A história que vou contar hoje poderia passar despercebida como muitas histórias passam despercebidas desde o início dos tempos: alguém nasce, tem uma vida relativamente longa e, consequentemente, morre. Nada demais, não é mesmo? Afinal todos seguimos, com alguma variação aqui e ali, o mesmo roteiro. Não fosse a pessoa em questão alguém que nasceu numa Espanha que estava vivendo uma guerra civil ( a que levou Franco ao poder) e a segunda guerra mundial (a que dividiu o mundo entre socialistas e capitalistas, para ser um tanto simplista).
Esse garoto viveu numa Espanha destruída por uma guerra civil e paralisada pela segunda grande guerra. Filho mais novo, o pai morreu quando ele nasceu, vivia numa pequena propriedade rural na Catalunha com a mãe e mais sete irmãos, assolados pela fome e pela falta de esperança em dias melhores. Por isso, o menino foi mandado para viver com um tio padre que queria que ele tivesse o mesmo destino. Sem vocação ou interesse pela vida religiosa. apesar do padre tentar seduzi-lo com a promessa de fazê-lo seu herdeiro, nosso herói acaba deixando o seminário e vai morar com uma irmã em Madrid, onde, mais uma vez seguindo um destino inexorável, entra para o exército, apesar de suas limitações físicas. Uma vez fora do exército, volta a viver com a irmã. Naqueles dias difíceis, ele é um peso para a irmã e o cunhado. É quando alguém lembra-se que ele tem um irmão que migrou para o Brasil há algum tempo e que escreve cartas entusiasmadas sobre aquele país da América do Sul, para eles desconhecido, mas que pode ser a salvação para quem vive num país destruído e sem emprego. A decisão de vir para o Brasil é tomada, porém falta o dinheiro para a viagem. Tudo é resolvido através de uma carta ao irmão pedindo o dinheiro da passagem. O dinheiro chega e ele embarca num navio para o Brasil. A viagem dura cerca de dois meses.
O ano era 1956 e o Brasil que recebe aquele imigrante é o país de Juscelino Kubitschek (cinquenta anos em cinco) que, apesar de todas as misérias, vivia um período de euforia e crescimento. Logo, nosso personagem vai estar trabalhando juntamente com o irmão que, segundo ele, era engenheiro, na construção de Brasília. Os problemas de dinheiro e falta perispectiva de futuro tinham ficado para trás. No Brasil, o garoto miserável da Espanha, tinha a chance de vislumbrar um futuro melhor. Com o irmão monta uma pequena construtora e a vida segue seu rumo. Mas o destino lhe prega uma peça: o irmão , que sofria com o calor dos trópicos, tem um derrame cerebral e morre. Sozinho no Brasil. ele se vê obrigado a sobreviver a qualquer custo. Diferente do irmão , ele não tem profissão e fala muito mal o português. É ajudado pelos amigos de seu irmão e decide permanecer no país, onde casa-se com uma boliviana.
Sua vida viria a mudar quando ele compra um apartamento a prestações num prédio em construção no Flamengo. Depois de esperar anos para receber o apartamento, um conjugado de fundos medindo vinte metros quadrados, ele se torna sindico do prédio: um verdadeiro cheque em branco, assinado. Os anos passam e nosso herói (?) usando de meios pouco ortodoxos se perpetua no poder como sindico, tornando-se ano após ano uma pessoa temida e odiada por tantos quantos o conheciam. Muito gordo, baixinho (cerca de um metro e quarenta), uma voz estridente, um sotaque acentuado e uma aparência um tanto feminina, que gerava muita confusão em quem o via, ele era capaz de qualquer coisa para manter o seu posto. Tornou-se, aos poucos, uma figura folclórica no Catete, Flamengo e arredores, encarnando como ninguém o jeitinho brasileiro de fazer política e para aprender a falar o português chegou a esquecer o espanhol.
Nessa altura você deve estar perguntando: por que diabos ele está contando essa história? O que nós temos com isso? Espera lá. Calma. Eu tive a sorte ou o azar de trabalhar com esse senhor durante dezenove anos. Sim, dezenove anos. Tive com ele uma relação muito difícil pelo fato dele ter sido um patrão cruel e perverso, um ditador que fazia questão de que todos vivessem segundo às suas leis. Dividi a mesma sala com ele todos esses anos e nosso relacionamento era o pior possível. Não sei dizer porque trabalhei com ele tanto tempo. Provavelmente porque nós tínhamos algum resgate juntos ( acredito que não estamos aqui por acaso e que tudo tem uma razão de ser) e eu não sou de fugir dos problemas. Além de, como ele, também migrei para essa cidade e tive que me sujeitar a trabalhar, não onde eu queria, mas onde me deixavam trabalhar.
O fato é que esse senhor veio a falecer em meados de maio deste ano. Desde então seu estilo de vida tem me feito pensar: o que leva uma se a amealhar uma verdadeira fortuna durante sua vida e viver como um verdadeiro mendigo? O dinheiro que ganhava (que não era pouco) ele convertia em dólares e guardava, mas recusava-se a gastar, recusava-se a viver com um mínimo de dignidade e dar dignidade àqueles com os quais convivia. Ao ficar doente foi para um hospital público como um simples aposentado do INSS. Quando alguém falava com ele sobre sua vida "franciscana", ele dizia que estava guardando dinheiro para sua velhice. Velhice que já tinha chegado há bastante tempo, pois ele morreu aos 81 anos. Morreu sem gastar o dinheiro que juntou, sem viver a vida que o dinheiro pode proporcionar e sem o amor das pessoas.
Sua morte me deixou triste por ter presenciado uma pessoa juntar tesouros aqui na terra acreditando que era isso o que valia a pena, quando na verdade da vida não se leva nada além das nossas obras de amor e caridade. Mesmo passados tantos anos e as parábulas de Jesus serem do conhecimento de todos, ainda é possível ver pessoas vivendo de forma tão materialista juntando tesouros na terra.
Que todos vivamos certos de que a terra e seus tesouros passam e que, ao deixá-la, tudo o que juntamos de material fica aqui mesmo, nada levamos além da nossa história e dos nossos feitos.
Caro amigo Júlio,
ResponderExcluirConcordo com você quando diz que daqui nada de material levamos. Porém, credito o comportamento desse seu conhecido à penúria que viveu em sua juventude ainda na Espanha.
Muitas das pessoas que passaram por guerras ou catástrofes naturais e perderam tudo o que tinham, ou que viveram num estado de miséria absoluta desenvolvem esse comportamento.
Tornam-se compulsivas por acumular valores e bens materiais por medo de que no futuro sejam privadas de seus meios de subsistência e não tenham uma reserva para sobreviverem aos dias difíceis.
Apesar das mazelas sociais que afligem nosso país, somos abençoados pois não temos vivenciado os horrores das guerras.
Não endosso, com isso o comportamento da pessoa que você descreve, apenas posso dizer que, até certo ponto, é compreensível.
Parabéns pelo post! Tenha uma ótima semana!
Beijos,
Guta