chamativos óculos espelhados, compunham a imagem que metia medo por si só.

- O garoto vai resolver a parada antes disso, Jana. – disse Manduca, com ar preocupado – Ele não é louco de faltar com a palavra.

Desconfiado de que o tempo fechasse, Dimas tratou de desaparecer não somente do quiosque, mas da praia e arredores. Somente uns quinze dias depois, ele retornou. Para todos os efeitos, no entanto, a ausência se deu devido a uma viagem de emergência que fizera para casa dos pais, no Mato Grosso.

- Desculpa aí. Não tive tempo nem cabeça pra avisar. Um chamado da família... Nunca se sabe, né? Mas graças a Deus, agora tá tudo bem.

- E a minha grana? – perguntou Manduca, pouco interessado em fofoca de família – A tolerância chegou ao fim, companheiro. Se não trouxe a grana, sinto muito, mas o Valdo vai entrar em ação. Liga pra ele, Jana. Diz que é aquele assunto que a gente já...

Jana pegou o aparelho celular no bolso do avental, porém, antes que completasse a ligação, viu o freguês inadimplente colocar o pacote que trazia consigo sobre o balcão do quiosque.

- Aqui tá o pagamento. – disse Dimas.

Em seguida, ele apresentou um relógio de bolso, modelo antigo, preso a uma corrente dourada,

- Essa joia pertenceu ao meu bisavô, depois ao meu avô, que passou pro meu pai, que acabou de passar pra mim. Tá na família há várias gerações. Peça única. Vale uma nota preta. Minha avó paterna conta que a avó dela garantia que foi Dom Pedro II que deu de presente para o bisavô dela. Só pra ter uma ideia da importância da peça. Ah, ia me esquecendo, a corrente é ouro puro.

- E o que isso tem a ver com a tua dívida? – perguntou Jana.

- Tudo a ver, dona Jana. Quero que fiquem com essa, joia pra saldar meu débito. Apesar de tudo o que representa pra mim, meu pai e toda a minha família.

- Isso é ouro de verdade? – perguntou Jana.

- É o que minha avó diz, dona Jana. Seja como for, pode estar certa de que ele vale, pelo menos, umas cem vezes o valor da minha dívida na barraca. Mas fique claro que é só um empenho que tô fazendo. Acima de tudo, este relógio tem valor sentimental, sabe? Tão logo o velho negocie um lote de bois e libere uma grana, eu vou pegar de volta. Aliás, ele nem pode sonhar que empenhei essa relíquia. Na verdade, o velho acha que o relógio tá bem seguro no cofre da fazenda.

Valdomiro chegou ao quiosque, com seu séquito, despertando a atenção de todos. Tão logo viu o relógio, o ‘leão de chácara’ esqueceu as ameaças e cresceu os olhos.

- Vamo fazer um rolo. – ele disse a Dimas num à parte – Quanto tu quer?

Jana percebeu o interesse de Valdo e se adiantou:

- Se o relógio é tão valioso, Manduca, então a gente...

- A gente aceita, né, Jana? – confirmou Manduca – Mas, veja bem, se não morrer na grana logo, passo adiante. O Valdo tá interessado, não é Valdo?

Livre da pressão, Dimas retomou a caçada. No entanto, o sempre bem informado Demétrio não tinha boas notícias: PH acabara de apresentar Elisa à família.

- Todo mundo ficou deslumbrado. O que não me surpreende. Elisa é um encanto de garota. E do jeito que as coisas estão indo o casamento é questão de tempo. Mas tô arrasado, sabe? Nunca pensei que o PH faria isso comigo. Só não corto os pulsos porque a garota é linda. Linda nada, ela é deslumbrante. Não acha?

- Sei lá. Nem conheço direito. – disfarçou Dimas.

- Azar o seu. Perdeu o momento em que o casal sensação firmou compromisso, num luau animadíssimo, aqui na praia. Foi um escândalo.

- A família da garota veio?

- Família!? Não tem ‘família’, apenas o pai e a mãe, que estão fazendo um tour pela Europa, não tá sabendo? É filha única, a sortuda.

“Filha única!”, repetiu Dimas, em pensamento; o fato de os pais da garota, de quem sabia apenas o primeiro nome, estarem viajando pela Europa, somado ao fato de ser filha única, só fez aumentar o interesse. Não havia mais dúvida de que Elisa possuía todos os requisitos para ser a esposa que procurava.

- E o casamento? – ele sondou – Tem ideia de quando vai ser?

- Elisa faz questão de casar somente na presença dos pais; quer uma grande festa. O problema é que os pais não voltam tão cedo. A mãe deve aproveitar a viagem pra fazer um tratamento de saúde. Tratamento esse que eu desconfio seja, na verdade, uma levantada básica.

Enquanto Demétrio falava, a bandeiras despregadas, Dimas planejava: PH, volúvel como ninguém, logo se ligaria em outra garota e deixaria o caminho livre. No mais, torcia para que o tratamento da mãe da garota levasse tempo suficiente para que pudesse melar o namoro. O único senão era que por mais que se esforçasse a garota continuava ignorando sua pessoa. Foi então que, estrategicamente, ele grudou em Demétrio; acreditava que dessa forma se aproximaria da garota.

- Legal seu lance com o Demétrio. – Elisa comentou certo dia – Tão juntos há muito tempo?

- Qual é? Nada a ver. – Dimas reagiu ao notar que o ‘tiro havia saído pela culatra’ – A gente é só amigos. Não que eu tenha preconceito. Apesar de ter sido criado no interior do Mato Grosso, sou liberal. Acho que cada deve viver do jeito que quer. Mas, espera aí, sou espada, cara.

O desapontamento, porém, trouxe certa satisfação; independente de qualquer coisa, a garota notara sua presença. Desfeito o mal entendido, estabeleceu-se alguma intimidade entre eles. A proximidade despertou ciúmes em PH, um incentivo para que se tornasse presença constante em todos os lugares frequentados pelo casal.

- Para me de secar, cara. – reclamou Elisa – Não sai do meu pé.

- O que eu posso fazer? Você me deixa louco. Penso em você o tempo todo. Acho até que... – defendeu-se Dimas – E depois o PH tá noutra, não notou?

Num canto da sala, munido do inseparável violão, o riquinho dedilhava uma música, rodeado de garotas. A perturbação de Elisa diante da cena deixou claro para Dimas que a relação não andava bem. Razão mais que suficiente para que intensificasse ainda mais o assédio. A garota mordeu a isca e, em pouco tempo, nasceu um ‘rolo’, que se transformaria num relacionamento secreto. Os encontros, porém, não satisfizeram Dimas. “Sem essa de ser o ‘outro’. Meu lance é casamento, preto no branco”, ele pensou.

- A parada com o PH é pra casamento, não é? Por isso não, eu também caso contigo, até agora mesmo se quiser. Bora pra um cartório. A gente é maior de idade. Nada impede.

- Você é louco? – reagiu Elisa – Ninguém casa assim. Pra viver de quê? Morar onde?

- Na cobertura de seus velhos, ora. Não vive reclamando de solidão? Pensa comigo: a gente fica morando na cobertura de seus pais até eles voltarem da Europa. Nesse tempo, eu me entendo com meu velho e a grana volta a cair na minha conta. Garanto que ele vai ficar superfeliz quando souber que resolvi virar um homem sério. Além disso, a família toda vai te adorar. Não tenho dúvida que seu Paulo vai comprar uma big cobertura pra gente, como presente de casamento. É claro que eu faço questão que seja na Vieira Souto, pra você ficar perto de seus pais. E então? Topa?

Despeito de todo esforço, Elisa não abriu mão do noivado com PH. Dimas, então, entendeu que seria necessário buscar um meio mais eficiente de tirar o rival do caminho, sobretudo depois que Elisa revelou o desejo de se mudar para a casa dele. “Elisa tem algum interesse em manter esse relacionamento que não tô atinando qual seja”, ele especulou, depois de, em vão, tentar fazê-la desistir da mudança. Com isso, os encontros, antes frequentes, praticamente deixaram de acontecer; Elisa alegava dificuldades para se livrar da marcação cerrada dos sogros, dos cunhadinhos, até mesmo dos empregados da casa e, claro, do noivinho apaixonado.

Sentindo que estava perdendo a chance de conquistar a milionária, Dimas viu que era necessário agir. Depois de muita maquinação, surgiu a ideia que lhe pareceu perfeita: atrair PH para uma emboscada. Na verdade, seria um assalto simulado, onde o rival levaria um tiro fatal. Afinal, estava pronto para o tudo ou nada.

Durante a caminhada por Copacabana, dias depois, ao passar diante de uma banca de jornal, uma manchete chamou atenção: “O empresário Pedro Henrique Soares Alves foi despertado por volta das seis horas desta manhã com agentes da Polícia Federal em sua porta. Os policiais cumpriam um mandado de busca e apreensão, em mais uma rodada da operação deflagrada com o objetivo de apurar evidências de superfaturamento em obras do governo. O empresário é suspeito de fazer parte da quadrilha que vem fraudando os cofres públicos. Fontes dão conta de que no apartamento foram encontrados indícios que compravam os crimes”.

A reportagem, que se encerrava informando que o empresário fora levado preso pelos agentes, poderia ter passado despercebida, pois se tratava de mais um escândalo de corrupção, envolvendo políticos e empresários, tão comuns no Brasil, não fosse o preso da vez ninguém menos que o pai de PH, seu empecilho na conquista de Elisa. Passado o efeito surpresa, Dimas tentou mensurar o terremoto que a notícia provocaria. Não foi difícil intuir que acabara de encontrar o melhor meio de se livrar do rival; seria mais que óbvio que Elisa, assim que tivesse conhecimento do escândalo, poria fim ao noivado. Ainda que não fosse por si seria pelos pais que, com certeza, não aceitariam vê-la unida ao filho de um corrupto, publicamente denunciado.

Quando retomou a caminhada, Dimas assobiava, cantava, enfim, não cabia em si de contentamento; o destino resolvera seu problema, sem que precisasse se comprometer.

- Tá todo mundo chocado com a notícia. – disse Pedrão assim que viu Dimas – Maior vacilo do velho do PH, não é não? O lado bom de tudo é que a Elisa tá firme do lado do PH.

O semblante de Dimas, antes reluzente de felicidade, murchou, como flor em dia de sol escaldante; não podia conceber que Elisa continuasse metida na casa de PH, depois de tudo.

- O que tá fazendo aí? – ele cobrou – Sai daí antes que seus pais tomem conhecimento dessa patifaria, Elisa. Gente como nós não se mete com ladrão, mesmo que seja do colarinho branco.

Os argumentos de nada valeram; Elisa encerrou a ligação decidida a permanecer ao lado noivo que, segundo suas palavras, precisava de apoio.

Em casa, Dimas encontrou a mãe desesperada: a caixa que, por anos, guardou nos fundos do guarda-roupa simplesmente desaparecera.

- Caixa, guarda-roupa... Não sei do que tá falando, sua louca. Além do mais, o que eu faria com uma caixa que não vale nada?

Abadia não revelou detalhes sobre o conteúdo da caixa, ou mesmo que, muitas vezes, teve necessidade de se desfazer dela, porém, não teve coragem. “Sem o relógio, tudo se apaga. É como se o que vivi não tivesse passado de um sonho”, ela pensou.

- Fala, escrota. – continuou Dimas, impaciente diante do silêncio da mãe – Abre o jogo. Por que a caixa era tão importante? O que tinha dentro dela? Presentinho de algum amante, velha assanhada?

- Não é isso, filho. Uma patroa mandou jogar no lixo, mas achei bonita e resolvi guardar. Mas não tem a menor importância. Vai ver joguei fora e esqueci. Acho que foi isso.

Dimas sabia que a mãe era cheia de esquisitices, no entanto, vê-la tão perturbada o levou a pensar que o relógio tivesse pertencido ao pai, que nunca conheceu. A ideia de ter um pai nunca foi de fato considerada. Antes, sempre fora descartada, pois acreditava que certamente seria uma figura tão desprezível quanto a mãe. “Nem vale a pena pensar nessa hipótese. Sem dúvida, é um miserável, um indigente que vive pelos becos de alguma favela, arrastando um corpo doente”, ele pensou, mantendo os olhos fixados na mãe, que permanecia à sua frente. Por vezes, até tinha vontade de ser um filho que, em vez de exigir o que mãe não podia lhe dar, que cuidasse dela, que a livrasse de arrastar o corpo frágil pelos becos e ladeiras do morro, sempre a caminho das exaustivas faxinas. Porém, a revolta o dominava a cada dia mais, superando qualquer possibilidade de afeição.

Mais tarde, completamente esquecido do estorvo que recebera como mãe, Dimas se voltou para a questão que estava tirando-lhe o sono: a insistência de Elisa em manter o relacionamento com PH, mesmo depois que o pai do rapaz fora preso, acusado de corrupção. Nenhuma argumentação era convincente bastante para fazer a garota mudar de ideia. Quando apelou para os pais, a resposta que ouviu foi que eles não tinham o hábito de fazer julgamentos precipitados. “Por enquanto, são apenas meras acusações”, teria dito o pai, certo de que tudo não passava de um mal entendido.

Como fazia nos momentos de crise, Dimas tomou o caminho da sede do movimento. Mais uma vez, ele relevou a Garrincha ter encontrado a garota que o livraria da pobreza.

- Então, qual é o grilo? – disse Garrincha – Casa com a moça e vai desfrutar da vida boa, camarada. Seja feliz. O que tá esperando?

- Que um babaca saia do meu caminho.

Depois um tempo, ele completou:

- Não preciso dizer que conto com o mano pra isso, não é?

- Qual é, cara? Que papo doido é esse? Tá me tirando, é? Eu apenas comercializo entorpecente, não sou matador de aluguel.

- Não é bem apagar o cara que eu pretendo. Tenho um plano. Ouve isso: eu planto uma muamba na mochila do cara, aviso a cana, que vai, dá o flagrante, e enquadra. Sacou? Simples assim. Sem morte, sem complicação.

- E, pelo que entendi, tu quer que eu forneça a ‘mercadoria’ do flagrante. Acertei?

- Justamente.

O olhar de Garrincha, subitamente, ganhou um brilho diferente: ainda não sabia como, mas algo dizia que ali estava a oportunidade que sempre buscou para arrebanhar o amigo de infância para o tráfico.

- Tu sabe que bagulho não dá em árvore, né? – ele disse – Esclarece aí: quem vai morrer na grana? O playboy é que não vai ser, né?

- Aí é que tá o lance. Pago quando casar com a ricaça. Não vai demorar, garanto. A gata já tá na minha. Dessa vez não falha.

- Sei não, cara. Esse tipo de coisa tem muita implicação. E se der errado? Não posso me arriscar numa loucura com pouca chance de dar certo.

- Em nome da nossa velha amizade, cara. – apelou Dimas – A gente se conhece desde criança. Sabe que não vou dar furo contigo.

- Vai lá. – disse Garrincha, depois de simular que estava pensando seriamente no assunto – Mas tem uma condição. Aliás, duas condições. A primeira é que não quero meu nome envolvido e, a segunda, se o plano falhar ou a mercadoria extraviar, o pagamento só pode ser feito com trabalho na boca. Ou seja, tu vem trabalhar aqui. Tamo entendido?

Confiante no sucesso do plano, Dimas concordaria com aquelas e quaisquer outras condições que Garrincha impusesse; o que interessava era tirar PH do caminho, nada mais.

- Quando eu pego a mercadoria? – ele perguntou, com incontida euforia.

- Calma! Vou precisar de um tempo. Uma semana, pelo menos. Tô esperando um carregamento pra esses dias, se nada falhar. A repressão tá endurecendo cada vez mais, tá ligado? Todo cuidado ainda é pouco.

Enquanto esperou pela ‘mercadoria’, Dimas continuou frequentando a praia do Leblon. Elisa não apareceu por lá, nem atendeu aos seus insistentes telefonemas, o que fez com que o desejo de eliminar o rival aumentasse consideravelmente.

- Elisa praticamente já faz parte da família do PH. O casamento ainda não rolou porque PH-pai continua preso. Assim que resolverem essa parada...

O comentário de Pedrão reforçou a urgência da execução do plano. Para que isso acontecesse, porém, o rival precisava aparecer na praia. Só assim poderia armar o flagrante. A possibilidade de plantar a droga em sua casa chegou a ser considerada, mas foi abandonada; acabaria levantando suspeita.

Quase um mês se passou sem que o casal desse as caras na praia. O sumiço deixava claro que o relacionamento seguia firme. “Perdeu, malandro! Desiste e parte pra outra”, Dimas se aconselhou; não era a primeira vez que se via obrigado a desistir de uma garota. Dessa vez, entretanto, sentia que fosse algo mais que o simples desejo de se dar bem; Elisa não representava somente uma ponte para uma vida melhor. Na verdade, estava gamado de um jeito que nunca estivera por nenhuma outra garota. A constatação o deixou, mais que assustado, mortificado; não fazia parte dos planos se apaixonar. A esposa milionária seria mero trampolim para atingir as altas esferas da sociedade, nada mais que isso. Uma vez casado, tiraria o máximo que pudesse da garota, dos pais e de quem mais estivesse dando sopa por perto. Então, pularia fora. “O casamento é um negócio. Essa garota não pode estragar meus planos. Não pode”, ele murmurou alheio ao papo que rolava solto entre Suzana, Larissa e Jane, em rara aparição. As três, em momentos distintos, foram seus alvos. Jane, das três, era a única que ele ainda tinha esperança de levar para o altar. Não por acaso, a mais rica das três. Infelizmente, a tatuadora insistia em morar num barraco, no Vidigal, como se fosse uma pessoa comum, recusando a montanha de dinheiro do pai. “Pensando bem, não custa tentar mais pouco”, ele pensou. E, num esforço para se livrar do fantasma de Elisa, ele se preparou para mais uma investida sobre Jane. No final do dia, em vez de ir para casa, tomou o caminho do Vidigal, e por lá acabou ficando.

- Tava pensando aqui, amor. A gente tá morando junto há um tempo e eu nem conheço sua família. Sabe como é, sou do interior... Lá não é como aqui. A gente faz questão de conhecer a família da namorada, pedir a permissão do pai... Queria fazer a coisa certa, tá ligada? Quando vai me apresentar pra família?

- Deixa minha família fora disso, por favor. – disse Jane, evitando o assunto a qualquer custo.

No entanto, obstinado a se aproximar da família da namorada, sobretudo do futuro sogro, Dimas vestiu a melhor beca que tinha e foi até a casa, uma bela mansão, no Alto da Boa Vista. Somente depois de enfrentar uma verdadeira barreira humana, ele conseguiu ser recebido. Para sua surpresa, o pai da garota se mostrou feliz de saber que a filha estava namorando um rapaz ajuizado, preocupado em conhecer sua família.

- Foi Janinha que te mandou me procurar? – o empresário perguntou.

- Sim e não. – Dimas gaguejou – Ela ainda tá meio sem jeito. Sabe como é...

- Sei sim. Minha filha é cabeça-dura. Saiu a mim. Não nego. Também não sou fácil. Cadê ela? Não veio com você?

Desejoso de ter a filha de volta a casa, o empresário Alaor Cavalcante agarrou a oportunidade de reaproximação. E, sem desconfiar das intenções do futuro genro, abriu-lhe as portas da casa e do coração. Dimas se deslumbrou com tudo: a mansão, os carros, os frigoríficos e seus escritórios, centenas de empregados, prontos para servi-lo tão logo oficializasse a união com a herdeira, e mais o que não viu, mas sabia que existia: tudo seria seu, bastava convencer Jane a conviver pacificamente com o pai e, claro, aceitar seu precioso dinheirinho.

Há meses sem notícias, Abadia – após perambular à sua procura pelas ruas de Ipanema e Leblon, como fazia quando ele, criança, sumia de casa – temia que o pior tivesse acontecido.

- Meu Dimas nunca ficou tanto tempo sem dar notícia, dona Santana. – ela desabafou com a vizinha – Tô muito preocupada.

- Vazo ruim não quebra, mulher. E notícia ruim voa. Se tivesse acontecendo alguma desgraça a gente já sabia. Não se aperreia. Dimas tá é de desfrute com alguma moça rica da zona sul. Vai por mim. Mas se é pra te aliviar seu coração, eu mando os meninos dar uma averiguada por aí. Aliás, eu vou mandar logo dar olhada no IML. Não que eu teja agourando o menino. Nunca se sabe, não é?

A conversa das vizinhas foi interrompida pela chegada repentina de Pelado, garoto que, após ser abandonado pela mãe, fora criado pelas vielas do morro de onde, naturalmente, acabou capturado pelo tráfico.

- Que qui quer aqui, muleque? – adiantou-se dona Santana – Toma seu rumo. Coisa feia ficar ouvindo conversa.

- Garrincha mandou dizer que o negócio do Dimas tá esperando por ele lá no movimento, dona Badia. É pra ele ir buscar. – disse o garoto, desaparecendo em seguida.

- Que tipo de negócio teu filho tem com essa gente? – indagou dona Santana.

Abadia não soube o que responder.

Enquanto isso, acreditando estar praticando uma boa ação, Dimas chegava ao barraco-estúdio de tatuagem de Jane, na companhia do futuro sogro. 

- Fora daqui. – disse Jane, assim que viu o pai entrar em casa, acompanhado do namorado – Fora da minha casa, os dois.

Diante da violenta reação de Jane, não restou outra saída para o caça-dotes senão voltar para o único lugar que de fato tinha na vida, a casa da mãe. 

- Por onde andou, filho? Por que ficou tanto tempo sem dar notícia? Não faz ideia de quanta coisa ruim passou pela minha cabeça. – disse a mãe – Parece tão magro. Tem se alimentado direito? Senta aí. O que quer comer? Diz que eu faço num minuto.

O arremedo de filho-pródigo não se deu ao trabalho de justificar a longa ausência. Na cabeça martelava o fato de ter, pela segunda vez, perdido a chance de levar Jane para o altar.

A fossa foi grande. Não exatamente por Jane, mas por Elisa; não tinha como negar que a garota conquistara seu coração de tal maneira que não mais se sentia motivado a procurar candidatas nas quais vislumbrasse a possibilidade de realizar seu intento de subir na vida.

- Garrincha deixou aí esse pacote. – disse Abadia fazendo as recomendações de sempre, ou seja, que o filho não devia se envolver com a gente do tráfico, pois sabia muito bem no que ia dar – Não esquece o que aconteceu com o Vaguinho...

Dimas deixou a mãe falando sozinha e correu para a sede o movimento, aonde chegou pagando para o amigo de infância.

- Qual é, meu? Tá me tirando de otário? – reagiu Garrincha – Baixa a bola! Acha que tenho todo o tempo do mundo? Não esqueça que eu cedi a mercadoria com a condição de, se a parada desse errado, tu trabalhar comigo. E, pelo jeito, deu ruim, não deu?

- Não é bem isso. Tive uns contratempos. O pai do cara, acredite se quiser, foi preso nesse negócio aí de crime do colarinho branco. Deu no jornal e tudo. Aí, o maluco vazou da praia. Tá morto de vergonha do lance do pai. Até porque, a galera não perdoa. Cai em cima sem dó nem piedade. Daí, eu não tive como executar o plano, tá ligado?

- Tenho nada a ver com isso. Pra mim, vale o combinado. E combinado não sai caro.

- Alivia aí, irmão. O que eu vou fazer com a mercadoria?

- Dá seus pulos, se vira.  A mercadoria de volta, eu não aceito. Se não vai mais foder com a vida do riquinho, bom pra ele. Mas pensa no lado bom da coisa. Agora tu tem material pra fazer uma grana. E, veja bem, sem precisar dessa babaquice que é azarar gatinha rica.

- Pela nossa amizade, Sinval. Sabe que vida de traficante não tem nada a ver comigo e nem contigo, que eu sei muito bem. Seu lance era fazer carreira no exército, lembra?  E eu quero ser bacana, viver nas altas rodas. Tráfico tá fora de questão.

- Não tem esse papo de Sinval, exército, porra nenhuma. Sou o Garrincha, traficante, sujeito homem. E me orgulho disso pra caramba. E isso aqui é quebrada de morro, não é prainha de playboy não!  Se não arrumar a grana, vai rodar. Tenho dito. – decretou Garrincha.

 

Bom domingo e excelente semana.

Esperança, fé, amor e GRATIDÃO. 

 

 

 

 

 

 

 

outubro 05, 2024

Mundo sem divisões. - O voto é nosso.

Neste domingo temos o dever de comparecer às urnas para escolher prefeitos e vereadores que deverão governar nossas cidades pelos próximos quatro anos. Para muitos esse é um ato prazeroso, pois se sentem felizes em participar do jogo democrático. Já outros vão às urnas apenas para cumprir uma obrigação.

Se qual for a sua posição o certo é que não podemos deixar de expressar a nossa opinião, deixar de fazer a nossa escolha dentro os candidatos que nos são apresentados. Sem esquecer que são essas pessoas (os candidatos escolhidos por nós) que vão governar as nossas cidades, que vão resolver ( ou minorar) os problemas que enfrentamos toda vez que saímos de casa, seja para trabalhar, estudar, cumprir nossa rotina diária ou simples exercer nosso direito de ir e vir.

Infelizmente, principalmente nos últimos anos, estamos vivendo um tempo de divisão que não traz nenhum benefício para nossas cidades, nem para nossas vidas como cidadãos. Pessoas se colocam de um lado e do outro como donos da verdade, como salvadores da pátria, como arautos de uma boa nova que sabemos não que vai chegar. Tudo baseado em mentiras e acusações normalmente falsas.

No meio de tudo isso, o eleitor precisa escolher o melhor. Confesso que considero essa tarefa muito difícil, para não dizer praticamente impossível. Ao mesmo tempo, acredito que já temos capacidade de abstrair tudo isso e tirar água da pedra. Aprendemos com o tempo a separar o joio do trigo, afinal de contas, por mais que não acreditemos, somos a parte forte desta história. O voto é nosso, ninguém pode nos tirar o direito de escolher nossos candidatos seguindo a nossa vontade, o nosso entendimento.

Neste domingo, quando entrar na cabina de votação, esqueça qualquer divisão entre os espectros políticos. Se eles estão divididos e dividindo, nós somos inteiros, somos nós mesmos e sabemos muito bem aquilo que queremos para nós e para a nossa cidade.

Boa votação.

Esperança, fé, amor e GRATIDÃO. 

setembro 29, 2024

A mão invisível - Cap. 1

Hoje apresento a vocês o primeiro capítulo de meu livro 'A mão invisível', que conta as agruras do jovem Dimas, em sua desesperada luta para viver num mundo de luxos e mordomias, que lhe foi negado ao nascer pobre e favelado.


Capítulo 1

Na comunidade pobre do subúrbio do Rio de Janeiro, onde a vida pulsava em seu ritmo próprio, um jovem saiu de um tosco barraco, não muito diferente daqueles que o circundavam, e, esforçando-se para ignorar os obstáculos que a cada passo surgiram à sua frente – a ladeira íngreme demais, as valas negras que precisavam ser transpostas, a pobreza, o desencanto e o abandono –, atingiu o pé do morro. Após longa espera na desorganizada fila, ele embarcou na condução e, mais ou menos uma hora depois, desceu a certa altura da Avenida Atlântica. Os pés, quase automaticamente, o levaram ao calçadão, de onde observou, com deleite, o oceano azul, o movimento das ondas e a faixa de areia, àquela hora apinhada de banhistas, grupos de turistas – sobretudo gringos –, vendedores ambulantes, enfim, a atmosfera de Copacabana do verão de 2010.

Diante da exuberante vista, após se alongar, o jovem colocou os óculos de sol, que trazia sobre a cabeça em forma de tiara, e, em seguida, misturou-se à multidão que fazia jogging, pedalava, patinava, andava de skate tentando convencer-se de que fosse um legítimo morador da área, pois, em seus devaneios, residia num prédio bacana daqueles bem ali do outro lado da pista.

A essa altura, Copacabana ficou para trás, dando lugar à Ipanema. Algumas passadas depois, o jovem pisou as areias da praia do Leblon. Antes de se aproximar da turma de amigos, porém, recapitulou o roteiro que trazia memorizado: para todos os efeitos, era filho de um rico proprietário de terras do Mato Grosso.

- Tô passando o maior perrengue. O velho anda meio na bronca, tá ligado? Quer que eu volte pra fazenda. Dá pra encarar? Coisa de louco, não é não?

O desabafo se deu no dia em que finalmente conseguiu se aproximar dos ‘riquinhos do Leblon’, maneira como se referia ao pessoal da praia, turma de jovens, quase todos na casa dos vinte anos, com o objetivo de convencê-los de que faziam parte do mesmo grupo social.

- Tá no maior jogo-duro. Disse que só volta a liberar grana quando eu estiver trabalhando nas fazendas. E não tá de brincadeira não. Há meses não manda a mesada. Por isso, tive de desfazer de meus dois amores: o carango e a motoca. Doeu o coração, tá ligado? O consolo é que com a grana continuo levando minha vidinha, curtindo legal. Mas até quando?

- Não cai na pilha do velho, cara. – disse um loirinho, cara de bicho-grilo, enquanto apertava o terceiro baseado – O meu tentou esse lance comigo. Não me deixei dobrar.

O comentário foi o bastante para que o jovem já se sentisse integrado à turma, que era composta por Paulo Henrique, o loirinho, mais conhecido como PH, estudante de direito, que nunca ia à escola; Jane, estudante de artes, tipo doidona: cabelo vermelho, tatuagens e piercings compunham seu visual; Pedrão, um tipo meio obeso que passava o tempo dormindo na areia e que há anos fazia cursinho pré-vestibular; Suzana, formada em Letras, que usava pesados óculos de grau, sempre de livro na mão, fazendo tipo intelectual; Lucas, surfista amador, estudante de arquitetura, tipo boa gente; Larissa, estudante de odontologia, na verdade, uma devoradora de homens; Demétrio, estudante de teatro, assumidamente gay, a diversão da turma; e outros que chegavam, papeavam, bebiam, fumavam e se afastavam. Os encontros aconteciam na faixa de areia próxima ao quiosque do Manduca, o Carlos Emanuel de Jesus, ‘negão gente fina’ que dizia ter sido afamado jogador de futebol. Naquele momento, no entanto, Manduca buscava, de forma quase obsessiva emplacar o filho, o adolescente Príncipe Carlos, no elenco de base do Flamengo, time em que confessava, não sem esconder a mágoa, não ter chegado a jogar. O filho, em quem depositava a esperança de que realizasse esse sonho, era fruto de seu casamento com Janaína, que fazia questão de apresentar a todos ali na praia como a mulher que abandonara promissora carreira de modelo para viver ao seu lado.

- Essa loira é louca por mim. – alardeava, quando não estava cuidando do futuro profissional do rebento – Largou fama e dinheiro pra ficar com esse negão. Quer prova de amor maior? Pena que logo depois eu sofri a contusão que me obrigou a parar de jogar.

Janaína, que guardava poucos vestígios de um passado glorioso, trabalhava na barraca. Para lá, depois dos treinos, também ia Príncipe Carlos. Quem via o futuro craque do Flamengo em ação nas areias garantia que tinha dois ‘pés esquerdos’; o que chamava atenção, sem sombra de dúvida, era apenas o título de príncipe.

- Filho de rei é príncipe, certo? – dizia Manduca, acrescentando que em seus áureos dias de jogador fora coroado ‘o rei dos gramados brasileiros’.

- Qual é, Manduca? Rei é o Pelé.– retrucavam.

- Veja bem, meu irmão, o Pelé, Edson Arantes do Nascimento, é o rei do futebol e eu, Carlos Emanuel de Jesus, vulgo Manduca, sou o rei dos gramados brasileiros. Dá pra entender ou tá difícil?

Independente de qualquer coisa, Manduca já calculava os altos salários que o filho faria jus. Príncipe Carlos teria a vida que o pai deveria ter tido em sua época de jogador, mas a contusão impediu. Entretanto, a preocupação naquele momento era que desde que apareceu na praia, o filho do fazendeiro do Mato Grosso comprava fiado no quiosque. Na hora de pagar, no entanto, sempre alegava que pagaria tão logo a mesada caísse em sua conta.

- E aí, malandro? Cadê a grana?

- Nada, Manduca. O velho ainda tá fazendo jogo duro comigo. Mas pode ficar descansado. Assim que a grana cair na conta, tá na sua mão.

- A tolerância tá acabando. Não vou ficar no prejuízo porque o papai tá regulando a grana. Não vou mesmo. – disse Manduca.

Ao perceber que o freguês desaparecera entre os banhistas, acrescentou alteou a voz e acrescentou:

- Trate de dar teus pulos, ouviu?

- Esse papo de pai fazendeiro é cascata, paixão. Vai por mim.

- Será, Jana? O garoto tem toda pinta de filho de bacana.

“Quer saber de uma coisa? Não vou dar as caras durante um tempo”, pensou o falso rico; não tinha a menor ideia de como arranjaria a grana para saldar o débito no quiosque. A decisão, entretanto, atrapalhava seus planos; elegeu a praia como o lugar ideal para conhecer a garota que, segundo acreditava, mudaria sua vida, razão principal de ter se metido entre os ‘filhinhos de papai’. Larissa, Suzana e Jane, as garotas da turma, cada uma por sua vez, foram seus alvos; com as três, viveu relacionamentos com vistas a um casamento por interesse. Suzana e Larissa, segundo apurou, eram filhas de empreiteiros, com obras em várias esferas governamentais. Jane, por sua vez, a única que fez seus olhos brilharem de verdade, pois o pai era um poderoso industrial do ramo das carnes. A descoberta o levou a acreditar ter encontrado a verdadeira ‘galinha dos ovos de ouro’.

O convite de Jane para que conhecesse sua casa foi recebido como o sinal de que tudo se encaminhava para a realização de seu grande objetivo. Para que nada desse errado, o jovem preparou, com extremo cuidado, o que diria aos futuros sogros. Antes de qualquer coisa, falaria das hipotéticas fazendas do pai e que, como filho mais velho, mais cedo ou mais tarde, estaria no comando de tudo.

- Minha Jane finalmente encontrou o rapaz certo. – diria o pai de Jane, após ouvir seu relato.

Entretanto, no dia marcado, sentado no lado do carona, estranhou quando o carro da namorada tomou a direção do Vidigal.

- Pra onde a gente tá indo, amor? A casa de sua família... Não diga... Boca numa hora dessas... Pô, cara. Não é legal chegar turbinado num encontro com a família. Falta de...

Jane seguiu em frente, sem nada responder e, pouco adiante, estacionou o carro em frente a um sobrado, que ficava no pé da ladeira.

- Não vai descer? – ela perguntou, já fora do carro – Desistiu de conhecer a minha casa?

Naquele dia, o ‘caça-fortuna’ soube que a namorada vivia num sobradinho no Vidigal, misto de estúdio de tatuagem e moradia, pois abrira mão da grana da família para viver dos modestos ganhos que obtinha como tatuadora iniciante; não queria ser sustentada por um homem (o pai) que fizera fortuna matando animais indefesos. “Protetora de animais criados para abate. Que maluquice! Onde eu fui me meter?”, ele ruminava enquanto descia a pé as ladeiras do Vidigal, pouco interessado no sofrimento dos animais ou de quem quer que fosse; o importante era a grana, viesse de onde viesse.

- Tá mais que na hora desse menino arrumar um emprego, Badia. Para de dar vida boa pra ele. Depois de certa idade, filho tem ajudar nas despesas da casa.

O alerta partiu de dona Santana, inconformada com a ‘vida boa’ que a vizinha proporcionava ao filho. Mulata, corpulenta, baiana de Feira de Santana, a viúva – pelo menos, era o que afirmava – era mãe de três filhos: Genildo, Genilson e Genivaldo, “homens machos e trabalhadores”, como propalava aos quatro ventos, orgulhosa de ter ensinado a eles, desde cedo, a encarar o trabalho, sem desconfiar das piadas e dos insultos que os filhos ‘machos e trabalhadores’ enfrentavam pelos becos do morro.

- Meus meninos, além de labutar o dia inteiro na rua, limpam a casa, cozinham, lavam e passam, fazem mercado... E ai deles que não façam de boa-vontade, e no capricho. Mando fazer tudo de novo. Enquanto não fica do meu gosto não dou a tarefa por acabada. Não suporto gente preguiçosa, nem de desmazelo. Eu sei o que passei quando o Ednaldo partiu dessa pra melhor me deixando sozinha com os três. Genivaldo ainda mamava no peito. Mourejei demais nessa vida, Badia. Mas o tempo da peleja já passou. Agora eu quero é descanso.  

A falta de interesse do filho para arranjar emprego, somados aos seus arroubos de menino mimado, realmente causavam preocupação. No entanto, como mãe abnegada, Abadia acreditava que o comportamento fosse apenas uma fase. Logo ele se conscientizaria de que devia garantir o próprio sustento, como todo mundo. Para seu desgosto, nem mesmo pelos estudos o filho demonstrava interesse; esnobou sucessivos convites para participar de projetos que poderiam lhe garantir encaminhamento para trabalhos e recusou bolsas de estudo ‘por não querer esmola de ninguém’, como fazia questão de frisar.

- Devia ter seguido meu exemplo, Badia. – continuou a baiana – Hoje estaria vivendo, não digo como eu, mas, pelo menos, sem tanto aperreio, sem tanta consumição.

- Criei esse menino sem pai, dona Santana. Por isso, sempre tive medo de ser enérgica demais. Mas não há de ser nada. Tenho fé na minha santinha que ele ainda vai tomar jeito.

Abadia nunca esqueceu o período em que o filho andou na companhia de Vagner da Conceição, o Vaguinho, o garoto que acabou morto pelos comparsas, que o acusaram de traição. Abadia proporcionaria, caso pudesse, a vida de facilidades que o filho tanto ambicionava, para livrá-lo da ameaça de ter o mesmo destino. Porém, tinha a oferecer apenas um barraco, sem conforto, e uma comida magra; sempre tivera dificuldade para colocar o básico dentro de casa. O filho chegou a ficar sem estudar, por falta de vaga em escolas públicas perto de casa. As roupas e calçados que usava eram doados pelas patroas, ou garimpados em bazares de igrejas e brechós.

- Por que eu tinha que nascer pobre, hein? Por que não me abortou? Seria melhor eu não ter nascido.

- Não fala assim, filho. Deus castiga. Minha avó dizia que o destino da gente é traçado antes de nascer; uns nascem pra ter boa-vida, venturas e alegrias, outros, pra passar por perrengues, atropelos e dificuldades sem fim. Ela tava certa. Sempre foi assim. Nunca vai mudar.

As palavras da mãe deixaram o jovem tão enfurecido, que ele atirou o prato de comida no chão, derrubou mesa, cadeiras e mais o que viu pela frente. Diante daquele ataque de fúria, Abadia, mais uma vez, se sentiu totalmente impotente. A mesma impotência que experimentou no dia em que descobriu que estava grávida.

- Não vem com esse papo de gravidez. – reagiu o namorado ao ser comunicado que seria pai – Nunca te prometi nada. Descuidou? O problema é seu.

- Pensei que a gente tivesse namorando.

- Pensou errado. Olha aqui, garota, veja lá o que vai fazer, hein? Eu sou muito jovem pra estragar a minha vida por causa de uma bobagem de gravidez. Não conta comigo. Tava tudo bom, mas sinto muito se foi sério pra você. Pra mim, nunca passou de namorico.

A jovem Abadia ouviu as duras palavras do namorado em estado de choque: difícil acreditar que o rapaz bonito que conhecera durante os jogos de futebol no campinho da favela fosse capaz de agir daquela forma.

- É bonitinha... Ficava me dando bola... Eu sou homem, caramba! – ele disse.

Já ia longe, quando retornou e, sem descer da motocicleta, entregou-lhe o objeto que retirou do bolso da jaqueta.

- Pega. Vende e usa o dinheiro pra se livrar disso. Vai ser melhor pra todo mundo. Vai por mim.

E partiu, sem olhar para trás. Abadia ficou plantada no meio do campinho de terra batida, naquela hora totalmente deserto, com o objeto na mão, sem saber o que fazer ou para onde ir. Na cabeça uma certeza: com os pais não poderia contar. “Escuta bem o que digo: se filha minha pegar barriga, vai direto pra rua. Não tem conversa. Já tem boca demais pra sustentar nesta casa”, ela recordou as palavras do pai.

Enquanto deu, Abadia manteve a gravidez em segredo. Quando a barriga começou a aparecer, concluiu que a solução era seguir o conselho do namorado. Não seria a primeira garota no mundo a se livrar de uma gravidez indesejada. Com esse pensamento, ela resolveu procurar dona Mena, senhora que vivia num casebre no alto do morro, conhecida como ‘fazedeira de anjos’.

- Peguei barriga, dona. – ela disse, envergonhada – Meu namorado me deixou e meu pai disse que vai me jogar no meio da rua.

- Quem mandô ocê aqui? – tartamudeou a mulher, que parecia uma selvagem – Tô aqui no meu canto, ocês vem mi procurá. Aí, faço o qui mi pede... O risco é por conta de quem pede o sirviço. Num quero sabê se é certo ou errado, pecado ou não. E se ocê fizé passage, espero a noite chegá e jogo o corpo no mato, pros arubú comê.

Abadia se manteve em silêncio; os pés pareciam colados ao chão.

- Se qué si livrá du incômo, a gente dá um jeito. – prosseguiu a mulher, da porta do casebre – A muleca tem pataca? Promodiquê num é di graça não.

Abadia combinou de voltar no dia seguinte. Embora a ideia de estar prestes a condenar a própria alma ao fogo do inferno a enchesse de temor, não era menor o medo de ser atirada no meio da rua, grávida e sem ter para onde ir. Pela manhã, depois de uma noite em claro, tomou o rumo da casa de dona Mena, a fazedeira de anjo’, levando o ‘presente’ que recebera do namorado; como ele sugerira, para pagar pelo aborto.

No interior do barraco, Abadia não encontrou nada diferente do que se via do lado de fora, ou seja, um amontoado de cacarecos, dentre eles, um móvel que parecia uma cama, mas que, na verdade, tratava-se de uma tosca maca. Apesar de viver numa casa tão miserável quanto a da parteira – o pai era um simples biscateiro, que arrastava um ‘burro sem rabo’ morro acima e morro abaixo, e mal ganhava para botar o básico na mesa, para alimentar os sete filhos –, ela sentiu o peso da atmosfera miserável do ambiente.

- Deita aí. Sunga o vistido, tira a calçola e abre bem as perna. Se prepara promodiquê vai duê. – disse a mulher apontando a maca.

Abadia deitou na maca, porém, assim que foi tocada pelas grosseiras mãos da ‘fazedeira de anjo’, saltou para o chão e saiu porta afora, em desabalada corrida.

- Que consumição é essa, Badia? – perguntou a mãe quando a viu entrar em casa, completamente transtornada – Não acha que já tá na hora de falá o que tá acontecendo?

Esquecida de todos os riscos, Abadia abriu o coração. A mãe, dentro do possível, buscou ser compreensiva. Entretanto, o pai, confirmando a ameaça muitas vezes repetida, escorraçou-a de casa.

Mais de vinte anos depois, ela estava diante do filho, que esteve a um passo de abortar, tentando impedir que, como fazia a cada crise, ele procurasse Sinval Donizete dos Santos, mais conhecido como Garrincha, chefe do tráfico no morro. Nessas ocasiões, para evitar que o filho se envolvesse com o tráfico, Abadia se sentia propensa a revelar a suspeita de que o antigo namorado, seu pai, fosse morador da zona sul. No entanto, não arriscava; nunca soubera nem mesmo seu nome completo, o endereço ou a que família pertencia; os encontros se davam apenas quando o rapaz aparecia no morro para jogar futebol com os filhos das empregadas da mãe.

Tomada pelas lembranças, Abadia foi até o guarda-roupa e pegou o ‘presente’, a única recordação do passado, já quase apagado na memória.

- Se eu tivesse alguma pista do paradeiro dele, passaria por cima de todas as mágoas, ressentimentos, o que fosse e ia atrás. Mas ele não ia se interessar pelo filho, depois de tanto tempo. Me deixou justamente porque falei que tava grávida.

Mais tarde, Abadia jogou um surrado casaco sobre os ombros e saiu pelas vielas da comunidade disposta a impedir que o filho fizesse o que tanto temia. “Alguém há de ter visto o rumo que ele tomou”, ela pensou. Ninguém vira sombra do filho. Pouco depois, sem ter mais onde procurar, ela tomou o caminho de volta para casa; teria faxina na manhã seguinte. Não estava podendo com estripulias; a saúde não andava boa, já sentia o peso dos anos, que não eram tantos assim, ainda nem chegara aos cinquenta. No entanto, a aparência era de muito mais, em parte, devido às asperezas e agruras que a vida sempre lhe impusera.

Como suspeitava, o filho fora ao encontro de Garrincha, o amigo de infância que, recusado pelo exército – como seu homônimo, ele tinha as pernas tortas –, viu no tráfico o único meio de pertencer a uma organização em que pudesse angariar respeito e, com sorte, galgar postos de comando. O filho de Abadia evitava ser visto na companhia de ‘gente do movimento’; temia que atrapalhasse seus planos de ascensão social. “Vai que um dia resolvem investigar minha vida e descobrem que andei metido com essa gente? Aí, eu me ferro”, ele pensava. A preocupação se estendia à mãe, que aturava por extrema incapacidade de se manter sozinho, e a toda a comunidade, que ignorava, solenemente; não suportava aquela gente pobre, feia e malcheirosa. No dia em que atingisse o topo da pirâmide apagaria da memória que tivera a infelicidade de ter nascido do ventre de uma mulher miserável, tacanha e insignificante. “Tanta mulher no mundo e eu tinha de ser filho de uma reles diarista, que não consegue nem mesmo botar uma comida decente na mesa. É muita falta de sorte”, ele lamentava.

- Muita calma nessa hora, papai. – disse Garrincha ao ver o amigo aspirar o pó, avidamente – Que tá pegando? Fala comigo. Qual é o enredo? Tá difícil encontrar ricaça por aí, né?

- Colei na gata que cabe direitinho no meu plano, mas descobri que ela é brigada com o pai, que prefere viver na pobreza. Calculou o meu azar?

Garrincha sorriu de satisfação; nunca levou a sério o plano do amigo. Entretanto, ao perceber que sua reação pudesse ser notada, ele desfez o sorriso.

- A garota tava dando condição, cara. Tava no caminho certo. Aí, surgiu o lance de que não se dá com o pai e faz questão de dispensar a grana dele.

- Deixa dessa bobagem de ficar correndo atrás de mulher rica, mano. Tu pode conseguir grana pra viver vida de bacana aqui mesmo na comunidade. Não é papo. É a real. Tu tem penetração entre os playboy, cara. Já calculou a grana que pode faturar?

O filho de Abadia mantinha viva na memória a lembrança do amigo Vaguinho, covardemente assassinado pelos comparsas, porque ousou sonhar com uma vida melhor. Além disso, para todos os efeitos, era filho de fazendeiro, dono de quase metade do Mato Grosso.

- Esquece isso, maluco. Da mesma forma que não consegui entrar pro exército, tu também...

- Tem nada a ver. Além do mais, não é sonho, caramba. Quando o sujeito não nasce rico a única saída é apelar pra um bom casamento. Isso tá mais que provado, entendeu?

- Isso funciona é com mulher, cara. Não vale pra macho. Se pelo menos, tu andasse com coroa ou veado... Tem muito veado rico que dá vida boa pra garotão boa pinta assim como tu, tá ligado?

A insinuação transformou o papo numa divertida troca de socos e insultos. Embora o filho de Abadia não admitisse, Garrincha era a única pessoa com quem podia falar abertamente. No fundo, tinham muitas coisas em comum: enquanto um corria atrás de ricaças, o outro almejava mais poder no tráfico.

Mais tarde, ao atravessar a porta de casa, ele vislumbrou o espectro da mãe, no escuro, e teve vontade lançar-lhe os costumeiros xingamentos; não suportava aquela mulher o tempo todo no seu pé. Entretanto, foi direto para o quarto que, por direito, seria dela, mas que usava como se fosse o senhor da casa, a mãe que se contentasse com o duro sofá, e ela realmente se contentava. Então, ele se ajeitou na cama, não muito diferente do sofá da mãe. Impossível pregar o olho; se recusava a acreditar que estivera tão perto de deixar a vida miserável para trás.

A claridade trazida pelos raios do sol, que atravessavam as fendas das paredes e janela, denunciava que beirava o meio-dia. Através dos rabiscos da mãe, ele tomou conhecimento de que havia café no fogão, que deveria esquentar: a garrafa térmica estava estragada. “Grande novidade!”, pensou. Também decifrou nos garranchos o alerta para que não esquecesse a chama do fogão acesa à toa, pois o gás estava no fim.

- Não tem mesmo jeito. Enquanto fica flanando por aí, a mãe trabalha feito burro de carga. – murmurou dona Santana, debruçada na janela.

- Falou alguma coisa, dona Santana?

- Falei sim, seu desocupado. Falei que o mercado que abriu lá embaixo tá contratando trabalhador. Por que não passa lá? Quem sabe arruma vaga de entregador?

- Não nasci pra trabalhar em mercado, dona Santana. Entregador é bom pros filhos da senhora, que tão acostumados a pegar no pesado.

- E tu tá acostumado é a explorar a coitada da Badia, não é?

Cerca de uma hora depois, livre da vizinha enxerida, seguindo o trajeto de sempre, o jovem desembarcou em Copacabana. Também como fazia todos os dias, caminhou até o Leblon.

- E aí? – saudou Manduca tão logo o avistou – O velho liberou a grana?

- Nada, seu Manduca. – respondeu com fingido desapontamento – O velho é turrão. Bem que eu liguei, mas ele nem quis me atender.

- O malandro tá de caô, paixão. – interveio Jana – Só não vê porque não quer.

- Qual é, dona Jana? Seu Manduca sabe que sou firmeza. Assim que a grana cair na minha conta tá na mão de vocês. Olha só, tô até disposto a pagar um pouco mais, pra compensar o tempo que tão esperando. Só queria pedir que não falassem nada pra rapaziada. Que fique entre nós, valeu?

- Tá legal. – disse Manduca – Última chance.

- Daqui esse pilantra não leva mais nada fiado, ouviu Manduca? – disse Janaína.

Enquanto o casal discutia, o falso rico se afastou do quiosque. Foi ao encontro de Suzana, que devorava mais um livro, e postou-se ao seu lado.

- Ei! – ela disse, incomodada – Não me lembro de ter contratado um guarda-costas.

- Tava te manjando aí com seu livrinho e, de repente, sei lá, senti saudade dos rangos de sua mãe. Sabe que eu moro sozinho, né? Não tenho muito jeito na cozinha. Pedir comida... Não sou muito chegado em junk food... Já viu, né? Gente do interior...

- Sei como é. – disse Suzana – E por falar nisso, onde é mesmo que você está morando?

- Tô passando uns tempos num hotel aqui mesmo na orla. Manter apartamento montado é muito complicado. Contas pra pagar, serviçais... Mas cadê o resto da turma? Será que fomos abandonados?

- Lucas, pra variar, está na água, Demétrio e Larissa estão azarando por aí e o Pedrão está ali tirando uma soneca, como pode ver com seus próprios olhos. Só falta o Pedro Henrique.

- O que houve com o PH?

- Não sabe da garota que apareceu aí?  Acho que o nome dela é Elisa. Parece que dessa vez Pedro Henrique gamou mesmo. Não fala noutra coisa. Aliás, ninguém fala noutra coisa por aqui. Lucas, Pedrão, até o Demétrio... – disse Suzana deixando escapar uma ponta de despeito, confirmando a suspeita de que nutria uma espécie de amor platônico pelo colega de turma.

- E quem é a beldade? – perguntou Dimas, pouco interessado na desilusão amorosa de Suzana – Pelo menos, é da nossa... Quer dizer, ela tem grana?

- Pelo que tudo indica...

A simples possibilidade de que a desconhecida fosse rica significava a chance de pôr fim à decepção sofrida com Jane, ou seja, nem tudo estava perdido. “Hora de botar o exército na rua”, ele pensou. Quando, mais tarde, após um mergulho, retornou para a areia, PH estava por lá, na companhia da garota.

- Então você que é...

Antes que o caçador de fortuna completasse, PH apareceu do nada e levou a garota para longe. A reação do colega, porém, não foi motivo de preocupação; cedo ou tarde, tinha certeza de que acabaria surgindo a oportunidade de uma aproximação.

No início da noite, na condução de volta para casa, estava convencido de que o pai da garota fosse tão rico quanto o pai de Jane. “Tá na cara que ela nasceu em berço de ouro. Quer saber? Não descanso enquanto não conquistar essa garota”, ele murmurou. Em casa, a mãe quis saber o motivo do sorriso que trazia estampado no rosto e, sem querer, cavou um motivo para ser vítima de mais uma demonstração de desafeto e desrespeito do filho.

- É foda pensar que nasci de uma mulher cuja presença, voz melosa e excesso de zelo simplesmente me causam asco. – ele iniciou – Por que não me deu pra adoção? Pelo menos, eu teria sido criado por alguém com mais grana. Há tantos casais abastados que não conseguem ter filhos e optam pela adoção. Por que não me vendeu? Podia ter feito uma boa grana. Bebês brancos valem muito mercado. Mas sempre foi burra demais pra ter...

Não aceitava o que o destino lhe reservou. Entretanto, em vez lutar para mudar a situação através do estudo e do trabalho, como qualquer pessoa normal faria, preferiu inventar a história na qual se apresentava como filho de um fazendeiro, criador de gado do Mato Grosso. Para não cair em contradições, trazia tudo muito bem esquematizado: o pai era João Otávio Capanema, a mãe, Sônia Menezes Capanema, os irmãos, Júnior e Soninha. E não eram simples nomes; conferia a eles uma existência quase real. Inclusive, com algumas peculiaridades. Por exemplo: quando perguntavam por que o irmão mais novo e não ele levava o nome do pai, a resposta estava na ponta da língua: a mãe, devido aos problemas que enfrentou durante a gravidez, prometeu a São Dimas, seu santo de devoção, que o filho levaria seu nome, caso nascesse saudável.

- É por isso que tenho esse nome.

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 Bom domingo e excelente semana.

Esperança, fé, amor e GRATIDÃO.