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ESTE AUTOR FICARIA MUITO FELIZ SE VOCÊS O PRESTIGIASSEM.
OBRIGADO E BOA LEITURA.
No olho
da rua
Uma
história real
Julio
Fernando Moreira
Durante muito tempo achei que tivesse cometido um
grande erro ao escrever e publicar este livro; acreditava apenas ter-me exposto
e que ninguém se interessaria pela história de um rapaz que deixou Minas Gerais
e veio se aventurar como ator no Rio de Janeiro, e acabou encontrando uma
realidade nada alvissareira. História feia e, dependendo do olhar, até mesmo
deprimente, uma vez que vivemos num mundo em que se valoriza o glamour e os
grandes feitos. Passados já alguns anos desde a primeira publicação (1999),
minha opinião mudou consideravelmente. Não em relação à nossa sociedade, que
continua valorizando “o glamour e os grandes feitos”, isto é, as aparências,
mas em relação à minha exposição, pois não mais creio que “No olho da rua – uma
história real” tenha sido um erro ou um tiro no pé. Pelo contrário, sinto-me
bastante feliz por ter tido coragem de contar minha história; não são muitas as
pessoas que descem ao fundo do poço e encontram forças para emergir; isso
aconteceu comigo, sou um vencedor e este livro é a prova disso. Relendo suas
páginas para uma (mais que necessária) correção pude perceber que, além de
narrar a minha história, este livro é a prova viva de que sempre podemos dar a
volta por cima, sempre é possível voltar a acreditar na vida; mais do que
correções, fiz uma verdadeira volta ao passado e retornei certo de que eu não
estaria aqui agora se não fossem aqueles dias. Sou grato por dividir com você
esta parte da minha vida, consciente de que não tenho motivo para me sentir
exposto de maneira pouco lisonjeira, nem mesmo envergonhado do que quer que
seja.
Boa leitura.
O autor
Capítulo
1
UMA
DECISÃO DIFÍCIL
Fazia algum tempo que eu estava parado ali tentando
encontrar forças para entrar naquele lugar para buscar ajuda. O choque entre o
que eu imaginava ser a Fundação Leão XIII e a realidade que se descortinava à
minha frente era consideravelmente grande. Com as bolsas suspensas nas mãos e o
olhar perdido, alheio ao burburinho à minha volta, fui subitamente empurrado
por um homem que, mais tarde, viria saber se tratar de um dos porteiros da
instituição.
- Ei! Qual é, meu irmão, vai ficar aí parado
atrapalhando a entrada? Ou entra ou sai do caminho, ele falou, asperamente, me empurrando
para abrir espaço para os homens que aguardavam numa fila desorganizada e
confusa: era um homem branco, magro, calvo, quase careca, um pouco
avermelhado, pequeno, franzino mesmo, que falava sem parar, sempre se dirigindo
a todos na fila bradando ameaças, que se tornavam mais sérias quando
exibia, sem nenhum constrangimento, um pedaço de madeira fazendo com que os
homens da fila se sentissem intimidados e tentassem, sem sucesso, manter a
ordem.
Com o empurrão quase caí, e foi ainda cambaleando,
sem esboçar nenhum tipo de reação, que tomei consciência de onde estava: “Seria
aquele lugar, realmente, apropriado para uma pessoa, desempregada e desabrigada,
procurar ajuda para tentar se reerguer?” “Que tipo de ajuda eu poderia receber
ali dentro?” “Não tinha outra saída, precisava mesmo de ser ali?” Essas,
e muitas outras, eram as perguntas que, insistentemente, me fazia, em
pensamento, sem obter nenhuma resposta. Realmente, eu estava diante de uma
realidade dura e cruel. Justo eu que pensava ser o mais desgraçado de todos,
mais isso, mais aquilo. Não podia acreditar no que via: o quadro mais aterrador
que tinha encarado na vida. Nunca presenciara cenas de tamanha miséria, o ser
humano num estágio de abandono lastimável: alguns homens deitados, ou caídos,
com uma expressão no olhar em que facilmente se poderia ler: “fim de
linha”; outros, sentados, como que aguardando numa fila à parte, não tinham
expressão diferente; a mesma expressão podia-se ver naqueles, em maior número,
que aguardavam na fila grande, em meio ao cheiro intenso de urina e fezes que
impregnava o ar. Meus olhos passearam pela fila, fixando-se em cada rosto, e
pude constatar que todos tinham a mesma fisionomia, alguns tinham um pouco mais
de ódio no olhar, outros, talvez, um pouco mais de esperança; todos, sem
dúvida, lembravam prisioneiros de guerra, segregados num campo de concentração
sem saber o que esperar da vida. Verifiquei, também, que havia extremos: uns
eram muito calados, pareciam emudecidos, mas havia os que falavam a respeito do
governo, do custo de vida, da miséria, do FMI, do tempo que teria sido melhor, da
esposa, dos filhos, da família, do emprego perdido, das drogas, da cachaça
maldita. Busquei ali uma identificação, alguém que estivesse chegando do tipo:
“é só por uns dias, logo me reerguerei”; não encontrei.
O porteiro pediu silêncio exibindo sua “arma”: chegara
a hora da entrada, mas somente para aqueles que estavam na fila. Grande algazarra.
Alguns tentavam passar à frente dos outros, se espremiam, acotovelavam-se,
gritavam por ordem, reclamavam que estavam furando a fila, agora quase não dava
para ver o porteiro, escondido atrás daquela barreira que se criara; de uma
hora para outra, todos foram tomados por vigor estranho, até mesmo os que
estavam deitados se levantaram; portavam um pequeno papel branco que, na hora
de entrar, mostravam ao porteiro; quem não tivesse o papel era barrado, não
adiantava argumentar, bêbados também não entravam. Indaguei e descobri que era
a hora do jantar, única refeição servida aos homens durante todo o dia. Daí,
toda aquela agitação.
Novamente, o porteiro me abordou, dessa vez, um
pouco mais brandamente: queria saber se eu já tinha conversado com o serviço
social. Respondi que não e ele me aconselhou que entrasse, pois as assistentes
sociais só atendiam até às nove horas da noite, e já era quase isso; se eu não
entrasse logo, certamente não seria atendido naquela noite e teria de dormir na
rua. A possibilidade me apavorou, afinal de contas, eu estava ali justamente
para evitar que isso acontecesse. Num impulso, peguei as bolsas, nessa hora no
chão ao meu lado, e entrei. Lá dentro, procurei o serviço social e fui
informado de que deveria esperar. Só então vi que muitos esperavam: homens,
mulheres, algumas com crianças no colo, jovens e velhos aguardavam sentados em
dois grandes bancos de cimento, um de frente para o outro, separados por um
espaço em que transitava quem entrava e saía. Sentei-me do lado dos homens, pois
havia essa separação, acendi um cigarro e logo começaram a me abordar: um queria
um cigarro, outro a “vinte”, expressão como também era conhecida a guimba
de cigarro. Intimidado, atendi a ambos os pedidos. Fiquei sentado observando
aquele lugar que durante algum tempo seria a minha casa. A realidade física me
assustava: o prédio tinha ares de presídio ou hospício, impressão que se confirmava
quando se ouvia gritos, discussões e repreensões, apesar disso, tentava me
animar desviando o pensamento e afirmando para mim mesmo que tudo aquilo seria
passageiro. O rapaz, um mulato fechado, com cheiro de cachaça, que me pedira
cigarro, sentou-se ao meu lado e começou a contar a sua vida: era um homem
trabalhador, estava ali porque tivera de abandonar sua casa às pressas, com a
mulher e os filhos – nisto, apontou uma mulher escura, acompanhada de três
crianças, uma de colo, visivelmente desnutrida, e duas outras, pouco maiores,
agarradas a ela, igualmente mal alimentadas –; fora expulso de seu barraco no
morro porque se negara a dar esconderijo a um bandido. Essa foi, basicamente, a
história que continuei ouvindo até cantarem a senha que me entregaram na
entrada. Sem me despedir, peguei as bolsas e caminhei para a sala do serviço
social.
A assistente social, uma mulher morena e de estatura
baixa que, por estar sentada, parecia menor ainda, mandou que eu sentasse e,
sem meias delongas, começou a me interrogar: queria saber todos os meus dados para
fazer um prontuário.
- O meu nome vai ficar escrito aí? perguntei.
- Claro! ela respondeu secamente, precisamos ter um
mínimo possível de dados a seu respeito, sem o que não podemos cuidar do seu
caso, e continuou a falar por alguns minutos, mas não me recordo exatamente o
quê; não estava ali, a simples ideia de ficar “fichado” na instituição era
assustadora.
- É só por um ou dois dias, o tempo que eu preciso
para arrumar um lugar para ficar. Tem necessidade da ficha? tentei argumentar.
- Todos dizem a mesma coisa, meu senhor, disse ela
sem levantar os olhos do papel, e com a caneta na linha em que deveria escrever
o meu nome.
- Julio Fernando Moreira, falei com a voz trêmula.
A partir daí, se seguiu uma avalanche de perguntas:
queria saber de tudo, mas principalmente o motivo pelo qual eu me encontrava
sem moradia.
- Está desempregado? É ex presidiário? Quando foi a última
vez que o senhor passou pela Fundação Leão XIII?
Quando ela, finalmente, terminou de preencher a
ficha eu já não tinha certeza de nada; senti-me invadido, tratado como
uma coisa, um número numa estatística ou apenas mais um problema para a cidade,
trocando em miúdos, um intruso.
- Está ruim em todos os lugares. Em Minas, no Rio
Grande do Sul, na Paraíba... Está tudo do mesmo jeito em todos os lugares. O
país está parado. Até São Paulo... ela completou diante do meu silêncio.
Logo a seguir, me informou que eu deveria procurá-la
daí a três dias e que já podia ir, mas que tomasse cuidado com a bagagem; o
bagageiro, onde poderia guardá-la, já estava fechado àquela hora.
- Acontece muito roubo aqui; é preciso ter
cuidado, ela me alertou, e, meio maternal, acrescentou: Vai, aproveita e janta;
você deve estar com fome.
A possibilidade de colocar alguma coisa no estômago
me deixou animado, por isso, apressei em deixar a sala do serviço social.
- Eu acredito que será por pouco tempo, disse com um
sorriso amável nos lábios, depende, exclusivamente, de você, ela falou quando
eu já estava saindo.
Deixei a sala com uma sensação boa: não seria tão ruim
como eu estava imaginando, e se, realmente, dependesse de mim... Dali, eu fui direto para
o refeitório, encontrei uma senhora e pedi o jantar, e ela respondeu, com
visível irritação, que já tinha encerrado.
- O jantar é servido até às nove horas. Não posso
ficar aqui a noite toda à disposição.
Fiz cara de decepcionado, pois estava com muita
fome; ela me olhou, com alguma piedade, e disse:
- Fala com o chefe do plantão. Quem sabe ele... Se
ele autorizar, eu...
Mostrou-me o chefe do plantão, um homem meio gordo,
sentado atrás de uma mesa pequena. Caminhei até ele. Não pareceu
irritado, mas repetiu o que a mulher da cozinha tinha dito, no final,
rubricou um pedaço de papel e me entregou:
- Vai lá. Seja rápido! Tá quase na hora de fechar o
dormitório.
Minutos depois, eu estava diante de um prato
abarrotado de comida. Não tive boa impressão. Apesar da fome, senti que não
daria para comer. Olhei em volta e pude fazer o reconhecimento do local: as
mesas eram de cimento armado, grandes, em número de dez, talvez, com bancos de
igual feitio. Havia muita comida espalhada pelo chão e em cima das mesas e
bancos. Muita sujeira. Três ou quatro gatos viçosos disputavam os restos, sobretudo
o peixe que, naquele momento, percebi no prato. Fiquei parado um tempo, sem
notar que a cozinheira me observava de longe. Resolvi começar a comer e notei
que faltava alguma coisa. Fui até ela e reclamei que tinha se esquecido de me
entregar os talheres.
- Talher?! Aqui se come é com a mão, meu filho,
disse com certo sarcasmo.
Virei para voltar à mesa e ela me chamou oferecendo
uma colher que, palavras dela, lhe pertencia, mas que eu não me acostumasse.
Respirei, aliviado; estava livre de comer com as mãos. Voltei, sentei e passei
a remexer a comida, que transbordava do prato: peixe cozido e arroz. Depois de insistir durante alguns minutos,
levantei, devolvi a colher e o prato à cozinheira. Não consegui comer. Agradeci
a ela, que me olhou com cara enfezada, e fui até o chefe do plantão. Perguntei
onde era o dormitório e ele apontou uma escada grande.
- Pode subir. Cuidado com as bolsas; tem muito
“rato” lá em cima. Se é que você me entende...
Deu-me um papel rubricado, que retirou da gaveta da
mesa, e me instruiu que o entregasse ao rapaz que estaria na porta do
dormitório, alertou-me para o fato de que àquela hora eu não encontraria
colchão ou cobertor e me ofereceu alguns jornais para que eu pudesse forrar o
chão para me deitar.
Senti o peso das bolsas escada acima. Naquele
momento, bateu arrependimento de não ter forçado a barra e comido, pelo menos,
algumas colheradas, porém era preciso admitir que, naquela situação, a comida
não descia. Diante da porta do dormitório, falei com um homem de mais ou menos
uns quarenta anos, com cara de mau, que não tinha um dos braços, provavelmente
perdido em algum acidente, e ele me informou o que eu já sabia, ou seja, que
teria de dormir no chão. Em seguida, abriu a pesada porta e eu entrei. Estava
escuro e não deu para ter uma ideia de como era o local, apenas algumas
silhuetas, corpos deitados no pelo chão, e um cheiro tão desagradável que eu
pensei que não pudesse suportar. Com um estrondoso barulho, a porta se fechou
atrás de mim, tateando no escuro, escolhi um lugar vago para ficar, coloquei
minhas bolsas do lado, espalhei o jornal, e me deitei. Pela primeira vez,
naqueles dias, podia refletir sobre o que estava acontecendo comigo. Senti-me
arrasado e chorei um choro de quem tinha medo do que pudesse lhe acontecer; pensei
na minha casa em Ibiá, no interior de Minas Gerais: pai e mãe, já falecidos, os
irmãos; a dor aumentou, eu estava sozinho. Por horas a fio recusei-me a dormir,
como vinha acontecendo nas últimas noites passadas pelas ruas da cidade. Fiquei
deitado, pensando, tentando achar uma explicação lógica para ter chegado àquele
ponto, toda a minha vida passou, como num filme, pela minha cabeça: a infância,
a adolescência, até aquele momento, e um gosto amargo de derrota tomou conta de
mim, as lágrimas não cessavam de cair. Quis entender por que estava merecendo aquela
provação e, então, veio à mente a oração “Pegadas na areia”: “Ele deve estar me
carregando nos braços”, pensei na tentativa de me consolar. Passados alguns
minutos, adormeci vencido pelo cansaço e pelo frio da madrugada.
Capítulo 2
O PRIMEIRO DIA
Na manhã do que seria o meu primeiro dia no albergue
João XXIII, nome daquela unidade da Fundação Leão XIII, fui despertado por uma
barulheira infernal, abri os olhos, ainda sonolento, e pude ver que o porteiro
do dormitório, com um pedaço de madeira na mão, batia contra as camas, que não
eram do mesmo material, talvez ferro, o que provocava o tal barulho. Fiquei de
pé quase sem perceber e, só então, senti que todo o meu corpo doía, resultado
de todas as noites mal dormidas dos últimos dias. Os homens, em número de cem
ou mais, estavam agitados, os que insistiam em permanecer deitados eram
“visitados” pelo homem do porrete. Pela janela, acima de mim, pude verificar
que ainda não era dia claro do lado de fora, pois estava escuro. Descobri,
assim, que ali se acordava às cinco e meia da manhã todos os dias: horário em
que todos eram obrigados a deixar o albergue e ir para a rua. Meio perdido,
tentei acompanhar o ritmo da casa. Vi que uma fila se formara na saída do
dormitório e que todos traziam nas mãos colchonetes e cobertores para devolver
ao porteiro, pois os mesmos eram cedidos apenas durante a noite. Após a
devolução, recebia-se o “papelzinho”, que devia ser entregue à cozinheira para ter
direito ao café da manhã. Por isso, peguei minhas bolsas, depois de dar uma
ajeitada no visual, e fui para a fila, que andava lentamente. Demorou até que
chegasse a minha vez; o porteiro discutia muito com os albergados e esse era o
motivo da lentidão: na verdade, ele retinha um documento de cada albergado,
como exigência para o empréstimo do colchonete e do cobertor, e se enrolava
todo na hora de devolvê-los aos donos; um pouco pela algazarra que todos faziam
e, também, pelo menos me pareceu, porque tinha dificuldade de leitura; alguns
perceberam e começaram a chamá-lo de analfabeto, fazendo-o, mais irritado
ainda, ameaçar deixar todos trancados o dia inteiro. A ameaça teve bom efeito; todos
pareciam ter pressa de sair dali e acabaram por concordar em fazer silêncio; atitude
que me deixou um tanto intrigado; quando cheguei ao refeitório, tudo se
esclareceu.
- Encerrou o café! gritou a cozinheira já
minha conhecida.
Aproximei-me dela e tentei argumentar dizendo que
era o meu primeiro dia e tal e coisa; não adiantou de nada.
- O café dos homens só é servido até às seis horas,
disse, sem se dobrar, anunciando que era a vez do café das mulheres e, consequentemente,
enxotando do refeitório todos os retardatários.
Conformado com minha sorte, eu fui procurar o Bagageiro,
nome como era conhecido o funcionário responsável por guardar os pertences
dos albergados; precisava me livrar das bolsas. Nova fila. Ao chegar a minha
vez, ele recusou-se a me atender alegando que eu teria de apresentar um papel
que só o serviço social poderia me fornecer. Mesmo depois de muita
argumentação, fui obrigado a permanecer na instituição, esperando pela
assistente social. Foi uma longa espera. Nesse tempo, pude ver como
funcionava o albergue: mulheres, crianças, e um senhor idoso, notoriamente
doente, cercado por pessoas que pareciam seus familiares, tomavam sol; alguns
homens, talvez maridos, estavam ao lado de algumas mulheres, que traziam filhos
pequenos no colo; duas mulheres, que pela conversa dava para perceber que não
eram funcionárias e sim albergadas, cuidavam da limpeza do pátio. Um
funcionário apareceu e, depois de elogiar o trabalho das duas voluntárias, se
dirigiu aos homens para lembrá-los que não podiam mais estar ali: durante o
dia, somente mulheres, crianças, idosos e doentes tinham autorização para
permanecer no local. Os homens resistiram e ele os pôs para fora, com a ajuda
de outros dois colegas. Imaginei que faria o mesmo comigo e me preparei para
dar uma explicação; o funcionário passou por mim, muito irritado, sem me notar,
bradando:
- É por isso que tão nessa vida! Só querem ficar na
barra da saia das mulheres. No meu plantão, eu não permito. Homens têm de sair
fora. Se vão trabalhar ou não, não é problema meu, mas aqui não ficam!
Ele sumiu, depois de cruzar a porta que dava acesso
ao refeitório. Foi quando uma mulher, com uma criança no colo, começou a
falar que o marido era doente e que não podia trabalhar.
- Fazem isso com ele porque não ajudo na limpeza.
Não sou puxa-saco! falou, calando de súbito, passando a andar, de um lado para
o outro, balançando-se, nervosamente, como se ninasse a criança que, contudo,
permanecia com os olhos bem abertos e com o dedo na boca.
Minutos depois, começaram a chegar alguns
funcionários, entre eles, estava a assistente social do dia, uma senhora de
meia-idade, que só me atendeu depois de um bom tempo de bate-papo com os
colegas; falou com a moça do serviço médico, com o rapaz da identificação com o
pessoal do SINE, havia um posto lá, com o pessoal da cozinha, enfim, falou com
todos, sempre com um senhor gordo, de fala fanhosa a segui-la, como se
estivesse tentando dizer-lhe alguma coisa importante. Entre os funcionários, o
assunto era o novo governo, suas recentes medidas e, obviamente, os baixos
salários do servidor público; pareceu-me ter ouvido alguém dizer que com a
entrada do “homem” muita cabeça rolaria: não foi difícil deduzir que o
tal “homem” era recém- empossado governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola.
Quando a assistente social, finalmente, me atendeu,
já eram quase onze horas da manhã: deu autorização para que eu usasse o
bagageiro, depois de me fazer passar pela identificação e pelo serviço-médico,
aonde o médico nem chegou a me examinar, contentando-se como uma rápida olhada geral
em mim, enquanto fazia algumas anotações numa ficha.
- Tá sentindo alguma coisa?
- Não, respondi.
- Então, pode ir.
Voltei à assistente social e, apesar de sua cara
carrancuda, ela acabou demonstrando certa simpatia, oferecendo-me um
“papelzinho” que valia como tíquete para almoçar.
- Aqui só é fornecido jantar e café da manhã, não
oferecemos almoço para os homens, somente para as mulheres e crianças, além de
alguns senhores de idade e doentes; estou lhe oferecendo, dessa vez,
porque ficou esperando desde cedo, é um caso excepcional, ela falou
entregando-me o papel.
Enquanto ela falava, rememorei o jantar da noite
anterior e quase agradeci a gentileza, dispensando o “papelzinho”, mas, naquele
adiantado da hora, já zonzo de fome, não tive como recusar; era a chance
de colocar alguma coisa no estômago, mesmo que fosse a pior comida do mundo, principalmente,
levando em conta o fato de que não tinha um tostão no bolso, aquela era a minha
única saída.
Guardei as bolsas no bagageiro e saí. Não tinha para
onde ir e no estado em que estava, com as pernas bambas de fome, não
conseguiria ir muito longe. Resolvi que caminharia até a Praça Coronel
Assumpção, conhecida como Praça da Harmonia, a uma questão de metros. Lá,
procurei um banco para sentar, uma vez que teria de esperar por quase duas
horas, pois o almoço era servido depois das treze horas. Já havia passado por
ali algumas vezes, porém, nunca tinha reparado a beleza de sua arquitetura: o prédio
do Moinho Fluminense e o quinto Batalhão da Polícia Militar, além de outras construções,
quase todas antigas, formam um conjunto arquitetônico apreciável. Apesar de a arquitetura
ter atraído minha atenção, foi em outro detalhe que me ative: a praça em si era
um tanto simples com seus bancos de madeira, os jardins semidestruídos, um
coreto no centro, que servia de moradia para alguns mendigos, ou antes,
albergados da Fundação Leão XIII que perdiam a hora da entrada; ao lado do
coreto, um busto do coronel Assumpção, que dá nome ao local, e uma placa onde
se podia tomar conhecimento de que o referido militar lutara na guerra do
Paraguai, fazia ainda parte da praça, um parque infantil, com alguns
brinquedos, quase todos destruídos, em frente ao albergue ficava o stand de
tiro da polícia e uma espécie de clube de recreação; era toda tomada por
mendigos, o que, me pareceu, inibia a presença ou passagem de moradores do bairro
da Saúde e adjacências, que não conseguiam desfrutar de sua área de lazer, como
pude comprovar já no primeiro momento. Identifiquei alguns rostos como sendo de
pessoas que eu vira no albergue e não foi difícil deduzir que passavam o dia
inteiro bebendo e achacando os poucos moradores do bairro que se aventuravam a
passar por ali. Vez ou outra, mas com alguma regularidade, surgia alguém com
uma garrafa de cachaça, que era logo consumida.
As horas passaram. Tendo chegado ali por volta de
onze e meia, só deixei a praça às sete da noite, quando já se fazia escuro.
Permaneci sentado, o dia inteiro, no mesmo banco, exceto na hora em que fui
almoçar, dessa vez, talvez pela fome que eu sentia, consegui comer e achei que
não estava ruim. O único problema foi a falta de talher; tive de esperar que um
senhor terminasse de almoçar para que pudesse me emprestar o dele. O almoço me
devolveu o ânimo, mas, por estar tarde, fui ficando por ali. Evitei pensar nos
meus problemas, o que foi até fácil, uma vez que tudo o que me cercava
era novo, a cada momento era surpreendido por alguma coisa ou alguém,
como o senhor que sentou do meu lado – uns setenta anos, cabelos brancos, mas
ainda forte, com uma perna visivelmente mais grossa que a outra, além de
azulada e ferida, o que atraía moscas – e me contou que era aposentado, morava
com uma sobrinha, que o maltratava e lhe tirava todo dinheiro de sua pensão, disse
ainda que tinha um terreno em Santa Cruz, subúrbio do Rio de Janeiro, e no
terreno um barraco que precisava de uns consertos, no entanto, ele, velho e
doente, não tinha como fazer os consertos, se encontrasse um rapaz bom
para lhe ajudar daria moradia e comida, sem cobrar nada; só queria a
companhia.
- Tô velho e doente! repetia.
Ao perceber que eu não me ofereceria como voluntário
para salvá-lo das garras de sua cruel sobrinha, ele levantou, mancando muito e
se equilibrando com uma espécie de bengala, e foi sentar-se noutro lugar. Assim
que ele saiu, um rapaz se aproximou de mim para dizer que se tratava de um
maluco, na verdade, um mendigo que vivia pela área e sempre que via alguém
disposto a ouvi-lo contava a mesma história.
Deixei a praça, fui direto para a porta do albergue
e lá entrei na fila que na noite anterior fiquei reparando, agora estava no
meio deles, era um deles. Fui tomado por uma estranha sensação, um misto de vontade
de sair dali misturado com o sentimento de que não tinha outra saída senão
enfrentar a situação e tratar de me adaptar à realidade. Foi difícil controlar
o ímpeto de voltar à praça; a possibilidade de que algum conhecido me visse
naquela fila me deixou mais apavorado ainda. Somente aos poucos fui me acalmando,
mesmo assim, procurei não conversar com as pessoas e mantive certo distanciamento
de tudo; acreditava que agindo dessa maneira estaria um pouco protegido de tudo
aquilo: estar ali significava o fim.
O porteiro, hoje um negro forte e de voz rouca –
de métodos similares ao de seu colega da primeira noite – começou a
permitir a entrada do pessoal da fila. Passei por ele e mostrei a autorização
que me dava direito a dormir por três dias, como faziam todos os outros, e ele
fez um sinal qualquer no papel. Nova fila me esperava, dessa vez, para pegar o
“papelzinho” para a janta e a dormida. O jantar, arroz, feijão e legumes
cozidos, até que desceu bem. O problema, mais uma vez, foi o talher. Levei
muito tempo tomando coragem para me aproximar de alguém e pedir emprestado. Percebi
que muitos tinham suas próprias técnicas para substituir o garfo ou a colher: uns
comiam, literalmente, com as mãos, o gesto provocava um espetáculo um tanto
grosseiro e nojento, devido a pouca higiene da cena; outros usavam
carteiras de identidade, documentos plastificados, e até cascas das frutas
servidas na refeição, como laranjas, por exemplo.
Mais uma vez, eu estava de pé numa fila, essa era
para entrar para o dormitório. Um homem de meia-idade, baixinho e gordo, ficou
ao pé da escada recolhendo o “papelzinho”, o mesmo usado para o jantar, que eu
havia entregado à cozinheira e ela me devolvera com um pequeno corte. A fila
seguia passando por um rapaz magro de uns trinta e poucos anos que estava
na porta do dormitório distribuindo colchonetes e cobertores. Pensei que, a
exemplo do que eu vira pela manhã, exigiria algum documento, porém ele me
entregou um colchonete e um cobertor, ambos muito sujos e malcheirosos, dizendo
que confiava na devolução pela manhã, para ele, a devolução dependia da
consciência de cada um; se os colchonetes e cobertores desaparecessem, os
prejudicados seríamos nós. Uma vez dentro do dormitório, procurei um local para
dormir. As camas, que eram poucas, já estavam todas ocupadas pelos que chegaram
primeiro. O jeito foi me contentar em dormir no chão, como na noite
anterior; dessa vez, fui alertado para a existência de umas tábuas que eram
usadas para colocar o colchonete em cima e com isso livrar-se da umidade do
piso de cimento. Ajeitei tudo como deu e sentei. Ainda era cedo e não estava
com sono, para matar o tempo, passei a reparar o movimento de pessoas à minha
frente: gente de todos os tipos, sotaques, cores, brasileiros e estrangeiros,
sobretudo latino-americanos, e percebia-se que muitos já se conheciam, alguns
passavam para o chuveiro, que ficava do lado de fora e voltavam com os corpos
molhados, fazendo crer que ali havia a prática do banho, pelo menos, para uma
minoria. Escolhi dormir perto da porta, julgando que, em caso de tumulto, estar
próximo à saída seria melhor. Depois de umas duas horas, a luz se apagou pegando
muitos de surpresa, pois a maioria ainda conversava em grupos. Houve
corre-corre, muitos falavam alto, procurando suas camas, e isso gerou uma grande
agitação. Vencido pelo cansaço, adormeci logo, sem perceber que, a
partir daquele dia, dava-se início a uma rotina que se repetiria por muito
tempo.
Capítulo 3
A PRIMEIRA LIÇÃO
Nos dois dias que se seguiram, travei uma verdadeira
luta contra o tempo na esperança de arrumar um emprego para sair do albergue; não
conseguia conceber a ideia de permanecer naquele lugar por muito tempo. Por
isso, desde que acordava de manhã até o final da tarde não tinha descanso: saía
de uma agência de emprego para outra preenchendo fichas, fazendo entrevistas ou
correndo os anúncios de jornal, muitas vezes, na companhia de Geraldo, um
pernambucano de Olinda, de uns vinte e poucos anos, sotaque bastante carregado,
que fazia questão de apregoar a todos sua opção sexual, seu mantra era: eu
sou “baitôlo”, sabe? Dono de uma fala grossa, e de gestos abrutalhados, era uma
figura engraçada. Único companheiro naqueles primeiros dias, o conheci na fila
de entrada do albergue, estava com algum dinheiro e, às vezes, me pagava um
lanche; não conhecia a cidade, estava fazendo sua primeira viagem ao Rio de
Janeiro, vindo de São Paulo, onde dizia ter morado por dois anos, e pediu que eu
o levasse a alguns endereços, então, pude conhecer seu lado extrovertido e
alegre: dava calote nos ônibus, pedia comida nos restaurantes e bares e aceitou
Jesus num culto realizado por evangélicos na Central do Brasil, em troca de
algum dinheiro que o Pastor recolheu entre os fiéis, depois que deu um
depoimento dizendo-se um crente no desvio, disposto a se regenerar, dependendo,
para isso, apenas da colaboração de todos. A atitude me deixou bastante
envergonhado, mas, de certa forma, gostei, pois ganhei um lanche logo depois,
numa lanchonete na própria Central do Brasil. Num final de tarde, andando pelo
Aterro do Flamengo, após atender a alguns anúncios de emprego, resolvemos
sentar debaixo de uma árvore para descansar. Próximo à árvore havia um grande
despacho feito com balas, doces, bombons e brinquedos. Olhei para aquilo,
temeroso, e disse que, por uma questão de respeito, não deveríamos mexer. Ele
não me deu ouvidos e, sem a menor cerimônia, pôs-se a devorar vorazmente tudo o
que via pela frente, numa disputa sem trégua com as formigas e outros insetos;
vez ou outra me oferecia algum doce que, apesar da fome, não me atrevi a sequer
tocar. Naquele dia, voltamos ao albergue sem conseguir nada.
No segundo dia, Geraldo comprou um jornal e
encontrei nele alguns anúncios de emprego que batiam com a minha experiência,
separei-os, tratei de traçar um roteiro, e verifiquei que ele pretendia
fazer um caminho completamente diferente; decidimos, então, que cada um sairia para
o seu lado. Minha caminhada começou pelo bairro do Santo Cristo, se estendeu
até a Rua República do Líbano, na Saara, no centro da cidade, e lá pelas onze
horas cheguei, caminhando, em Botafogo para atender a um anúncio de uma
revendedora de carros que pedia um auxiliar de escritório. Um senhor de meia-idade
me atendeu e foi logo perguntando se eu tinha ido pelo anúncio. Respondi que
sim e ele continuou:
- Do Dia ou do Globo?
- Do Dia, respondi, faz diferença?
- Só para saber, ele respondeu após pegar minha
carteira profissional e examinar, ora o documento, ora a mim,
propriamente, momentos em que olhava por cima dos óculos, voltava a abaixar os
olhos; finalmente, falou: Vamos fazer um teste.
Apesar de nervoso, sentei e mostrei habilidade executando
tudo o que ele pedia.
- Nada mal, comentou entre dentes, entusiasmado
claramente com o meu desembaraço, depois, ele me encarou: Tem todos os
documentos?
- Sim, respondi me apressando em mostrá-los.
- O senhor teria algum problema em começar na segunda-feira?
ele perguntou depois me de olhar demoradamente.
- Não! Até hoje mesmo, se o senhor quiser.
Passados alguns minutos de conversa, ficou acertado
que eu deveria mesmo começar na segunda-feira; era o tempo que, segundo o
entrevistador, eu necessitaria para reunir os documentos requisitados. Fui
invadido por um sentimento confuso, misto de felicidade, alegria, vitória,
vontade de chorar, gritar: eu tinha conseguido! Poderia sair do albergue, aquele
lugar sujo e deprimente. O salário não era ruim, dois mínimos para começar, era
tudo o que eu precisava para sair da situação desesperadora em que me
encontrava. Já estava agradecendo a Deus, em pensamento, quando ele perguntou:
- Onde mora?
Fiquei calado por algum tempo; não esperava aquela
pergunta. Ele repetiu, de forma mais insistente; a informação era importante
por causa do vale-transporte.
- Se você morar muito longe...
Abaixei a cabeça e pensei um pouco: eu poderia
inventar uma história e fornecer um endereço qualquer, por fim, eu e o encarei
dizendo com a voz embargada:
- Eu... bem... estou no albergue da Fundação Leão
XIII, na Praça da Harmonia, na Saúde. É que, como o senhor sabe, estou
desempregado há algum tempo, sou de Minas, não tenho parentes na cidade, acabei
sem ter onde morar e aí...
Fui estimulado a contar toda a minha história, e
cheguei a acreditar que aquela fosse a melhor saída, visto que, durante o
relato, o homem se mostrava compreensivo em seus comentários e apartes. Quando
cheguei ao final, tive a sensação de que iria chorar.
- Infelizmente, não poderei admiti-lo; a firma exige
comprovante de residência como parte dos documentos e, pelo jeito, o senhor não
terá como conseguir um, não é mesmo? Essas casas, albergues, são abrigos
provisórios. Sinto muito, senhor Julio, ele falou calmamente.
Não sei como consegui sair dali, porém, em poucos minutos,
estava andando desatinadamente pelas ruas do bairro, procurando uma explicação
para o que acabara de acontecer; além de tudo o que estava passando, tinha de
enfrentar o preconceito por estar naquela situação. Andando a esmo, acabei
chegando às proximidades da Avenida Oswaldo Cruz, no Flamengo, onde acontecia
uma feira, estava no final: legumes, frutas, verduras, restos de peixes, tinha
de tudo caído pelo chão; movido pela fome, que o sol quente só fazia
aumentar, passei a andar entre os detritos para ver se encontrava algo em
condições de comer, peguei algumas bananas, laranjas, um mamão, tudo muito amassado;
abaixava e calmamente apanhava tudo no chão, sem o menor constrangimento, em nenhum
momento, pensava no que estava fazendo. Perto de mim, um feirante, de sotaque
português, tentava espantar alguns garotos que circulavam em torno de sua
banca.
- Saiam daqui! Ainda não está na hora de xepeiro,
gritava ele.
Já abastecido, atravessei a rua e ganhei o Aterro, escolhi
a sombra de uma árvore e me pus a comer tudo aquilo com uma fúria animalesca, sem
me preocupar com o estado das frutas ou mesmo com a higiene: precisava matar
minha fome e era isso o que importava.
Mais tarde, quando chequei à Praça da Harmonia, contei,
numa roda de albergados, o que havia acontecido, e todos foram unânimes em
dizer que eu tinha cometido uma grande burrice: se eu quisesse arrumar
emprego, ou mesmo ter um convívio normal com as outras pessoas, nunca deveria
mencionar que era um albergado da Fundação Leão XIII.
- Todo mundo sabe que Fundação Leão XIII é lugar de
mendigo, afirmou um.
- Ninguém vai dar emprego a alguém que “mora” aqui,
avisou o outro.
A conversa ainda rendeu por alguns minutos. Permaneci
calado, apenas ouvia o que todos, do alto de suas experiências de vida na rua, tinham
para dizer. Naquele momento, cheguei à conclusão de que ainda tinha muito a
aprender sobre o mundo hostil que me rodeava.
Com o grito do porteiro, tratamos de nos ajeitar na
fila, e, logo a seguir, ele começou a permitir a nossa entrada. Dentro do
albergue, o plantonista, ao me dar o “papelzinho” para jantar, ficou com a
minha autorização e disse que eu deveria procurar o serviço social no outro
dia. Entendi que ele agiu daquela maneira devido ao fato de que a autorização
era para três dias, aquele era o terceiro e, portanto, o último da minha
hospedagem. Quando cheguei ao refeitório, havia uma confusão formada: um
albergado falou mal da comida e, por isso, ofendeu os brios das
cozinheiras. Os plantonistas, além do soldado da polícia militar,
ostensivamente armado, sem a presença do qual o jantar não era servido, foram
chamados. A janta foi interrompida, provocando uma inquietação geral. O
responsável pela confusão se escondeu no meio dos outros, quando viu a situação
ficar ruim para ele. Isso fez com que os plantonistas e o policial andassem
indagando à sua procura. O policial tomou a palavra e fez ameaças dizendo que,
se o culpado não aparecesse, a sopa não seria servida. Diante da audiência
silenciosa, fez um elogio ao governo que, segundo suas palavras, não
tinha obrigação de alimentar vagabundo; aquela sopa estava além do que
merecíamos, portanto, deveríamos agradecer e não falar mal. Terminado o
discurso, como ninguém se manifestou, ele resolveu chamar as cozinheiras
ofendidas para que elas reconhecessem o agressor, o que provocou grande
apreensão; elas andaram pelo refeitório, repetindo a ação de seus colegas, de
repente, uma delas falou apontando na minha direção:
- É ele!
Tive a impressão de que era para mim que ela estava
apontando e senti o chão faltar debaixo dos meus pés. Os plantonistas e o policial
caminharam na minha direção: “O que essa cozinheira maluca tá fazendo?” Não
sabia o que pensar. Já estava pronto para esboçar alguma reação, quando vi um rapaz
magro, branco, e aparentando uns trinta anos, encolhido do meu lado.
- Foi aquele engraçadinho ali, ela completou.
O rapaz tentou se explicar, mas não teve jeito; foi arrastado
dali até o portão, de onde foi empurrado para o meio da rua. Os plantonistas e
o policial vociferavam palavras que não deu para escutar direito, mas que não
foi difícil de imaginar. Logo a seguir, retornaram ao refeitório, onde reinava
o mais absoluto silêncio. Um dos plantonistas passou a falar, nervosamente, nos
alertando de que não estava ali para aturar insubordinação e desaforo de
mendigos vagabundos; e, bastante alterado, parecia esperar que alguém tivesse
algum tipo de reação para que pudesse colocar para fora toda sua fúria: ninguém
se manifestou. Minutos depois, a sopa voltou a ser servida. Timidamente, o
burburinho e a algazarra, comuns da hora do jantar, foram retornando. Pouco
depois, nada fazia lembrar o que tinha acabado de acontecer; como todos os
outros, eu estava faminto e preocupado apenas em conseguir tomar aquela sopa
quente e rala, porém, muito bem-vinda.
No dormitório, quando as luzes finalmente se
apagaram, tentei dormir, e não consegui. Lá pelas tantas, percebi uma grande
movimentação: vultos passavam de um lado para o outro, uns solitários, outros,
em grupos, cochichavam entre si. Com algum esforço, notei que eram os travestis
que vira na entrada; eram em número considerável e, agora, falavam alto.
- Oxente! Será que não tem macho neste Rio de
Janeiro? gritou uma voz com sotaque nordestino.
Abri os olhos e vi que o Geraldo estava entre os
travestis. Aquela movimentação durou algum tempo. Houve gritos, gracejos e
trocas de insultos. Alguém se dirigiu à porta de entrada do dormitório e gritou
pelo plantonista, as luzes se acenderam e ele apareceu com um porrete na
mão, fez algumas ameaças e prometeu expulsar os baderneiros, a essa altura,
impossíveis de serem distinguidos pelo silêncio que se fez, repentinamente, tão
logo as luzes se acenderam. Passado um tempo, o homem foi embora. Novamente, as
luzes se apagaram e a movimentação recomeçou. Da minha parte, não consegui
dormir, dominado por ideias um tanto derrotistas.
Capítulo 4
MINHA HISTÓRIA
O quarto dia no albergue foi, sem dúvida, decisivo e
marcou profundamente minha passagem pela instituição, revelando um mundo do
qual eu viria a fazer parte integrante, levado por uma força inexplicável; mesmo
com tudo o que vinha me acontecendo nos últimos tempos, nada se compararia
àquilo, pois conheceria toda a miséria humana, uma miséria que eu não sabia se seria
capaz de suportar.
Depois de dormir entregue a pensamentos nada
otimistas, acordei sem nenhuma esperança de dias melhores; embora tentasse me
convencer do contrário, tinha perdido a convicção inicial e já não acreditava
que sairia daquela situação assim tão facilmente. Para piorar as coisas, estava
novamente sem um lugar para ficar; os três dias de estadia, que me foram
concedidos quando cheguei, expiraram, entretanto, não sabia se valeria a pena
continuar “hospedado” ali no meio daqueles farrapos humanos, enfrentando as
afrontas e humilhações que eram impostas a todos pelos funcionários e pela
própria situação em si; por outro lado, não tinha escolha: era ficar no
albergue ou voltar para a rua. Apesar de todo o meu dilema, esse era um assunto
para depois; antes de tomar qualquer decisão, eu precisava entrar na fila do
café; por estar sem dinheiro, eu não podia dispensar.
O refeitório estava lotado e, por um momento,
fiquei assistindo a tudo meio de lado: as duas cozinheiras estavam atrás de
dois grandes caldeirões de alumínio, num estava o café e no outro, o pão. Achei
esquisito ver uma tirar o café com uma concha dessas usadas para sopa e, com
ela suspensa, gritar para que o albergado posicionasse melhor o
copo – a cena não era nada diferente a da hora sopa, à noite. –, em
seguida, a outra cozinheira pegava o pão com a mão e o entregava ao albergado.
Era tudo muito grosseiro. Pensei em desistir; tive a impressão de que a mão da
mulher era suja. O bom-senso lembrou-me que eu não estava em condições de fazer
qualquer tipo de conjectura, afinal, estava faminto e precisava comer, e era
isso o que contava; o resto, era frescura de um cara que ainda não estava
completamente consciente de sua real situação. Levado por esse pensamento, eu
entrei na fila, até porque, não restava muito tempo; dali a pouco, uma das
cozinheiras gritaria que o café estava encerrado, como vi acontecer nos dias
anteriores. Permaneci na fila até que chegou a minha vez: trabalho perdido; a
cozinheira, estupidamente, avisou-me que não forneciam copos; e, sem um copo,
era impossível tomar o café. Segundo ela falava, aos berros, todos os copos que
existiam ali sumiram, e eu, assustado, não sabia o que fazer. A situação
deixava claro o quanto os funcionários da Fundação Leão XIII eram estúpidos e
impacientes com os albergados; em geral, pareciam agir de combinação, dando a
entender que aquele tipo de procedimento era a norma da casa. Saí da fila e
parti para ver se conseguia um copo emprestado; tinha a ideia fixa de que precisava
comer alguma coisa, à minha frente tinha um longo dia e talvez aquela fosse a
única chance que eu teria de colocar alguma coisa no estômago. Foi difícil e só
depois de pedir para e um e outro é que acabei conseguindo: não era um copo e
sim uma lata de conserva vazia, talvez extrato de tomate ou salsicha. Quase
todos usavam lata, ou garrafa de água mineral cortada: copos improvisados, que
os donos se negavam a emprestar, como se fossem de cristal e pudessem se
quebrar. Além da negativa, muitos sugeriam que eu deveria fazer como todos
eles, ou seja, pegar uma lata, a rua estava cheia delas, e transformá-la num
copo, pois eu não era melhor do que eles, ou era? Dessa forma, me davam mais
uma grande lição: um albergado precisava ser um tanto precavido; por ser
obrigado a enfrentar muitas situações inesperadas durante todo o tempo, tinha de
lançar mão de alguns expedientes vitais para a sobrevivência na “selva”, por esse
motivo, todos carregavam consigo uma mochila, bolsa de mão ou mesmo sacolas de
supermercado contendo pequenos objetos de uso diário, os copos para o café e a
água e as colheres para a sopa estavam entre os itens indispensáveis; muitos
traziam até pratos, para o caso de conseguir comida na rua, na mochila deveria conter
também uma muda de roupa, pois nunca se sabia o que poderia acontecer e o
bagageiro tinha hora certa para funcionar: abria durante, mais ou menos, uma
hora, duas vezes por dia, às seis da manhã e às cinco horas da tarde, no
restante do dia ficava fechado; outros objetos, como pente, escova de dente,
espelho e barbeador fechavam a lista de prioridades; não devia se esquecer de
guardá-los bem, os roubos eram comuns, principalmente, de copos, pratos e
talhares, objetos bastante visados; fato que viria a se comprovar com as muitas
brigas que presenciei causadas por furtos dessa natureza, geralmente, os roubos
aconteciam no refeitório; nem as presenças dos plantonistas e do policial
intimidavam.
Quanto ao café, minha salvação, mais uma vez, foi o
Geraldo, que conseguiu um copo emprestado com um colega dele, uma vez que já
estava completamente enturmado. Aproximei da cozinheira e ela, enquanto me
servia o café, avisou que não poderia repetir, e a que servia o pão, disse a
mesma coisa:
- Um pão para cada um; ainda falta muita gente.
Afastei-me, sem dizer nada, e fui para um canto. Não
se tratava realmente de café a água marrom que estava no copo; apenas estava
muito quente, quanto ao gosto, não dava para definir; o pão, duro e
velho, cheirava a mofo e o gosto não era nada bom. Comi assim mesmo; não
sabia o que viria depois.
Geraldo despediu-se de mim, com sua habitual alegria,
e foi à luta; continuava otimista quanto ao seu futuro, e conseguir um emprego
era uma questão de dias, afirmava ele. Quando ele saiu lembrei que tinha de decidir
o meu destino. Na mente, apenas a certeza de que na rua não dava para ficar; no
albergue, eu, de certa forma, estaria protegido. Decidi que falaria com a assistente
social e tentaria conseguir mais uns dias; o plantonista tinha me avisado que
sem a autorização eu não entraria no albergue de jeito nenhum. Fato que eu já
havia presenciado nas noites anteriores, pois sempre tinha alguém tentando
explicar aos porteiros que não tinha tido tempo de falar com assistente social
por esse ou aquele motivo; o que de nada adiantava, porque todos eram
irredutíveis: sem a autorização não entravam e a saída era dormir na rua.
Tudo transcorreu como no primeiro dia: as mesmas
cenas, as mesmas pessoas, tudo igual. Dessa vez, o funcionário que veio
expulsar os homens, que insistiam em permanecer no albergue, tentou me colocar
para fora também: expliquei a razão da minha presença ali e ele concordou que
eu ficasse. Pela primeira vez, comecei a demonstrar certa impaciência, foi
difícil esperar tanto tempo; o cigarro tinha acabado e já fumava na base do “se
me dão”. Sem nenhuma timidez, eu abordava um e outro e pedia, repetindo a
mesma atitude que achara estranha no primeiro dia. Tive a falta de sorte de
pedir cigarros a um funcionário e ele reagiu muito mal. Descobri com isso que,
pelo fato de não usarem uniforme, era fácil confundir um funcionário com um
albergado. A única coisa que os diferenciava era a arrogância e a tendência aos
maus-tratos. Quando via alguém maltratando uma pessoa e ela, estranhamente, não
apresentar nenhum tipo de reação, concluía que se tratava de um funcionário ou
funcionária. No mais, não havia grande diferença; eles eram, salvo algumas
exceções, negros ou mulatos, com idades por volta dos quarenta anos, de
aparências muito simples, e eram um tanto desajeitados no trato com os
albergados, muitos eram conhecidos por sua truculência e, por isso, temidos; a
confusão na distinção entre funcionários e albergados aumentava devido à
existência de funcionários que, na verdade, eram também albergados.
Fui atendido por volta de dez horas. Quando entrei
na sala da assistente social, ela foi logo perguntando se eu tinha encontrado
trabalho, e não esperou a resposta: avisou que, se eu não conseguisse alguma
coisa, não teria meu prazo de permanência no albergue renovado. Depois, fez um
longo discurso, que eu não fiz questão de prestar atenção, pois, enquanto ela
falava, fiquei reparando que a sala do serviço social era grande, bastante
espaçosa: umas quatro ou cinco mesas, dessas de escritório, e alguns armários
compunham o mobiliário antigo, empoeirado e maltratado; as mesas vazias faziam
crer que, pela manhã, a assistente social, de nome Renê, como eu viria
saber, trabalhava sozinha. Voltei a prestar atenção no que ela dizia no momento
em que me apresentava um papel xerocado, quadrado, os dias do mês
datilografados nas bordas e, no centro, um espaço para o nome e o número do
portador: era a autorização. Eu poderia ficar no albergue mais alguns dias, tempo,
segundo ela, suficiente para eu resolver o meu problema de emprego e moradia.
Aconselhou-me a cuidar bem do papel, que ela chamava de cartão de
identificação: tudo o que eu fizesse ali teria de apresentá-lo, pois era a
minha identidade dentro do albergue. O atendimento chegou ao fim com ela me
avisando que havia uma agência do SINE dentro albergue, com muitas vagas em
aberto. Comentei que minha função era na área de contabilidade e ela disse que
as vagas eram para serviço braçal e, quando muito, para serviços gerais.
- É para esse tipo de função que procuram aqui,
completou.
Se eu quisesse trabalhar, ela disse, não poderia
escolher, deveria ir até a agência e aceitar o que me oferecessem; fiz o que
ela sugeriu. Na sala do SINE, o funcionário a desmentiu dizendo que não tinha
nenhuma vaga para homens, apenas para empregadas domésticas. Saí dali e
fui para a praça. Nessa hora, o sol queimava sem piedade, a fome já dava sinais
e eu estava bastante desanimado. A decepção com o emprego no dia anterior ainda
era forte e fez com que apagasse todo o meu otimismo. Sentei num banco para
decidir o que fazer, uma vez que não poderia sair a esmo pela cidade, precisava
traçar um roteiro: aonde ir e que caminho tomar.
Com o cartão do albergue ainda nas mãos, tentava
decifrar algumas coisas que estavam escritas nele; além do meu nome e do prazo
de validade, tinha um número, não me recordo que número era esse; lembro-me que
tentei descobri seu significado e conjecturei que poderia ser aleatório, mas
também poderia significar a quantidade de albergados, número de atendimentos
feitos pela instituição ao longo do tempo, uma classificação interna ou
qualquer coisa do gênero. Desisti da empreitada, concluindo que isso não tinha
a menor importância, aliás, naquele momento, quase nada importava.
Quatorze dias – esse foi o tempo que a assistente
social me deu – era tempo demais, pensava comigo. Cheguei a dizer para ela que
não precisava de tanto tempo; eu arrumaria um emprego em poucos dias: “Nunca
fui vagabundo”, pensava. Só estava ali porque não tinha recebido os dois
últimos salários no emprego de assistente de produção num programa da
Rádio Continental, o programa de variedades, “Mulheres em Ação”, apresentado por
Deise Borges e ia ao ar das sete às nove horas da manhã, de segunda a
sexta-feira, e vinha da TV Corcovado, onde foi apresentado das três às cinco da
tarde, de segunda a sexta-feira, até que tinha audiência, mas, por ocasião das
eleições, entrevistou alguns candidatos a deputados estaduais pelo PDT, como
Cidinha Campos, José Louzeiro e Regina Gordilho e isso trouxe problemas; o
assunto da entrevista foi o trabalho que o governador Moreira Franco vinha
desenvolvendo no estado do Rio de Janeiro e, como opositores do governo, os
candidatos não pouparam críticas. Apesar de o programa ter tido alguma
audiência, a TV Corcovado, por ter toda a sua programação patrocinada pela LOTERJ,
o tirou do ar, provavelmente, temendo perder o patrocínio. Na Rádio
Continental, a repercussão não foi muito boa e não conseguiu patrocinadores.
Somando tudo isso ao caráter pouco confiável da apresentadora Deise Borges era
por esse motivo que eu estava ali. O programa, dentre outras coisas, em sua temporada
no rádio, tinha uma parte dedicada ao acolhimento de pessoas necessitadas e
desabrigadas, que eram encaminhadas às instituições do governo. Deise, que
tinha a intenção de se candidatar a algum cargo público, usava isso como forma
de se autopromover. Fazia parte do meu trabalho na produção ligar para
instituições como a Fundação Leão XIII para tentar conseguir ajuda para algum
desabrigado ou para famílias que procuravam a produção, e jamais imaginei que
um dia estaria na mesma condição; depois que o programa saiu do ar, usei todos
os meios possíveis para receber os dois meses de salário que Deise me
devia, mas não consegui: ela alegou que estava falida. Sem saída, fui obrigado
a deixar a casa onde morava em Mesquita, nesse caso, dizer que fui
obrigado é força de expressão; pela dona da casa, a Léla, talvez eu ainda estivesse
morando lá até hoje, mas não era justo continuar morando sem pagar nada, além
do mais, ela era viúva, mãe de dois filhos pequenos e precisava do dinheiro do
aluguel do quarto para ajudar no orçamento da casa. Cheguei a ela através do
Paulo, seu “irmão de santo”, um mineiro de Belo Horizonte; dividi um
apartamento, em Botafogo, com ele e seu companheiro, Jaílson, logo que cheguei ao
Rio, em julho de 1989 e, com eles, me mudei para Juscelino, Nova Iguaçu. Quando
resolveram voltar para Minas, depois que o Paulo perdeu o emprego de cozinheiro
num conhecido restaurante da cidade, e eu não tive condições de ficar com o apartamento,
ele convenceu a “irmã” a me alugar um quarto em sua casa. O fato de estar
vivendo praticamente de favor não me agradava e, mesmo sabendo que a
minha atitude seria classificada como arrogante e orgulhosa, decidi
deixar a casa para enfrentar o mundo com a cara e a coragem, porém, não poderia
imaginar no que daria minha atitude. Quando, já na rua, lembrei-me da
existência da Fundação Leão XIII, foi muito triste e irônico, portanto, só dava
para me imaginar passando ali mais quatro ou cinco dias, no máximo, quatorze
eram impensáveis, inconcebíveis mesmo; logo, eu arrumaria um emprego, que teria
de ser numa firma, emprego formal, com todos os direitos assegurados; era por
falta de uma carteira-assinada que eu estava com tanta dificuldade para receber
de Deise: nosso trato era de boca, trabalho informal, sem nenhuma garantia. Todavia,
para um arrumar um emprego, era preciso que eu levantasse o traseiro daquele
banco e saísse em campo. No entanto, se o meu pensamento exigia uma reação, o
corpo não, e, por mais que eu tentasse, não conseguia arredar o pé daquele
lugar. Passei o dia inteiro nesse embate: a mente queria uma coisa e o corpo
outra. Quando dei por mim, já eram sete horas da noite e tinha ficado o dia
inteiro na praça, envolvido com seu movimento. Vim a dar por mim, ao entrar na
fila, na porta do albergue e, como qualquer outro faminto, eu esperava pela
sopa; a fome tem um desespero, uma urgência que jamais pensei que tivesse: agora
entendia aqueles olhares desesperados, fixos no portão fechado. Apesar de estar
zonzo e com as pernas bambas, não deixava de reparar tudo à minha volta e buscava
desenhar um passado para cada um daqueles personagens à minha frente: Vítor
Hugo não os imaginou; eram miseráveis reais. Ironicamente, cheguei à minha
própria história: nasci, numa família de classe média pobre, na cidade de Ibiá,
no interior de Minas Gerais. Meu pai, Adão Moreira, era telegrafista da Rede
Ferroviária; minha mãe, Maria Aparecida Moreira, além de dona-de-casa, era
costureira, tiveram dez filhos: Adãozinho, Luís Antônio, Carlos Roberto, Nely
Eva, Márcia, Telma, Eloisa, Dimas Eduardo e Paulo Rogério e eu, Julio, que sou
o quinto filho. Morávamos numa casa grande, com um quintal imenso e posso
afirmar que tive uma infância feliz, embora os pais fossem muito severos, principalmente
minha mãe, havia fartura na mesa, não faltava nada, e preocupação com a educação
e a saúde dos filhos, ao mesmo tempo em que nos alertavam para a necessidade de
cada um ganhar seu próprio dinheiro. Comecei a trabalhar cedo: trabalho braçal,
nas lavouras e fazendas; com a chegada dos “japoneses” à cidade, essa era a
única forma para um pré-adolescente pobre, como eu, ganhar algum dinheiro. Pouco
depois, fui trabalhar como balconista numa livraria, a Joia Papelaria, de
propriedade da Maria Conceição de Ávila, a Sãozinha, a única papelaria da
cidade, o que dava certo status e representou, para mim, uma espécie de
“subida” na vida; não tinha mais de levantar de madrugada, viajar na carroceria
daqueles caminhões, comer comida fria ou azeda, enfrentar sol, chuva e animais
ferozes, passei a trabalhar limpo e bem arrumado. Foi por essa época que aprofundei
meus conhecimentos: aluno do segundo grau, eu tinha sempre os livros e
informações em primeira mão, sem contar que a livraria era também papelaria,
loja de presentes e vendia todo tipo de revistas e era um ponto de grande
movimentação na cidade.
Minha inclinação inicial foi para o sacerdócio e cheguei
a tomar a decisão de me tornar padre, mas a vocação para a arte de representar
falou mais alto, uma vez que atuava como ator amador na cidade, mais
precisamente, no Grupo Teatral Renascentista Ibiaense, conhecido pelas iniciais
G.T.R.I., formado, em sua maioria, por alunos do Colégio São José como o Wilmar
Silva, o Roberto Natalino, a Leila Xavier, o José Wilson Andrade, dentre
outros. O colégio São José era um colégio de freiras e foi onde fiz o curso de
técnico em contabilidade, logo depois, já decidido a ser ator profissional,
resolvi abandonar o terceiro período do curso de Letras, na Faculdade de
Filosofia Ciências e Letras de Patrocínio e me mudei para Belo Horizonte, para
fazer um curso de teatro no NET (Núcleo de Estudos Teatrais), onde conheci
muita gente boa, e dei seguimento à carreira. Após quatro anos na cidade e de
me profissionalizar como ator, eu resolvi sair do emprego e me mudei para o Rio
de Janeiro, grande sonho da minha vida. Uma vez no Rio, tentei conseguir alguma
chance na Rede Globo e na Rede Manchete, na época com um núcleo de dramaturgia
atuante, mas nada consegui. Guardo dessa época uma lição que recebi, dada pelo
ator José Wilker, pois costumava ir para a porta da TV Globo, no Jardim
Botânico, na esperança de conseguir alguma coisa, normalmente, ficava ali perto
do bar Século XX, um dia, vi o ator tomando café no bar e tive a ideia de me aproximar
e conversar com ele; pelo que me constava, ele era o diretor de dramaturgia da Manchete
e eu vi ali a chance de conseguir, pelo menos, um teste. Timidamente, toquei no
assunto e ele foi incisivo ao dizer que não estava mais na emissora e que, como
eu, também estava pedindo emprego, ou seja, estávamos no mesmo barco. Diante
dessa realidade, o jeito foi tentar voltar para o mercado de trabalho
convencional, o que não estava nada fácil; o recentemente empossado presidente
da república, Fernando Collor de Mello, com suas medidas catastróficas,
só fez piorar tudo, um anúncio na televisão me levou até Deise Borges e através
dela eu estava ali.
Tentei desviar o pensamento, esquecer que um dia
tive casa, família, comida farta na mesa, amigos e sonhos; precisava evitar me
fragilizar, nada de autopiedade, não tinha de ficar querendo me transformar
numa vítima do sistema, embora tivesse alguma consciência disso, a indiferença,
naquele momento, era o remédio. Alguém tentou furar a fila e uma confusão teve
início, de repente, me vi no meio dela, brigando pelo meu lugar, como qualquer
outro, defendendo o direito de ser um dos primeiros a entrar; a fila começava
cedo, por volta das cinco horas, e todos sabiam que deixar para entrar nela
tarde significava ter de esperar mais tempo pela sopa; por volta de sete horas,
ela se tornava muito grande e confusa.
O portão abriu e o porteiro apareceu dando a
entender que estava na hora de entrar. O mesmo embate de sempre entre ele e os
albergados: autorizações que não valiam mais, bêbados barrados etc. Lá dentro,
o plantonista fez o primeiro risco no meu cartão e rubricou do lado; no
refeitório, a sopa não foi suficiente para aplacar toda a fome que eu sentia, o
pão, servido junto, ajudou um pouco. Subi para o dormitório e fui dormir,
procurando me convencer, sem muito sucesso, de que o amanhã viria mostrando a
aurora de um novo dia e que tudo aquilo poderia mudar.
Capítulo 5
MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA
OU
PERDIDO NA PRAÇA
Dia após dia, eu seguia a mesma rotina. Já não sabia
há quanto tempo estava no albergue. Para ser exato, apenas o cartão de
identificação me dava certa noção de tempo, pois, pelos riscos que o
plantonista fazia nele, pude verificar que a autorização de quatorze dias que a
assistente social tinha me concedido estava quase no fim. Durante dias, a praça
se transformara na minha casa, meu refúgio, o lugar onde nada me era negado nem
exigido, onde ninguém tinha pena ou preconceito de mim; era tratado de igual
para igual, e isso me fazia bem. Tão logo amanhecia o dia, ia para lá, ficava
sentado por ali conversando com um e outro, mas, sobretudo, remoendo meus
problemas. Logo no primeiro dia, pude sentir que a praça, aparentemente inofensiva,
exercia uma força poderosa sobre as pessoas, era preciso ser muito forte, ter
muita força de vontade para não se deixar seduzir, pois ela funcionava como uma
extensão do albergue, principalmente para os homens. O movimento começava às
seis da manhã, quando era intenso, e só terminava na hora da entrada, à noite.
Pela manhã, os que tinham algum dinheiro iam tomar
café na padaria, que ficava em frente; os que não tinham dinheiro, esse era o
meu caso, sentavam pelos bancos e ficavam esperando que aparecesse alguma
coisa. Nessa hora, a maior procura era por cigarro, biscoito, frutas e pão
também eram bem-vindos, se alguém quisesse comer ou fumar tranquilamente, que
não ficasse na praça. Aos poucos, o local ia se esvaziando; aqueles que tinham
alguma coisa para fazer, iam saindo, normalmente, eles iam procurar emprego ou
mesmo vagabundear pela cidade, alguns iam tirar segundas vias de documentos,
que eram perdidos com frequência; a falta dificultava ainda mais a procura por
trabalho de carteira-assinada; lá pelas nove horas, restavam apenas os frequentadores
habituais: os mendigos e as mulheres albergadas, que vinham tomar sol com
os seus filhos pequenos.
Em pouco tempo, me fiz conhecido de todos; após
fazer o gênero caladão por algum tempo, acabei cedendo; sempre aparecia alguém
para puxar papo, começava com uma conversa tímida e daí a pouco o cara já
estava se sentindo íntimo, falando de si e querendo saber coisas a meu
respeito. Nessas conversas, ficava claro que a maioria não tinha grandes
objetivos na vida, viviam de cidade em cidade, como ciganos, uma hora aqui,
outra acolá, sem uma definição ou meta a cumprir: ficavam uns tempos em São
Paulo, no Rio e já estavam se mudando outra vez. Os motivos para a mudança
poderiam ser o frio de São Paulo, a saudade da família ou mesmo a simples
vontade de variar, mudar de ares. Esse tipo de comportamento se dava em maior
parte com os nordestinos, que vinham para o sul, era assim que chamavam a região
sudeste, para trabalharem, geralmente, fugindo da seca, da falta de emprego em
suas terras ou simplesmente atrás do sonho de conseguir bons empregos para juntar
dinheiro e, depois, voltar para a terra natal em melhores condições, principalmente,
pelo fato de que, quase sempre, eram casados e as esposas e os filhos tinham
ficado para trás; era só conseguir um emprego, juntar um pouco de dinheiro e já
estavam de volta aos seus estados de origem; quando o dinheiro acabasse,
retornariam para repetir o mesmo esquema.
As conversas rendiam; havia também muita troca de
informação: “Belo Horizonte é bom para trabalho; tem muita construção”,
informava um; outro aconselhava Brasília, após pegar o cigarro que, pelas
minhas contas, já estava na décima mão, quanto a mim, tinha de me conformar e
esperar pelo próximo; aquele já estava no filtro. No meio da conversa, uma cena
curiosa: um rapaz desfolhou e rasgou uma carteira de trabalho. Aproximei e
perguntei se ele a tinha achado, respondeu que era sua própria carteira de
trabalho; agia daquela forma porque, segundo disse, um patrão tinha sujado o
documento: carteira “suja” significava que o portador tinha entrado e saído de
algum emprego em prazo muito curto, fazendo com que o empregado ficasse um
tanto desacreditado para arrumar um novo trabalho, o jeito, em sua visão, era
destruir o documento e tirar um novo, alegando que havia perdido; com uma
carteira nova, ele acreditava, ficava mais fácil, porém a realidade era outra:
sem o documento, ele ganhava tempo e podia usar como desculpa na hora em que a
assistente social cobrasse o fato de ele estar desempregado. Outro costume era
o de ficar à espera de passagens para viajar de volta para a terra natal, as
assistentes sociais tinham até uma lista de espera, fato que confirmei quando a
que me atendia perguntou se eu queria entrar nela; pelo que me pareceu, havia
até certo incentivo por parte do governo do estado nesse sentido.
A fome se fazia avisar pelo ronco, o barulho que
vinha do estômago. Um gordo baixinho, que se mantinha calado, fez uma pergunta,
para ele, de grande interesse:
- Porto Alegre tem albergue?
A resposta foi esperada com certa ansiedade; era
questão primordial para que uma viagem fosse decidida; a maioria já tinha
passado por várias cidades do Brasil, em muitos casos, desembarcavam na
rodoviária e iam direto buscar abrigo nos albergues para desabrigados, mantidos
pelo governo. Um senhor tomou a palavra e passou a tecer ferrenho comentário
sobre Brasília, que fazia questão de chamar de Distrito Federal (DF), falou da
limpeza, da organização e fez comparações com outras cidades.
- Lá, albergado é bem tratado, não é igual aqui, tem
até carro para levar o albergado onde ele quiser, e após uma pausa completou: E
a comida? Nem falo! Especial! Tem de ir lá para ver. Uma beleza! Até vale-transporte
eles dão pra gente procurar emprego, sem falar na roupa, sapato...
Nesse instante, o discurso foi interrompido pela
pergunta de um nordestino:
- Brasília não é onde mora o presidente?
Fez-se silêncio. Quis tomar a palavra e dizer alguma
coisa, usar aquele momento para despejar um pouco da minha indignação, mas
preferi não falar nada.
Quando beirava a hora do almoço, o sol castigava, era
o momento de escolher um banco onde houvesse sombra, isto é, se encontrasse.
Nessa hora, a praça voltava a ficar cheia e o cenário era um tanto aterrador; na
minha frente, só desfilavam famintos, maltrapilhos, miseráveis, indigentes, em
meio aos insetos, que chegavam com o aumento da temperatura, também atraídos
pelos restos de alimentos e outros detritos espalhados pelo chão da
praça; era preciso espantá-los o tempo todo, pois havia muitas pessoas
portadoras de feridas pelo corpo e isso aumentava o medo de contrair alguma
doença. No meio disso, dava para perceber a agitação da turma da cachaça para
conseguir dinheiro para mais uma garrafa, talvez a terceira ou a quarta. Eles
eram em grande número e agiam com certa organização: cada vez era a hora de uma
turma sair para achacar nas redondezas ou mesmo os desavisados que aventuravam
atravessar a praça, sempre havia um chefe no grupo, aquele que reunia o
dinheiro e destacava quem iria comprar a bebida, tarefa que não era recebida
com satisfação; o escolhido relutava em aceitar, parecia ter vergonha do ato,
como se estivesse preocupado com o que iriam pensar se o vissem comprando
água-ardente àquela hora do dia, ou coisa assim, tinha também o fato de que os
comerciantes do local já conheciam quem era e quem não era albergado da
Fundação, e, muitas vezes, se negavam a vender. Por isso, quando a bebida
chegava era servida de acordo com o esforço de cada um: aquele que enfrentou a
difícil missão de conseguir o líquido precioso tinha direito a beber mais, bem
como, o chefe e aquele que arrecadou mais dinheiro. No final, tudo acabava em
confusão; os que se julgavam prejudicados pela divisão brigavam com o
responsável por essa tarefa. Apesar de a praça estar sempre policiada,
devido à existência do Batalhão, não cheguei a ver a intervenção deles nessas
brigas; não se preocupavam com o que acontecia, nem os mendigos se importavam
com eles, era o que se podia dizer, uma convivência pacifica.
As horas passavam e a fome aumentava. De vez em
quando, alguém chegava com alguma coisa, quase sempre xepa de feira: frutas esmagadas
ou podres, quase nunca algo aproveitável, porém tudo era disputado com
voracidade; às vezes, aparecia uma alma caridosa oferecendo quentinhas, os
espertos corriam, pegavam tudo e não deixavam nada para ninguém, aquele que conseguia,
nunca ficava dando sopa, corria para longe, pois sabia que seria achacado. Qualquer
movimento anormal era percebido rapidamente, como se ficassem o tempo todo
esperando, feito cobra a hora do bote; uma vez estando na rua, o indivíduo cria
suas próprias técnicas de sobrevivência, que consistem principalmente em
descobrir maneiras de matar a fome, para isso seguia-se um roteiro: pela manhã,
passava-se pelo Banco da Providência, que funcionava nos porões da Catedral
Metropolitana do Rio de Janeiro, onde tomava café com pão; a parada seguinte
era em Botafogo, na Rua Real Grandeza, Meninos de Jesus era o nome da
instituição, onde se tomava novo café, dessa vez, regado a um pequeno culto
evangélico; a sopa ficava por conta da tia Margarida, em Marechal Hermes, que
também distribuía roupas e sapatos usados; os batalhões de polícia e quartéis
também eram muito procurados, pois, dependendo do humor dos soldados de plantão,
era possível conseguir uma comida de boa-qualidade, segundo diziam; bares e
restaurantes da mesma forma faziam parte da lista; e, se de todo não
conseguisse nada, restava o próprio albergue que, em caso de sobras, abria
exceção e servia almoço a alguns escolhidos. Nesse horário, como eu pude
verificar, a comida era melhor, bem diferente da sopa noturna. A fila de
interessados era grande e cabia ao porteiro anunciar o número de pratos que
tinham sobrado e escolher quem seriam os contemplados. A escolha era feita no
olho, dependia do aspecto físico e se o indivíduo não estivesse bêbado nem todos
os dias por ali. Era um pouco difícil encontrar alguém que se enquadrasse
nessas exigências e o que acabava prevalecendo mesmo era a astúcia do
pedinte em criar uma história convincente.
Conclui que a lei da sobrevivência na rua
tinha códigos muito duros, nunca um mendigo ou desabrigado dava algo a outro
por mais de uma vez seguida; num primeiro momento, eram amigos e solícitos, mas
isso não durava muito, logo ao perceberem que o “ajudado” estava fazendo corpo
mole, que não estava “se virando”, passavam a tratá-lo com hostilidade, a
evitá-lo, e espalhavam para todos que aquele indivíduo era parasita, explorador.
Apesar de muitos viverem em grupos, a luta pela sobrevivência diária era
individual. Isso ficou claro para mim quando aceitei o convite para almoçar com
um desses grupos. O almoço aconteceu atrás dos armazéns das docas do cais do
porto, próximo ao albergue, organizado por uma turma de travestis e seus
“maridos”. A turma era composta por um paraense que, apesar da careca reluzente,
fazia questão de ser chamado de “ela”, um negro, magro de nome “Luísa”;
e um terceiro, que era chamado de “Baiana”, “os maridos” eram três figuras
mal-encaradas: um negro, alto e magro, que se dizia artesão, um mineiro, mulato
fechado, de uns vinte e cinco anos, tipo perigoso, que afirmava ter
várias passagens pela polícia, e um branco, magro e alto, tipo gaúcho, muito
calado. Quando cheguei, o almoço, feito em latas, que mais tarde eu descobriria
terem sido encontradas por ali mesmo, já estava quase pronto, feito num fogão
improvisado que também fora encontrado no local. Logo, o paraense anunciou
que o “rango” estava sendo feito sem sal. Falava e olhava diretamente para mim,
como se estivesse ordenando que eu fosse comprar. Tentei disfarçar, mas ele não
me deu trégua.
- E alguém aqui falou em dinheiro? Te vira! Todo
mundo entrou com alguma coisa. Vai à luta! ele falou quando eu disse que não
tinha dinheiro e passou a listar os mercados da região; “seria moleza”, dizia,
com uma naturalidade espantosa.
Não adiantou dar explicação, dizer que nunca tinha
feito aquele tipo de coisa etc; para eles – agora todos participavam da
conversa –, era uma questão de entrar no mercado, pegar a mercadoria desejada e
sair fora, bastava ser rápido e objetivo. E avisaram que o “rango” tinha sido
todo conseguido assim.
- Tá pensando que alguém aqui tem grana?
perguntou “Luísa”, confirmando que o “rango” tinha sido conseguido dessa forma.
e depois me encarou: É a primeira vez que tu cai na rua, não é?
Respondi que sim e “ela” falou, do alto da sua
experiência:
- Logo vi. Tá muito verde ainda, colega. Precisa
aprender muita coisa da vida na rua, se não tu vai morrer de fome, assim que
terminou de falar, saiu batendo o pé.
Fiquei ali parado, à mercê de todo tipo de
comentário, cada um desfiando sua experiência: uma vida, quase sempre, marcada
pela miséria, mas da qual tinham muito orgulho. O artesão abandonou sua “obra
prima”, estava fazendo uma capa para uma caneta usando uma espécie de massa de
modelar e alguns enfeites, e passou a falar de sua vida, não me recordo qual
era o seu estado de origem, era um misto de baiano e carioca, não dava para
definir pelo sotaque alterado, provavelmente, pelas constantes andanças. Contou
que vivia bem com sua esposa até ficar desempregado, os dois serem despejados
do barraco onde viviam e irem morar na rua. Moraram em vários pontos da cidade.
Só pararam, quando encontraram uns barracões abandonados, onde firmaram moradia.
O espaço era dividido com outras famílias e do convívio diário se deu a
tragédia: um belo dia um “paraíba” se meteu com sua esposa, ele não pestanejou
e sangrou o “cabra da peste”, que morreu na hora. Desde então, vivia uns tempos
aqui e ali; não tinha lugar certo para morar. Da mulher, pela qual sangrara o
“cabra”, não teve mais notícia.
- Deve de tá vivendo com outro por aí, falou,
acrescentando que encontrou a “Luísa” e queria viver com “ela” para sempre; estava
apaixonado. Lamentava nunca ter dado sorte com mulher, era por causa de uma
desgraçada que estava naquela vida, depois, disse, antecipando-se a uma
pergunta que eu fatalmente acabaria fazendo; Se a “Luísa” é homem? É sim. Nessa
vida, a gente tem de tentar de tudo. Tô nessa vida há anos.
- E a polícia? perguntei.
- O que tem?
- Nunca foi preso pelo crime?
- E matar mendigo é crime? falou voltando para o seu
trabalho; o que fazia, vendia para os turistas na praia.
Sem resposta, me calei, e fiquei observando o seu
trabalho: sobre a massa de modelar, que trabalhava com os dedos, dando alguns
contornos estranhos, colocava umas pedras coloridas, que dizia serem
semipreciosas: era a ornamentação final; a caneta ganhara uma capa, algo
grosseiro, feio mesmo, que ele fazia acreditando tratar-se de uma verdadeira
obra de arte.
Uma hora depois “Luisa” voltou com o sal, trouxe
também tomates e ovos. Todos ficaram admirados com as “compras” e ela explicou,
calmamente, que entrou no mercado, como se tivesse dinheiro, pediu o queria e
saiu sem pagar, indiferente aos apelos do dono do estabelecimento. E assim,
eu estava diante de mais uma prática comum entre os albergados, ou seja, os
pequenos furtos ao comércio da região. Depois do almoço, todos dormiram
espalhados pelo chão, o sono dos justos.
Ao cair da tarde, o movimento na praça começava a
aumentar; era quando os que saíram pela manhã começavam a retornar. Alguns regressavam
do trabalho; havia muitos que, mesmo empregados, continuavam morando no albergue,
a maioria, no entanto, passava o dia fazendo “turismo” pela cidade: o Aterro do
Flamengo, as praias da zona sul e a Quinta da Boa Vista eram os lugares mais
procurados; aos domingos, a pedida era a “Feira dos Paraíbas”, em São
Cristóvão, local, segundo os mais espertinhos, ideal para praticar pequenos
furtos; informações que eu obtive com alguns dias na praça, onde já
conseguia identificar algumas pessoas e seus costumes. Sabia, por exemplo, quem
era albergado e quem não era; havia os mendigos que vinham para a praça apenas
durante o dia, ali se juntavam com os albergados e só iam embora à noite,
para procurar algum canto da cidade para dormir; muitos dormiam na própria
praça, o coreto era muito disputado, mas a maioria dormia espalhada pelas ruas
do bairro; isso se dava porque o indivíduo fora expulso do albergue ou porque,
em maior número, não via diferença entre dormir na rua ou no albergue.
Vez por outra apareciam homens, em pequenos caminhões,
ou caminhonetes, procurando pessoas para trabalhar, na maior parte das vezes,
eram biscates: trabalho braçal no cais do porto, em sítios, ou para carregar
entulho de alguma obra. Cheguei a pensar em aceitar uma proposta dessas, mas
fui alertado de que não seria uma boa ideia: um rapaz me contou que era furada;
em muitos casos, o trabalho, bem como a remuneração e as condições, em nada
batia com o combinado. Ele mesmo fora vítima uma vez, disse, ao aceitar um
trabalho pelos lados da região dos Lagos, no estado do Rio. Juntamente com
outros companheiros foi contratado por um homem para aplainar um terreno onde
seria construída uma casa. O homem os levou para o lugar distante, lá, deu-lhes
as ferramentas e os mandou trabalhar, e foi embora, prometendo voltar com o almoço,
porém não apareceu mais. Ele e os colegas ficaram três dias no local, sem comida
ou água potável, dormindo ao relento. No final dos três dias, deixaram o local,
voltando a pé para o Rio, sem nunca mais ter encontrado o tal homem. Ao
encerrar, fumando uma guimba de cigarro que eu tive a impressão de que lhe
queimava os dedos, de tão pequena, ainda fez outras considerações: eu deveria
tomar muito cuidado com o perigo do trabalho escravo, pois muitos não tinham a
sorte que ele teve de poder voltar e ficavam presos, obrigados a trabalhar por
um prato de comida.
- Ou nem isso, ele finalizou.
Mulheres eram muito procuradas para trabalharem como
domésticas em casas de família, mas não tinham melhor sorte; dificilmente dava
certo: quando não eram as patroas que exigiam coisas absurdas ou as
maltratavam, como relatavam, eram elas que, uma vez dentro da casa, aproveitavam
para praticar furtos; nesses casos, era comum ver essas senhoras na porta do
albergue tentando reaver seus pertences.
A praça tinha peculiaridades como a mendiga negra,
aparentemente maluca, que vivia por ali: falava sozinha e caminhava de um lado
para o outro, sem parar, apanhando coisas que encontrava pelo chão, figura
conhecida, fazia amizade com um ou outro que se aproximava dela, no entanto, o
que gostava mesmo era de travar longas conversas com seres invisíveis, com as
quais brigava e, no meio dessas brigas, ia da gargalhada ao choro, sem
muita ordem; um homem, provavelmente bêbado, que dormia num banco, teve a
carteira roubada, o ladrão fugiu seguido por aqueles que se julgavam no direito
de dividir o produto do roubo, quando acordou, era tarde demais; do outro lado,
uma mãe espancava um bebê, e, vendo a cena, as outras crianças que estavam
junto a ela choraram também e tiveram igual tratamento, entre xingamentos, a
mulher deixava claro que o marido a abandonara no albergue, com os filhos,
e desaparecera.
Os travestis, e eles eram muitos, garantiam o lado
engraçado da praça, quebrando, assim, a morbidez do ar; entre eles, estava um
que atendia pelo nome de Leon Schneider: baiano, mulato, alto e esguio,
bastante feminino, sua especialidade era fazer shows imaginários, passava o dia
bolando coreografias. Às vezes, cantava, num inglês incompreensível, misturado
a uma dança maluca, músicas de sucesso; dizia ser uma estrela, porém, a plateia,
desatenta, não o aplaudia ao final de seus “shows”. Ele não se importava; um
dia seria aplaudido numa boate do Rio, seria uma estrela de verdade.
A vida seguia. À tardinha chegavam “as mariconas”, assim
eram chamados os homens de idade que vinham até à praça em busca de algum
garotão, com promessas de vida fácil: dinheiro, casa, comida, enfim, até
bons empregos prometiam arrumar. Eram em grande número e se davam entre si.
Generosos, ofereciam cigarros e pagavam lanche na padaria; a cantada vinha logo
a seguir. Não eram poucos os rapazes que se deixavam levar pelas promessas de
mordomias, alguns sumiam da praça e depois reapareciam, sempre com uma história
para contar, normalmente, de decepção; as promessas eram falsas ou o preço a
pagar por elas era considerado alto demais. Muitos usavam a ocasião para
praticar roubos. Não raro, surgiam com os objetos roubados: rádios, roupas,
dinheiro, bicicletas, máquinas fotográficas e congêneres. Às vezes, o
produto do roubo era vendido ali mesmo na praça, o que não impedia a vítima de
voltar e tentar “conquistar” outro rapaz.
Inexplicavelmente, eu ficava ali, quase como um mero
espectador, sem grande consciência do que estava me acontecendo; há muito deixara
de ficar pensando na vida e perdera a noção de certo e errado, nem a fome
era problema, pois acostumara a não ter o que comer durante o dia: o café da
manhã e a sopa viraram as únicas refeições diárias. Um dia ou outro, a sopa era
substituída por um arroz com legumes. Isso não deixava de ser bom, porém era
raro. Meu convívio dentro do albergue não era diferente de todos os outros
albergados; era maltratado e humilhado como qualquer um, e, como qualquer um,
reagia ou não, dependendo da conveniência. E foi durante uma conversa no
dormitório que descobri que o dia seguinte seria um domingo; a maioria tinha
grandes planos para esse dia. Quanto a mim, sabia que seria um dia como outro
qualquer: levantaria cedo, na verdade, seria acordado daquela maneira amável, e
iria para a praça; para mudar isso, só se acontecesse um milagre.
Capítulo 6
O MILAGRE
Como eu previra, o domingo amanheceu sem nenhuma
novidade; a praça estava praticamente vazia, uma vez que quase todos os albergados
saíram para andar pela cidade; alguns me convidaram para ir com eles, mas não
aceitei, faltava ânimo, andar pela cidade feito um louco só iria fazer
aumentar a minha debilidade física; mal alimentado, eu estava a cada dia mais
fraco e era mais sensato ficar na praça para poupar energia.
A manhã passou e logo a tarde chegou, com ela
chegaram os crentes, com a nobre missão de nos converter. Para eles, o fato de
estarmos naquela situação era porque não tínhamos aceitado Jesus como nosso Salvador,
era preciso deixar o grande mestre tocar os nossos corações. Falavam, pregavam,
e insistiam usando suas histórias pessoais como exemplos, porque eles também já
estiveram como nós, porém aceitaram Jesus e Ele os salvou. O mesmo poderia acontecer
com cada um de nós, bastava querermos, por isso, eles estavam ali: para nos
tirar daquela vida; Jesus não estava satisfeito com aquele nosso estado de
deploração e miséria. Eram persistentes e usavam de todo tipo de argumento para
conquistar a confiança das “ovelhas”; chegavam a pagar café ou dar pequenas
quantias em dinheiro pela garantia de que seriam ouvidos. Pertenciam a igrejas
com denominações diferentes e alternavam os horários; parecia que agiam de
forma combinada, certamente, para evitar choques de interesses. Primeiro
vinha um grupo de jovens, que se apresentava como sendo da igreja Universal do
Reino de Deus, se espalhava pela praça, indo de banco em banco. Nessas ocasiões,
se travava os diálogos mais estranhos possíveis. De um lado, o crente, falando
das maravilhas da vida com Jesus; do outro, o desabrigado, tentando convencer de
que também era religioso e tinha fé, o que não impediu que chegasse àquela
situação. As conversas sempre acabavam chegando ao problema da falta de
emprego, habitação e, não podia deixar de ser, ao problema da fome no país.
Alguns diziam estar há dias sem comer e chegavam a confessar sentirem falta de
Deus, mas a falta de comida era maior. Sem argumentos, os jovens acabavam se
afastando: a palavra perdia força diante da realidade dura da vida; não era
fácil convencer um homem faminto e maltrapilho de que Jesus era a salvação; para
um faminto, um prato de comida é a salvação. Mesmo assim, eles não deixavam de
convidar a todos para que fôssemos aos cultos da igreja; com certeza, lá encontraríamos
uma saída. Muitos acabavam aceitando o convite, não interessados na tão
“aclamada” salvação, mas no que essa visita à igreja pudesse lhes render. Um
pouco mais tarde, já anoitecendo, era a vez de uma turma mais velha, provavelmente,
de uma igreja próxima, pois vinha munida de um grande aparato técnico: aparelhos
de som, órgão eletrônico, guitarras etc. A parafernália era instalada perto do
coreto, na frente do busto do Coronel Assumpção, diante do olhar curioso de
todos, principalmente das crianças, que acompanhavam tudo de perto. Novamente,
tinha-se início a garimpagem de almas para Jesus. Eram distribuídos panfletos
com salmos e, em seguida, pelo microfone, todos eram conclamados a se
aproximarem; o culto ia começar. O convite era feito de forma eloquente, porém
poucos se interessavam, eles insistiam e, aos poucos, um e outro começava a se
aproximar. Logo, se fazia uma pequena roda; a voz do pastor falando pelo
microfone e as músicas tinham um apelo forte, era quase impossível não se
deixar envolver. Pelo meu lado, me limitava a ouvir de longe, sem tomar parte,
embora sentisse que precisava me apegar a alguma coisa para poder encontrar
forças e sair daquele estágio de letargia em que me encontrava.
Certa hora, eu estava ouvindo o culto, de longe,
quando Leon se aproximou e me convidou para tomar café na padaria, pois ele tinha
conseguido algum dinheiro com os crentes. Pensei em recusar o convite,
entretanto a fome falou mais alto e fui com ele. Quando chegamos à padaria, ele
pediu duas médias de café com leite e dois pães com manteiga e fomos para o
balcão, que ficava de frente para um grande espelho que havia na parede. Leon
comia, distraidamente, enquanto eu olhava a minha imagem refletida nele
sem acreditar no que via; eu não era aquele cara do espelho, era outra pessoa,
um estranho qualquer, não eu. “Como podia ter me permitido chegar àquele
estágio?” era a pergunta que eu me fazia, intimamente, sem conseguir tirar os
olhos do espelho. Fui tomado por uma grande perturbação, a fome passou e eu não
conseguia comer. Leon percebeu que eu não estava estranho e perguntou o que
estava acontecendo. Não dei reposta e me aproximei do espelho, como se quisesse
tocar aquela figura castigada pela fome e pelo sol. Mais de dez dias tinham
passado desde que eu chegara ali. Lembrava, vagamente, da minha resistência
inicial, da conversa com a assistente social no dia da chegada: “É por um ou
dois dias...” Nasceu em mim uma revolta muito grande, revolta comigo mesmo; eu,
que tinha chegado à Fundação procurando ajuda, estava no fundo do poço e nem
sequer podia me reconhecer numa imagem deformada refletida num espelho de
padaria. Minha memória fez um giro, chegando à Ibiá: a família, a casa e o
conforto há muito deixado para trás. “Como seria se meus irmãos me vissem
naquele momento?” Certamente me internariam como louco, dizendo que eu tinha
perdido o juízo, o bom-senso, a vergonha na cara, que tinha perdido tudo; nem
queria pensar. Foi um consolo lembrar que meus pais já estavam mortos, portanto,
livres de ver o filho sujo, maltrapilho, faminto, um verdadeiro mendigo, perdido
numa praça aonde a vida caminhava de mãos dadas com todas as misérias humanas.
Muito provavelmente não suportariam; não tinham criado um filho com tanto
sacrifício para ter aquele fim. De repente, fui invadido por uma vergonha que
nunca tinha sentido na vida. Mecanicamente, me aproximei mais do espelho,
cheguei bem perto, na tentativa de ver algo além do que era mostrado, de reencontrar
a minha própria alma. Fui chamado à realidade pelo balconista da padaria, que
reclamava que eu estava sujando o espelho.
- Sai daqui, mendigo sujo! ele vociferou.
Tentei esboçar uma reação, queria enfrentá-lo: “Como
ele ousava falar daquele jeito comigo?” Leon pressentiu que aquilo ia acabar em
confusão e me puxou pelo braço. Resisti um pouco, mas ele conseguiu me arrastar.
- Tá ficando louco, cara? perguntou ele.
Sem responder, saí pela praça, onde os crentes ainda
faziam o culto, o número de ouvintes era maior e um homem, bem-vestido, dava um
depoimento: esteve no fundo do poço e Jesus lhe estendeu a mão. Agora, tinha
emprego, casa, família e uma fé que o salvara. Após falar, ele passou o
microfone para o pastor e, novamente, sua voz forte tomou a praça, convidando
todos a aceitarem Jesus, pois Ele nos libertaria de uma vida errônea e
fracassada, como fez com aquele irmão, para uma vida de acertos e sucessos.
- Só Jesus pode salvar! bradava.
Alguns ouvintes tomaram à frente, atendendo ao
convite. Já um pouco mais calmo, passei a refletir se deveria ou não fazer a
mesma coisa. Cheguei à conclusão de que não precisava de um gesto exterior para
tomar uma decisão que deveria ser interior. Permaneci parado, sem me mover e,
comigo mesmo, em estado de oração, fiz uma promessa: a partir daquele momento,
daria um novo alento para minha vida; aquela situação não poderia continuar, precisava
reconquistar tudo o que tinha perdido nos últimos tempos, acima de
qualquer coisa, precisava recuperar minha identidade pessoal, do contrário, me
perderia para sempre.
Da decisão tomada na praça, parti para a ação; tão
logo o dia amanheceu, comecei um verdadeiro ritual: fiz a barba, com um barbeador
emprestado e a ajuda de um pedaço de espelho, tomei um banho, e peguei roupas
limpas no bagageiro. Quando atravessei a praça e ganhei a rua, parecia uma
nova pessoa, era grande a minha vontade de mudar aquela situação. Durante a
travessia, procurei não falar com ninguém: sabia que tentariam me reter e
precisava ser forte, pois, como um ser impotente, eu me deixara arrastar pelos
subterrâneos daquela praça. Senti-me aliviado, quando me vi andando no meio do
povo, na Avenida Presidente Vargas, como um cidadão comum.
Aquele foi um dia longo e cansativo; numa maratona
que parecia não ter fim, fui a todas as agências de emprego que conhecia, preenchi
fichas e mais fichas e, a cada uma que entregava, ouvia sempre a mesma coisa: era
preciso aguardar, pois não tinham vaga no momento. Apesar da minha
determinação, nada consegui. Passou o primeiro dia, o segundo e o terceiro dia,
era sair de manhã, com alguma esperança, e à tarde estar de volta, cheio de
cansaço e desânimo. E já não tinha a companhia do Geraldo, que saíra do
albergue depois de arrumar um serviço de faxineiro num prédio, em Copacabana, e
teve a sorte de o emprego oferecer moradia: estava livre daquele lugar sujo e
infecto.
Os dias de ócio, passados na praça, fizeram com que
eu perdesse um pouco a noção das coisas. Mesmo com todo otimismo, era preciso
não esquecer de que vivíamos a era Collor, o país estava mergulhado, como
esteve quase sempre, numa crise violenta. A recessão era muito grande e só se
falava em demissões em massa, era quase impossível conseguir algo decente
naquele estado de coisas, agravado pela retenção do dinheiro das cadernetas de
poupança.
Minha experiência anterior na área de contabilidade
e vendas de nada adiantou. O jeito foi atacar em outras frentes, afinal, eu
tinha urgência em arrumar um emprego, o processo de admissão em empresas é
sempre muito demorado e, às vezes, até complicado mesmo; tinha sentido na pele,
recentemente, que não adiantava ter experiência, um pequeno detalhe e pronto, a
chance do emprego ia por água-abaixo. Precisava de uma saída rápida, talvez,
de uma solução mágica. Lembrei que poderia fazer figuração em novelas, para
isso, era só ir para a porta das emissoras de televisão e falar com algum
agente. Só que aí é que morava o perigo: fiz muita figuração e nunca consegui
receber um único tostão. Os tais agentes, na hora do pagamento, sempre
desapareciam ou alegavam que o meu nome não estava em suas listas, além de ser
maltratado nos sets de gravação pelo pessoal das produções e os diretores, que
sempre viam os figurantes como se fossem idiotas ou simples gado. No que eles
não estavam de todo errados, pois, alguém que se submete a passar horas debaixo
do sol, sem comida e aturando gritos, não é outra coisa. Dessa época, guardo
uma lembrança engraçada: foi nas gravações da novela Kananga do Japão, da Rede
Manchete; fazia figuração na gafieira que dava nome à novela e, junto com
outros figurantes, ficava sentado nas mesas do cenário. Nelas havia muita
batata cozida com casca e tudo, creio que para se passarem por salgadinhos, levados
pela fome, nós devorávamos aquilo em questão de segundos, nunca comi tanta batata
cozida na minha vida, o que obrigava a produção, depois de muito xingamento, é
claro, repor o “salgadinho”. Cheguei a pensar em me tornar camelô vendendo
balas nos trens da Central, mas, para isso, teria de dispor de algum capital e
eu não tinha dinheiro algum. Também tomei informações no albergue, já que ali
se sabia de tudo e descobri que no Moinho Fluminense contratava-se ajudante de
caminhão, no Cais do Porto, após uma inscrição, muito concorrida, podia-se
trabalhar como carregador e outras funções, o requisito importante, mais uma
vez, era a força física, o resto era aquilo que eu já sabia mesmo, ou seja, as
figuras que apareciam na praça oferecendo trabalho em condições que só as
pessoas muito desesperadas e ingênuas aceitavam.
Já era quarta-feira e nada. O prazo de quatorze dias
que a assistente social me deu estava no fim. Eu tinha de arrumar alguma coisa
de qualquer jeito. Sem isso, ela não me deixaria ficar. A menos que eu, como
fazia a maioria, inventasse uma bela mentira, porém não estava a fim de mentir,
uma vez que não estaria mentindo para a assistente social, mas para mim mesmo.
Contudo, tive de procurá-la mesmo sem nada ter conseguido. Fui sincero e ouvi
um longo sermão. No final, ela me deu mais quatorze dias, lembrando-me de
que era a última chance, na próxima vez, não bastaria dizer que estava
trabalhando, seria necessário comprovar.
No dormitório sempre tinha aqueles mais espertinhos,
uns tipos que se apresentavam como agenciadores de serviços. Fui alertado
de que era furada, no entanto resolvi arriscar; não tinha outra escolha.
Procurei um desses “agentes”, que se dizia mestre de obras, que estava
recrutando serventes, para trabalharem numa construção em Laranjeiras, bairro
da zona sul carioca. Apesar de ele ter dito que o trabalho era duro, aceitei.
Avisei apenas que não tinha dinheiro para passagem e o “agente” se ofereceu
para pagar. Para isso, bastaria procurá-lo pela manhã. Dormi, cheio de
esperança; pelo menos, o trabalho na obra seria um começo.
O dia amanheceu, procurei o tal homem e ele
pareceu-me um tanto escorregadio, pois fingiu não se lembrar de mim. Refresquei
sua memória, falando do nosso trato, ele mandou que eu o acompanhasse e foi o
que eu fiz. No ponto de ônibus, percebi que outros albergados iriam também,
porém nenhum conhecido meu. Pegamos o ônibus Estrada de Ferro/Cosme Velho. Na
hora de passar na roleta, ele avisou que não pagaria a minha passagem. Falei
alguma coisa na tentativa de fazê-lo lembrar da promessa feita e de nada
adiantou. Ele foi taxativo: eu que “me virasse”. O ônibus seguiu viagem e eu
permaneci na parte de trás tentando pensar no que fazer. A certa altura da Rua
das Laranjeiras, o homem e seus companheiros desceram. Da janela deu para ver
que eles faziam comentários e riam de mim. Percebi que, se não descesse, os
perderia de vista e a chance do trabalho estava acabada; não tinha o endereço
da obra. Foi quando me aproximei da trocadora, expliquei o que estava
acontecendo comigo e pedi para descer sem pagar, ela não foi muito simpática ao
meu pedido, mas fez sinal para que o motorista abrisse a porta traseira. Desci
e comecei a andar, à procura do homem e a turma; não os encontrei. Decepcionado,
resolvi fazer o caminho de volta, passando por várias obras, nunca era a que eu
procurava, mas aproveitava para indagar se havia vagas, porém ouvia sempre a
mesma resposta:
- Não tem vaga. Tá tudo completo, dizia alguém,
atrás de uma janelinha feita na madeira que circundava a obra.
Continuei andando, sem muita direção, e acabei
chegando à Glória, nas imediações da Rua Augusto Severo, próximo à Praça Paris,
que estava em obras. Aproximei para pedir informação e fui informado que tinha
vagas. O responsável pela obra me contratou e eu comecei a trabalhar naquele
dia mesmo, sem carteira-assinada ou qualquer outra garantia. O trabalho
consistia na reforma do conjunto da Praça Paris para a ECO/92, um encontro de
vários líderes mundiais que aconteceu no Rio de Janeiro, com o objetivo de
discutir a preservação do planeta, e fazia parte da maquiagem que a cidade
sofreu para receber os chefes de estado e suas delegações.
Se por um lado, eu estava feliz de, finalmente,
estar trabalhando, por outro, estava triste: aquilo não era, propriamente falando,
um trabalho; a diária era muito pequena e as condições de trabalho eram
desumanas. A prefeitura, ou as empreiteiras contratadas por ela, passou o
serviço pesado para um tipo de agente que normalmente eram chamados de “gatos”
e esses eram os meus patrões. No intuito de conseguir uma mão de obra barata,
eles contratavam, em sua maioria, desabrigados e albergados da Fundação Leão
XIII. Depois de alguns dias trabalhando, pude constatar isso, pois lembrei que
já tinha visto o encarregado da obra na porta do albergue, outro dado era o
número grande de rostos conhecidos, pessoas com as quais eu convivia na Praça
da Harmonia e no albergue.
No dia do pagamento, tive certeza de que não se
tratavam de pessoas sérias; os responsáveis pela obra, Paulista, e seu sócio
Geovane, desapareceram. Quando reapareceram, anunciaram que a comida, oferecida
inicialmente como gratuita, seria cobrada; cobrariam também pelas ferramentas
perdidas ou quebradas. Isso gerou uma enorme agitação em todos, uma vez que o
preço cobrado era bem acima do praticado no mercado, além de tudo, ainda tinha
as constantes falhas do apontador, que sempre se esquecia de apontar os dias e
alegava que o indivíduo tinha faltado ao trabalho. O que, em muitos casos, não
era verdade e se dava, com mais frequência, com os mais simples e analfabetos,
que era a maioria. Houve sexta-feira, dia do pagamento, em que foi necessária a
presença da polícia para resolver os impasses causados por essas divergências.
Momento em que o Paulista, sempre muito bêbado, ameaçava não pagar a ninguém; e
fazia questão de lembrar a condição social de cada um dizendo que sabia como e
onde nós vivíamos, portanto, não adiantava fazer exigências, segundo ele, um
homem naquela situação não tinha condições de exigir nada; ao dar emprego para
pessoas como nós, ele estava fazendo um favor à sociedade.
Havia aqueles que trabalhavam somente em troca do
almoço: vinham pela manhã e ficavam enrolando até a hora do almoço, depois que
comiam, desapareciam. Definitivamente, não era um bom ambiente de trabalho; as
brigas eram comuns e, por vezes, surgiam implicâncias infundadas. Com
facilidade, era possível se meter em confusões que, quase sempre, terminavam
com alguém ferido gravemente. Nas brigas, as ferramentas eram usadas como armas
e os golpes eram certeiros. Contudo, eu não tinha outra saída: o jeito era me
manter firme, para levar adiante o meu objetivo de conseguir algo melhor tão
logo tivesse a chance.
Capítulo 7
FUNDAÇÃO LEÃO XIII:
UM POÇO DE PROBLEMAS
O tempo passava e eu continuava albergado. De certa
forma, já tinha me acostumado com a situação; o dinheiro que ganhava na obra
mal dava para minhas despesas pessoais, o que sobrava, quando sobrava, ia
juntando, pois tinha planos de sair de alugar um quarto, mas queria que isso acontecesse
de forma definitiva, não como alguns conhecidos faziam; bastava conseguir algum
dinheiro e iam correndo dormir em hotéis e, quando o dinheiro acabava, voltavam
para o albergue. Acontecia quase sempre; normalmente, passavam os finais de
semana em hotéis baratos, hospedarias e retornavam para o albergue na
segunda-feira. Achava perda de tempo; quando saísse do albergue, teria de ser
para não voltar mais.
Não era difícil perceber que as coisas não estavam
bem na Fundação Leão XIII. A meu ver, isso era provocado pela entrada do novo
governo. Além das deficiências normais e a diminuição de funcionários, começou
a faltar comida. Problema causado, em parte, por causa do aumento do número de
pessoas que, com as chuvas, procurava a instituição em busca de abrigo, gerando
superlotação; estava claro que o albergue não tinha infraestrutura para receber
tanta gente e o resultado era o caos total, principalmente nos dias mais frios,
quando faltava espaço para dormir e roubavam cobertores e colchonetes; não bastasse
passar frio durante a noite, tinha problema na certa, pela manhã, na hora da
devolução. No refeitório, roubavam-se pratos de comida uns dos outros; qualquer
descuido, alguém passava a mão: era comum um albergado sair correndo atrás do
prato de sopa que lhe fora roubado; cena engraçada, mas também muito triste.
A atuação do serviço social não surtia muito efeito.
Apesar de todo o esforço das assistentes sociais, tudo o que elas podiam fazer
era dar mais ou menos prazo de permanência para esse ou aquele; não havia um
acompanhamento caso a caso como elas faziam crer. Tudo se resumia àquele
discurso requentado e nas pequenas ameaças que todas faziam na hora de
revalidar a autorização de permanência, quando davam conselhos e, em
troca, ouviam falsas promessas; não tinha muito mesmo o que fazer. Por vezes, a
atuação delas entrava em choque com o trabalho dos outros funcionários, sobretudo,
dos plantonistas e porteiros; era comum um indivíduo ser expulso durante a
noite, por insubordinação ou qualquer outra razão, e no outro dia estar de
volta, ostentando nova autorização de permanência. Embora, em muitos casos, as
expulsões acontecessem por pura perseguição dos plantonistas, havia aqueles em
que o elemento era realmente uma figura perigosa e sua expulsão acontecera por
motivo de roubo, uso de drogas ou brigas, com agressão física, o que
confirmava a suspeita de que, no meio dos albergados, tinha muitos marginais.
Alguns faziam questão de contar abertamente os crimes cometidos e as passagens
pela polícia, indivíduos que na hora de uma briga não hesitavam em ferir o
adversário. Presenciei alguns casos de esfaqueamento que terminaram com o
agredido sendo levado para o hospital; geralmente, levavam para o Hospital
Sousa Aguiar. Como, creio eu, o serviço social não tinha o hábito de apurar
essas ocorrências, era possível ver aquele mesmo indivíduo de volta e
pronto para cometer novas infrações. Quando isso acontecia, se podia ouvir os
plantonistas acusarem as assistentes sociais de protegerem marginais. Tudo isso
gerava um clima de tensão muito grande. E quem pagava o pato eram os albergados
que, além de serem obrigados a conviver com tais elementos, tinham de
enfrentar a ira dos plantonistas.
Mudanças estavam acontecendo a olhos vistos: em
pouco mais de um mês “hospedado” ali, dava para perceber que, entre outras
coisas, os funcionários, que eram também albergados, passaram a deixar os seus
cargos e voltaram à simples condição anterior. Nunca fiquei sabendo ao certo
como se dava esse tipo de trabalho; alguns diziam que a função deles era cobrir
o lugar dos funcionários que tinham vários empregos ou eram funcionários
fantasmas; outros, diziam tratar-se de pura exploração; e ainda outros,
afirmavam que havia alguns funcionários-albergados que estavam naquela situação
há anos. Com o novo governo, parece que esse tipo de procedimento estava sendo
revisto e algumas coisas, pelo menos temporariamente, teriam de voltar para os
seus devidos lugares. Se isso era verdade ou não, não posso confirmar. O certo
é que esses funcionários-albergados existiam e não gozavam nem um pouco da simpatia
dos demais albergados, principalmente por aqueles que, acreditando tratassem de
funcionários, obedeceram a alguma ordem imposta por eles. Quando eles entravam
no dormitório eram vaiados, tratados com hostilidade ou simplesmente ignorados.
As mudanças atingiram vários setores, o que
dificultou muito a vida lá dentro. E isso se fez sentir com relação ao
bagageiro que, no início, eram dois e, agora, apenas um, que trabalhava só
meio-expediente. A saída era controlar as trocas de roupa ou carregar na
mochila as de uso diário. O serviço-médico simplesmente deixou de existir, a
relação entre funcionários e albergados piorou muito e os abusos, agressões e
maus-tratos passaram a ser constantes. Isso fazia com que vivêssemos em
constante tensão; qualquer problema ou mal-entendido terminava em expulsão,
muitas vezes, debaixo de espancamento. Nessas ocasiões, todos ficavam
assistindo, sem nada fazer, mesmo quando se tratasse de algum conhecido, pois a
confusão poderia virar para cima de quem se metesse; ao defender um colega,
corria-se o risco de ir para a rua também: numa noite, um senhor bêbado
insistia em entrar no albergue e diante de sua insistência o porteiro
desferiu-lhe socos e pontapés. Condoído, um rapaz tentou impedir a covardia.
Nada conseguindo, saiu e logo voltou com uma viatura da polícia. A plantonista,
uma senhora negra, alta e forte, apareceu. Os policiais entraram no
albergue juntamente com a plantonista, o porteiro, o senhor e o rapaz que
denunciou o caso. Ficaram por lá um tempo e na saída, uma surpresa: o
porteiro voltou para o seu posto, mas o senhor e seu defensor foram levados
pela polícia e não foram mais vistos no albergue a partir daquele dia. Por
essas e outras, o melhor era fingir que não estava vendo nada; eu mesmo já
tinha enfrentado uma situação dessas numa determinada noite: quando cheguei, o
jantar estava quase no fim, não tinha quase ninguém nas mesas e não havia fila,
resolvi ir direto ao cozinheiro e fui recebido aos gritos; segundo ele, eu
tinha de ficar na fila, que não havia, e esperar a minha vez. Esperei por um
longo tempo e ele anunciou que o jantar já tinha sido encerrado, negando-se a
me servir. Como sabia que não adiantava reclamar, aceitei resignado e subi para
o dormitório sem jantar.
Os plantões funcionavam de forma diferente; uns se preocupavam
muito com uma coisa e outros deixavam a mesma passar despercebida. Era, por
exemplo, o que acontecia com relação ao uso de drogas dentro do dormitório, a
maioria dos plantões ignorava o fato, porém, num deles, um rapaz mulato de
estatura média, de uns trinta anos, fazia marcação cerrada e não perdoava, marcava
em cima; era comum vê-lo andar pelo dormitório, portando um porrete, procurando
surpreender algum usuário, principalmente, nos grupinhos que se formavam. Por
vezes, fazia uma revista superficial nas bolsas e outros pertences ou até mesmo
no próprio indivíduo. Numa dessas rondas, ele encontrou um senhor grisalho e um
rapaz fumando um cigarro de maconha e foi um deus nos acuda, partiu para cima
dos dois, dando-lhes pauladas a torto e direito. No final, os expulsou, usando
os mesmos métodos de sempre. Após fazer isso, voltou ao dormitório e fez um discurso
curto e muito nervoso alertando a todos que quem ele encontrasse fazendo uso de
drogas seria colocado para fora, pois não iria admitir aquele tipo de coisa em
seu plantão.
Procurei o serviço social pela quarta vez para pedir
novo prazo. Passados, praticamente, quarenta e cinco dias que eu estava naquele
lugar tinha a sensação de que o meu destino estava selado ali; a ideia de ter
de procurar uma assistente social fazia com que me sentisse um incapaz; era
duro entrar naquela sala para pedir que me deixasse ficar mais tempo. Jamais
pensei chegar a uma situação tão humilhante na minha vida, sobretudo, quando
ela vinha com aquela conversa de que eu não estava me esforçando e isso e
aquilo; não adiantava mostrar minhas mãos calejadas de tanto empurrar carrinho
cheio de terra de saibro para cima e para baixo na obra, o discurso continuava
o mesmo do primeiro dia, parecia não ter uma versão diferente, não fazia
distinção entre um trabalhador e um vagabundo. Tinha vontade de mandá-la à
merda, mas não podia, tinha de aguentar calado; meu destino estava nas mãos
dela, cabia a ela decidir se eu iria para a rua ou se continuava no albergue,
apesar de tudo, eu ainda preferia aquele lugar à rua.
Por estar ganhando pouco na obra, crescia em mim a
vontade de arrumar outra maneira de ganhar dinheiro e com isso apressar minha
saída do albergue. No canteiro da obra, fiquei sabendo que o jornal O Dia, um
dos jornais mais populares do Rio de Janeiro à época, contratava, aos sábados,
homens para trabalho-temporário. Bastaria ir até à sede do jornal, na Rua do
Riachuelo, me candidatar a uma vaga e torcer para ser um dos escolhidos. A
escolha era feita pelos responsáveis pela circulação do jornal; o único requisito
exigido era a força-física. Embora estivesse longe de aparentar disso e mesmo
com toda a concorrência, acabei ganhando uma das vagas. O trabalho
era encher os caminhões-baú ou atravessar o jornal que saía da esteira para o
depósito, que ficava do outro lado da rua. Um trabalho um tanto puxado atravessar
os carrinhos, do tipo burro sem rabo, carregados com quarenta fardos, cem
jornais em cada, a movimentada Rua do Riachuelo, era preciso desviar dos carros
ou enfrentar a descida usando o braço como freio. No final do dia vinha a
compensação; o que eles pagavam por doze horas de trabalho era quase o
mesmo tanto que eu ganhava trabalhando de segunda à sexta-feira na obra, além
disso, a comida era melhor e de graça. Depois do primeiro sábado, não deixei
mais de ir. Trabalhava durante a semana na obra e, no sábado, no jornal. Com o
tempo, passei a ter lugar cativo, quase um emprego fixo; bastava chegar de
manhã bem cedo e o meu lugar estava garantido. Dessa maneira, descobri uma
forma de juntar dinheiro mais rápido para, assim, atingir os meus objetivos.
Apesar de toda a maratona, não me sentia cansado;
cheio de esperança me dedicava à leitura de livros do tipo autoajuda na
tentativa de não me deixar influenciar pelo ambiente em que vivia, também, tive
de volta meu sentido de religiosidade, porém, numa igreja se deu um pequeno
incidente que me fez conhecer um pouco mais da hipocrisia da religião: num
domingo, fui assistir à missa numa igreja da Av. Passos e, ao me dirigir ao
padre para receber a comunhão ele se negou a dá-la; a comunhão era privilégio
daqueles que haviam confessado e eram frequentadores assíduos de sua paróquia.
Voltei para o meu lugar e terminei de assistir à missa. Ao refletir sobre sua
atitude, cheguei à conclusão de que ele me negara a hóstia por causa da minha
aparência; trabalhando na obra, de sol a sol, não era mesmo lá essas coisas,
certamente, julgou que eu fosse um mendigo e, talvez, não estivesse de todo
errado, mas isso não era, no meu entender, motivo para me negar o “corpo de
Cristo”, e isso partindo de um “representante de Deus na terra”, me chocou
muito. No entanto, não abalou a minha fé, pois ela estava e está acima da
pequinesa daquela pobre alma que se julgava com poderes para agir em nome Deus.
Nesse período, minha rotina mudou completamente.
Passei a tomar café na padaria e dali ia para a obra na Praça Paris, de onde só
retornava à noite. Como precisava aguardar a hora da entrada e já não tinha
mais tanta necessidade de ficar na fila para garantir o jantar, acabava ficando
mais tempo na praça ou procurava me demorar na rua, na esperança de só chegar
ao albergue quando os portões já estivessem abertos. E isso eu conseguia indo a
cinemas ou exposições em lugares como o Centro Cultural Banco do Brasil, na
época, com quase toda a sua programação gratuita. Ainda assim, acabava voltando
cedo e ficava novamente em contato com todo aquele burburinho. Tudo continuava
como sempre: mendigos, bêbados, ladrões, loucos, todos naquele convívio
promíscuo.
Um sujeito, que eu vira chegando uns dias antes meio
com cara de peixe fora d’água, já estava totalmente integrado, o que me fazia
crer que esse era o caminho natural pelo qual quase todos passavam como aconteceu
comigo. Muitos chegavam ali limpos, até bem-vestidos, mas em poucos dias já
estavam sujos e maltrapilhos como qualquer outro. Tive sorte de não me deixar
levar pelos constantes convites para beber cachaça ou me drogar. O mesmo não acontecera
com o tal sujeito, que, completamente bêbado, tentava vender alguns
objetos pessoais, oferecendo-os a um e outro, sem sucesso.
Sem dúvida, a praça era a grande perdição de todo
albergado da Fundação. Sentado ali, vendo todo aquele burburinho e já não me
sentido mais parte integrante dele, me sentia aliviado; apesar de tudo, estava
livre e com lucidez tentava retomar o meu caminho. Dali, eu seguia para o
dormitório. Não sem antes tomar um prato de sopa, que ainda não dispensava. No
dormitório, ia direto para o meu cantinho; com o tempo, todo albergado acabava
elegendo um lugar para dormir todas as noites, evitava ter de ficar procurando
um lugar para dormir a cada noite. Poucos se interessavam pelas camas, quase
todas quebradas, preferiam dormir pelos cantos, usando tábuas e colchonetes, o
que também gerava confusão: os melhores lugares eram disputados, praticamente,
no tapa: quando alguém invadia o espaço do outro sempre acabava em briga.
Momentos em que prevalecia a lei do mais forte; aquele que se impunha, acabava
levando a melhor. Esse tipo de ocorrência se dava, salvo exceções, com os
recém-chegados que, sem nada saberem, apossavam-se de lugares marcados e, na
maioria das vezes, acabavam tendo de procurar outro canto para dormir. Quando a
briga era entre dois “veteranos”, a coisa era um pouco mais complicada e, não
raro, acabava com a intervenção de um plantonista, a quem cabia decidir quem
tinha razão ou mesmo botar para fora como baderneiros e outras acusações, se
assim entendesse.
O dormitório era dividido em zonas ou grupos: aqueles
que tinham alguma identificação se juntavam e viviam como se fossem velhos
conhecidos, o que se confirmava pelas conversas, pois alguns davam a entender
que já se conheciam de suas passagens por prisões, outros albergues ou por
outras cidades, quase sempre na mesma situação. Destacavam os grupos que se
juntavam para praticar pequenos furtos e os travestis, que eram a verdadeira
diversão do dormitório e, com seus ataques de frescura faziam a alegria de
todos, principalmente quando entabulavam, uns com os outros, conversas
fantasiosas em que se faziam passar por mulheres ricas e famosas hospedadas em
hotéis de luxo que, nesse caso, era o próprio albergue. Por outro lado, deles
também vinha o fato mais alarmante; uma vez que homens e mulheres dificilmente
se encontrassem dentro do albergue, as acomodações eram separadas, os travestis
eram a opção de sexo dentro do dormitório. Quando apagavam as luzes, eles
faziam a festa; havia uma verdadeira rede de prostituição, eles “atendiam” a muitos
clientes por noite. Tudo, eu acredito, sem nenhuma preocupação com contágio de
doenças venéreas ou mesmo com a AIDS, que, naquele período, vitimava
impiedosamente ricos e pobres, famosos e desconhecidos; na verdade, alguns travestis
já aparentavam estar doentes. Muitos se prostituíam abertamente, explorados por
uma espécie de gigolô, que agenciava os encontros. Pelas conversas, também
ficava claro que a maioria fazia ponto nas chamadas “pistas” da cidade,
ou seja, as ruas e beiras de praia, para onde dizia ir aos finais de
semana. Entretanto, a maior ameaça ainda estava por chegar e ela atenderia pelo
apelido de Ruço, um sujeito muito mal-encarado que apareceu de uma hora para
outra e passou a chefiar uma espécie de gangue dentro do dormitório. No meio da
madrugada, eles saiam de suas camas, enrolados em cobertores – o que, no
escuro, os transformavam em figuras assustadoras –, e afanavam o que encontravam
pela frente. Era comum ouvir gritos de “pega o ladrão”, seguido de muito
tumulto e uma vítima de cara marcada no outro dia; além de roubar, a gangue
fazia pequenos acertos de contas com os seus desafetos ou com os desafetos de
seus protegidos. No meio disso, eu tentava fingir normalidade, e, mesmo com o
barulho de vários rádios, ligados em estações diferentes, tentava dormir; o dia
seguinte não tardaria chegar.
Capítulo 8
TENSÃO E MEDO
Entrar toda noite no albergue passou a ser, acima de
tudo, um ato de coragem; a partir do momento em que se cruzava o portão de
entrada dava-se se início a uma verdadeira prova de fogo: sobreviver ali, a
cada noite, não era tarefa das mais fáceis: começava com o contato, impossível
de ser evitado, com os funcionários e se estendia ao convívio com os
colegas albergados, principalmente dentro do dormitório, onde o fortalecimento
das gangs era flagrante. O grande líder era o recém-chegado Ruço – uma figura
aloirada que tinha acabado de sair de um presídio do Rio –, transformado no
verdadeiro rei do pedaço, a quem todos tinham respeito: ele dava ordens e
ditava regras. Isso proporcionava a ele algumas mordomias, como cama especial e
lugares marcados nas filas, por exemplo. As rondas noturnas se intensificaram e
comecei a temer que algo de ruim me acontecesse, pois eles eram muito bem informados
de tudo o que acontecia dentro e fora do albergue, quem trabalhava ou tinha
algum dinheiro, coisas de valor, sabiam tudo. Através dessas informações,
escolhiam suas vítimas e partiam para o ataque. Primeiramente, eles tentavam
uma aproximação na base da malandragem, fazendo-se de amigos da vítima; outra
tática era a da marcação cerrada: passavam o tempo todo tentando atacar e, num
descuido, davam o bote. Por isso, não era difícil imaginar que soubessem que eu
trabalhava e que, portanto, tinha algum dinheiro. Isso era tudo o que eles
queriam. Outro dado que pesava contra mim era o fato de eu ficar isolado de
todos, não ter amizade com nenhum grupo em especial; sempre sozinho e calado no
meu canto, eu era uma vítima em potencial. Isso me deixava muito tenso. E, por
guardar comigo todo o dinheiro que vinham juntando para sair dali, passava as
noites praticamente em claro, fumando um cigarro atrás do outro, para evitar
que algo realmente acontecesse. A tensão aumentou depois da noite em que
acordei com um cara mexendo nas minhas coisas. Lembro que fiz um movimento e
ele desapareceu no escuro. Apesar de, pela manhã, não ter dado pela falta de
nada, não deixou de ser um aviso. Naquele dia mesmo, resolvi que procuraria uma
agência bancária para abrir uma conta-corrente, mas esbarrei em tanta
burocracia que acabei tendo de desistir da ideia. O jeito foi apelar para
pequenos truques: na praça, segurava bem meus pertences e, no dormitório, para
minha segurança, colocava as minhas coisas entre o colchonete e a tábua e
dormia por cima; não conseguia conceber a possibilidade de passar o dia inteiro
trabalhando na obra para entregar tudo para algum vagabundo. Na obra também
acontecia de roubarem dinheiro e pertences um do outro e, como eu andava com
minhas economias na mochila, tinha de ficar bastante atento o tempo todo, ou
seja, não tinha sossego.
A única coisa que me deixava animado por essa época
era a peça de teatro, um monólogo, que eu estava escrevendo: a história de José
da Silva Severino, um nordestino que deixou sua terra natal e veio para Rio de
Janeiro em busca de trabalho e de melhores condições de vida. Cheio de sonhos,
ele acaba se decepcionando, mais tarde se torna um soldado do tráfico. Uma história
nem tão original assim que, para escrever, eu tinha colhido subsídios no
convívio com pessoas que viviam experiências parecidas e também usava as minhas
próprias vivências. No final, Zé, como o personagem é chamado, trai os
companheiros e resolve virar um traficante cheio de poderes que dá ordens a
todos, faz e acontece, ou seja, um homem simples tentando dar o seu grito de
liberdade, livrar-se do opressor, mas tornando-se um deles. Descoberta a
traição, Zé é preso num cativeiro e condenado à morte por seus comparsas, e é
durante o período que vai da prisão até sua execução que a peça se passa. Em pouco
mais de uma hora, ele fala de si, jura inocência, pede clemência e passa sua
vida a limpo.
Como já mencionei, eu sou ator profissional e, além
de atuar, sempre gostei de escrever. Já tinha várias peças escritas, sendo que
algumas até acabaram se perdendo por causa das minhas constantes e mal planejadas
mudanças. A ideia inicial era escrever um livro, cheguei a começar esboçar
alguma coisa e fiz muitas anotações lá mesmo no dormitório do albergue,
enquanto as luzes eram mantidas acesas, o que despertava a curiosidade de todos
e me fazia sentir um verdadeiro Graciliano Ramos quando escreveu sua
maravilhosa obra, “Memórias do Cárcere”. Graciliano Ramos, na verdade, com a
cara do Carlos Vereza, que o interpretou magistralmente na adaptação do livro
feita para o cinema, sob a direção do Nelson Pereira dos Santos. Acabei
desistindo de escrever o livro por achar a realidade de escritor muito distante.
Escrever a peça me pareceu algo mais próximo da realidade que eu vivia no
momento; sentia uma grande necessidade de botar para fora tudo aquilo que
estava me acontecendo e a peça seria esse veículo; livro precisaria de uma
editora, muito dinheiro e coisa e tal, teatro se faz em qualquer lugar e sem
depender de tantos detalhes, pelo menos, eu acreditava que fosse assim.
Depois de pronta a peça, eu fiz uma leitura para o
pessoal da obra e eles, que já estavam muito curiosos, gostaram. Aproveitava o
horário de almoço para escrever e eles sempre perguntavam o que era aquilo que
eu tanto escrevia. Na verdade, eu não tinha lugar certo para escrever, podia
ser na obra, num banco de praça, ou no próprio dormitório, era só ter uma
oportunidade, pegava papel, caneta e começava.
Então, passei a pensar numa oportunidade de
apresentá-la num teatro de verdade. Fazia muito tempo que eu não pisava num
palco. A última vez foi em Belo Horizonte, vivendo o Repórter da peça “A menina
e o vento”, de Maria Clara Machado, com direção do Alexandre Colla, exibida no
Espaço Crepúsculo dos Deuses, uma montagem do grupo Experimental Cênico e
Companhia de Estrelas, formado logo após a minha formatura no NET, em que
convivia com atores como Toninho Leite, Débora Lacerda, Cordélia Corrêa, os
irmãos Eduardo e Olegário Amorim e tantos outros. Dessa vez, era diferente; não
era mais o ator ingênuo que acreditava que um dia iria ser tão famoso quanto um
Antônio Fagundes ou um Paulo Autran, tinha passado poucas e boas e, embora não
tivesse perdido de todo a esperança no futuro, sabia que não podia me dar ao luxo
de ter grandes ilusões, precisava botar os pés no chão, mas como, se eu
precisava sonhar?
O resultado do texto foi uma peça cheia de vigor, um
verdadeiro grito em favor dos excluídos, como eu era naquele momento, uma forma
de protesto e denúncia; o Zé da Silva era eu, os albergados da Fundação Leão
XIII, todo mundo que estivesse à margem e precisasse falar e se fazer ouvido.
Comecei a ensaiar o texto usando o mesmo esquema que usei para escrevê-la, ou
seja, ensaiava ao ar livre nas praças, na obra, no dormitório do albergue,
enfim, onde desse. Sempre contando com a ajuda de um albergado de nome Manoel,
um sergipano feioso, de mais de dois metros de altura, que se aproximou de mim
quando soube que eu gostava de teatro como ele; aficionado por Shakespeare, ele
vivia declamando o famoso monólogo da peça “Hamlet”, e falava horas sobre esse
ou aquele personagem ou peça do bardo. Por vezes, parecia um tanto perturbado,
mas sua companhia era de grande utilidade, pois acompanhava tudo e, na fase de
decorar o texto, era quem ajudava quando me perdia, enfim, guardadas as devidas
proporções, uma espécie de diretor.
Se por um lado eu estava animado com a peça, por
outro continuava vivendo a mesma rotina. A vida dentro do albergue piorava a
cada dia e cheguei à conclusão de que era impossível continuar lá. Ouvi
dizer que a Fundação tinha outro albergue e que era melhor que o da Praça da
Harmonia. Diziam que lá cada um tinha quarto separado e que era destinado
somente àqueles que trabalhavam. Com base nessas informações, procurei a
assistente social; as informações davam conta de que caberia a ela fazer a
minha transferência. Fiz o pedido, mas ela, embora tenha confirmado a
existência do albergue, disse que, para ser transferido, eu teria de estar
trabalhando de carteira-assinada, o que não era o meu caso, portanto, nada
feito. Diante dessa negativa, resolvi que iria alugar um quatro, porém todos
que encontrei exigiam três meses de depósito e o meu dinheiro ainda não dava
para isso.
Na obra, os desmandos do Paulista e seu sócio
aumentavam a cada dia. Toda sexta-feira era uma tarefa árdua conseguir receber
a semana trabalhada, pois sempre havia algum senão: um dia que não fora
apontado, uma quentinha a mais sendo cobrada e coisas desse nível, por outro
lado, a maioria dos peões já estava perdendo a paciência e, nesses momentos,
partia para a ignorância, chegando a ameaçar o Paulista e seu sócio. Muitos iam receber dispostos a qualquer coisa
e se muniam, muitas vezes, das próprias ferramentas para intimidar os dois. Resolvi que não dava mais, precisava arrumar
outro lugar para trabalhar e foi então que caí nas garras de dona Jandira, uma
mulher de meia-idade, que era chamada de a “gata” da obra de reforma da Rua
Uruguaiana: do espeto para a brasa, literalmente. Ela era igual ou pior do que
o Paulista. Apesar disso, fiquei trabalhando com ela um bom tempo. Quando
a obra da Rua Uruguaiana acabou fui, com ela, para a Praça Noronha, perto
da Central do Brasil, na Avenida Presidente Vargas. Se os trabalhadores da Praça
Paris ficavam o tempo inteiro achacando os transeuntes, pedindo dinheiro para comprar
cachaça, os da Praça Noronha faziam o mesmo, mas para subirem até o morro para buscar
cocaína. Depois de “cheirados”, ficavam destemidos e perigosos.
Eram visíveis as marcas que a vida na rua, ou mesmo
no albergue, deixava nas pessoas. Uns pareciam mais fortes e, meio tontamente,
tentavam se reequilibrar; outros adotavam a mendicância como meio de
vida. Nesses casos, a loucura vinha logo. Albergados que chegavam normais, com
as quais cheguei a travar algum tipo de contato, tempos depois, eram incapazes
de me reconhecer quando eu tentava falar com eles. Em certos casos,
demonstravam estar totalmente desequilibrados. Caso do rapaz negro e franzino
que reapareceu na praça com o corpo, principalmente as costas, em carne viva;
o conhecia dali e seu estado me impressionou muito. Fui falar com ele e, embora
não tivesse me reconhecido, contou que estava dormindo na praça e, no meio da
noite, acordou com as roupas em chamas. Tudo o que disse ter visto foi um carro
se arrancando em alta velocidade. Por sorte, recebeu socorro de pessoas da
rua, que o levaram até o hospital Souza Aguiar. Segundo ele, havia uma gangue
rondando a área jogando álcool e ateando fogo em quem encontrasse dormindo na
rua. Achei difícil acreditar que alguém tivesse coragem de fazer uma barbaridade
daquelas com seu semelhante, mas ele estava ali na minha frente para provar que
sim. Dias depois, sua história se confirmaria com outro caso. Dessa vez,
aconteceu próximo ao albergue e os gritos de pavor de um homem foram ouvidos
por todos. Alguns albergados, que subiram nas janelas, disseram ter visto o
homem queimar vivo. Não havia dúvidas de que o rapaz tinha falado a verdade, existia
mesmo uma turma de incendiários rondando o albergue, não tinha como negar, o
terror estava instalado dentro e fora do albergue.
Vivia dias de muita
tensão e medo. As noites passadas sem dormir me deixavam com os nervos à flor
da pele, e até a ideia da peça já não me deixava animado; começava a questionar
sobre o que estava fazendo ali, pensava em abandonar tudo e voltar para casa,
em Minas. Fazia tanto tempo que eu não entrava em contato com a família que nem
tinha mais certeza se teria mesmo para onde voltar. Para completar o
quadro, caí doente: fui abatido por uma forte gripe causada, em parte, por meu
estado psicológico, também pelo fato de muitas vezes ser obrigado a trabalhar
debaixo de chuva na obra; quando começava a chover, quem parasse de trabalhar
tinha o dia cortado. Para evitar que isso acontecesse, eu permanecia
trabalhando. E o resultado estava ali: uma gripe forte e uma inflamação
num dente. Era domingo e tive o dia inteiro para me tratar com remédios
receitados por balconistas de farmácias, na esperança de estar inteiro na
segunda-feira. Pelo contrário, acordei pior. Não tive condições de ir
trabalhar. Como não podia permanecer no albergue, fui para rua, cheio de dores
e com muita febre. Quando me senti um pouco melhor, decidi ir até o outro
albergue da Fundação. Há dias tinha decidido que o procuraria por minha própria
conta, sem depender da assistente social, pois concluíra que ela não estava nem
um pouco interessada em me ajudar.
Indaguei sobre o endereço e acabei descobrindo que
ficava numa rua próxima à Praça Tiradentes, no centro do Rio. E lá fui eu me
arrastando, mas com alguma esperança. Ao chegar, fui informado de que a
assistente social só atendia na parte da tarde. Como não tinha nada para fazer
naquele dia, resolvi esperar. Por volta das duas da tarde, ela chegou. Depois
de uma pequena entrevista, onde descobri que seu nome era Isabel Cristina, ela
me disse que tinha vagas, dado que afirmou ter comunicado ao albergue da Praça
da Harmonia há vários dias. Falei que não trabalhava de carteira-assinada e
ela, contrariando a assistente social Renê, disse que a casa existia exatamente
para acolher trabalhadores informais como camelôs, lavadores de carro e
catadores de papel que não tivessem moradias ou que morassem em áreas distantes
do local de trabalho. Foi a primeira vez que ouvi o termo “Projeto Casa de
Acolhida”, nome pelo qual a casa era conhecida. Em seguida, para minha alegria,
ficou acertada a minha transferência. O prazo de permanência era de seis meses,
tempo que eu teria, dependendo do meu comportamento, para resolver meu problema
de moradia. Mais uma vez, achei que era tempo demais, mas resolvi não fazer
nenhum tipo de comentário do qual viesse a me arrepender, pois tinha
aprendido a ser mais cauteloso.
A assistente social me informou sobre o
funcionamento da casa e fez questão de dizer que o local não era um albergue
como o albergue da Harmonia: os horários de entrada e saída, os horários de
refeições, eram oferecidos jantar e café da manhã, eu poderia lavar roupas,
tomar banhos e tudo o mais, mas não poderia levar mulheres nem receber visitas,
bebidas também eram proibidas. Para finalizar, perguntou sobre meu estado de
saúde, dizendo que desejava que me recuperasse logo e que esperava que eu adaptasse
bem às normas da casa, o que me livraria de ter problemas.
Voltei ao albergue da Harmonia para pegar as minhas
coisas e quando avisei à assistente social Renê que estava saindo, ela não se
deu ao trabalho de perguntar para onde eu estava indo. Mesmo assim, fiz questão
dizer, pois tinha um recado da assistente social Isabel, que pediu que eu
comunicasse a existência de outras vagas. Ela fingiu certa surpresa e eu saí da
sala, depois de agradecer por tudo que tinha feito por mim naqueles dias. Dali,
eu fui para o bagageiro pegar as minhas bolsas. A chance de sair de lá me
deixou muito animado. Não sabia direito o que iria encontrar pela frente, mas
estava confiante; o que quer que fosse, com certeza, seria muito melhor do
aquele lugar. Quando cruzei o portão, cheguei a ficar emocionado. Afinal,
estava saindo, após dois meses da minha chegada. Para ser exato, foram setenta
dias. Houve momentos em que pensei que seria impossível sair dali, que ficaria
para sempre naquele inferno. Sem me despedir de ninguém, atravessei a rua e
caminhei para o lado da Avenida Rodrigues Alves, onde peguei o ônibus
Madureira/Praça Tiradentes. Durante o trajeto, evitei olhar para trás. Na minha
cabeça, um ensinamento do mestre Jesus Cristo: “Aquele que bota a mão no arado
e olha para trás não é digno de mim”. Ao desembarcar na Praça Tiradentes,
atravessei a rua me desviando dos carros e, apesar do meu estado de saúde,
não demorei a chegar à Rua Dom Pedro I, 28, endereço da casa, por volta
das cinco horas. Fui direto ao plantonista, um rapaz gordo e alourado, de uns
trinta e poucos anos, que se apresentou como Gaspar, se mostrou bastante
camarada e informou que eu iria ficar no quarto quatro, como a assistente
social já havia dito. Informou também que os quartos eram abertos às seis horas
da tarde, mas que ele, por deliberação própria, abria mais cedo. Mesmo de manhã,
quando o horário de deixar o quarto era às oito horas, ele disse ser mais
tolerante.
- Sou camarada com os internos. O nego não pode é
vacilar, disse abrindo o quarto, que era relativamente pequeno, mas cabiam três
camas-beliche, com três andares as duas das laterais e com dois a do meio, perfazendo
um total de oito camas, o que me fez crer que ali moravam oito pessoas,
desmentindo a expectativa fantasiosa de que eu teria um quarto só para mim.
As camas tomavam quase todo o espaço,
dificultando a locomoção, provavelmente por isso, o plantonista ficou do lado
de fora, parado na porta, de onde apontou a cama em que eu deveria ficar: a
única com o colchão à vista, dando a entender que estava vazia. Percebi
que não tinha um local para guardar as bolsas e perguntei se existia
algum lugar fora dali para isso; fui informado que não, eu teria de dar o meu
jeito. Como minha cama seria a primeira debaixo para cima, resolvi enfiar tudo
debaixo dela. O homem saiu e voltou com o que seria o meu enxoval na casa – colcha,
lençol, fronha, travesseiro e toalha de banho, tudo novo e branco –, e me entregou
dizendo que a partir daquele momento ficariam sob a minha responsabilidade, eu
tinha de manter tudo limpo e bem cuidado. Depois disso, foi embora dizendo que
eu poderia descansar até a hora da janta. Nessa hora, deveria procurá-lo para
assinar o livro de presença, regra obrigatória da casa.
Gostei da possibilidade de poder descansar um pouco,
aquele tinha sido um dia muito puxado, porém, a curiosidade de conhecer o lugar
onde ficaria morando a partir daquele dia me fez sair pela casa fazendo uma
espécie de reconhecimento do local. À primeira vista, tudo o que se via era um
estacionamento de carros e um galpão de madeira do lado esquerdo, lembrando um
acampamento de trabalhadores, desses que comumente se vê em obras, mas dividido
em cinco quartos-dormitórios, numerados de um a cinco, com capacidade para
abrigar quarenta homens, uma cozinha, uma área aberta, usada como refeitório,
outra com vários lavatórios pequenos e tanques para lavar roupa, havia ainda a
sala da administração e serviço social, uma despensa, além dos banheiros e chuveiros,
que eram separados, o piso era de cimento e a área em volta coberta por uma
camada de brita, o que provocava certo barulho quando se caminhava sobre ela, tudo
isso cercado por uma frágil cerca de arame liso, com vigas de cimento.
Feito o reconhecimento do local, tratei de me
apresentar ao restante do pessoal. Naquela hora, praticamente, só os funcionários
estavam presentes. As cozinheiras e o plantonista, num primeiro momento, pareceram
amáveis e cordiais, diferentemente dos funcionários do albergue da Praça da
Harmonia. Esse fato, por si, já me deixava contente, mas a limpeza do local
chegou mesmo a me deixar impressionado; tudo era limpo e cada coisa parecia
estar em seu devido lugar, o que me fez pensar em tomar um banho para tentar me
adequar ao ambiente.
O chuveiro frio não foi problema; no albergue
da Harmonia e na obra não eram diferente. Tomei um banho como há muito não
tomava. Na verdade, lavei o corpo e a alma. Precisava me livrar daquele
cheiro que parecia ter me impregnado para sempre. No albergue, eu não percebia
tanto, mas, agora, num lugar limpo, se fazia notar.
Um pouco mais tarde, os internos começaram a chegar
– interno era o termo usado para designar os moradores da casa – e eram cerca
de trinta e tantos homens de idades variadas. Alguns eram meus conhecidos da
Harmonia, como o Geraldo. Perguntei a ele sobre seu emprego e ele confirmou que
estava trabalhando, porém não davam moradia, como tinham me dito. Não quis
muito papo comigo, creio que por causa da minha aparência, que a gripe e uma
inflamação dentária castigaram tanto.
Por volta de sete horas, foi servida uma sopa, que não
estava lá grande coisa, gerando reclamação por parte dos internos. Diante disso,
as cozinheiras afirmaram que estavam fazendo o que podiam, pois não havia muito
suprimento. No primeiro dia não quis tomar conhecimento dos problemas que
deveriam existir na casa, queria apenas ver o lado bom, o importante é que eu
tinha saído do Albergue João XXIII e estava num lugar que me parecia ser
melhor, mais condizente comigo. Fui dormir cedo e, então, pela primeira vez em
quase três meses, pude deitar numa cama de verdade. O enxoval novo dava um
toque de conforto e limpeza que eu parecia já ter esquecido que existisse,
reforçando a impressão de que, nos últimos tempos, eu estivera vivendo num
inferno. Dormi ciente de que, a partir daquele dia, começava um novo capítulo
da minha passagem pela instituição.
Capítulo 9
UM GATO ENTRE OS POMBOS
Com o problema de moradia resolvido e a saúde
recuperada, pude retomar alguns projetos que estavam esquecidos. A peça foi um
deles; a estrutura do Projeto Casa de Acolhida permitiu que eu voltasse a
ensaiá-la, e o local escolhido foi o refeitório, um espaço quase todo ocupado
por uma enorme mesa de madeira, usada para as refeições. Por essa época, encontrei
um título que julguei ideal: “Saudades da China”, uma referência ao dito “você
não vai conseguir isso aqui nem na China”, que, embora achasse um tanto quanto subjetivo,
vinha de encontro ao que eu estava procurando. Novamente, me enchi de
entusiasmo e fantasias, aquela velha história de que a peça seria uma
forma de protesto e que conseguiria chamar atenção para a causa dos
desvalidos. Uma vez que os ensaios foram retomados, cresceu a necessidade
de encontrar um teatro para levar o espetáculo, que, agora, estava sob minha
própria direção; um verdadeiro três em um: texto, interpretação e
direção. Resolvi procurar o Teatro Procópio Ferreira, em Nova Iguaçu, e não foi
difícil convencer sua administradora a alugá-lo durante um final de
semana. As apresentações foram marcadas para uma sexta-feira e um domingo, dias
28 e 30 de junho de 1991.
Não calculei a trabalheira que essa empreitada
acarretaria. Foi uma loucura em que só pude contar com a ajuda de Cláudia, uma
jovem de uns vinte poucos anos que conheci na rádio Continental; chegou a
trabalhar com a Deise Borges e também levou calote, mas diferentemente de mim,
tinha a estrutura de sua família e, por ser estudante de jornalismo, acabou
sendo contratada pela rádio Continental, como estagiária. Pessoa bastante
generosa, meu único contato com o mundo dito normal naqueles, me ajudava como
podia, inclusive, quando tentei arranjar emprego e precisei deixar endereço
para contato, me autorizou a dar o de sua casa, e foi através dela que
datilografei o texto da peça, usando uma máquina da rádio Continental. T
Também fez a voz da Dorinha – personagem que surge na peça quando Zé lê a carta
da noiva que julgava estar esperando por ele em sua terra natal –, e conseguiu
muita coisa para a peça: o aparelho de som, que não havia no teatro, convenceu
o Ronald, operador de som da rádio Continental, a gravar a fita do espetáculo,
músicas e sonoplastia, e ajudou na divulgação. Ronald acabou, por sua vez,
colaborando mais; gravou a voz do personagem Rato, o amigo de Zé da Silva
Severino que o trai. Chegado o grande dia, faltei ao trabalho na obra para
cuidar da estreia. Quando Cláudia chegou, me encontrou sentado no camarim; tinha
feito um ensaio e estava descansando. As horas passavam e ninguém aparecia.
Vendo minha decepção, ela foi até o pátio da escola, que funcionava no local, e
trouxe dois alunos que se dispuseram a assistir ao espetáculo. Mais tarde
chegaria Alberto, fotografo amigo dela, a única pessoa que se interessou
realmente em ver a peça. No final, depois de Cláudia se dividir nas funções de
operadora de luz e sonoplasta, tudo acabou saindo bem; os dois alunos
recrutados se empolgaram com o espetáculo, e um deles fez um pequeno discurso
ressaltando minha coragem e, segundo suas próprias palavras, o meu talento.
Agradeci e tratei de voltar para o Rio de Janeiro. No dia seguinte, teria de
estar inteiro para enfrentar a maratona de doze horas no Jornal O Dia, onde
continuava trabalhando como carregador, motivo pelo qual não agendei espetáculo
para o sábado.
Apesar de um tanto decepcionado, tentei me animar; se
aquele primeiro dia não tinha sido bom, restava o domingo. Quem sabe não teria
mais sorte? Ledo engano: foi ainda pior; não apareceu ninguém, nem mesmo a
Cláudia, que disse, depois, que tivera algum problema que a impedira
de ir. Mesmo assim, permaneci no teatro alimentando alguma esperança. Do lado
de fora, uma chuva fina fazia com que a noite ficasse fria. Sentado na plateia,
eu olhava para a pintura do retrato do ator Procópio Ferreira, que dá nome ao
teatro, e o invejei. Queria ter a sorte que ele teve de ser reconhecido pelo seu
trabalho e dar nome a um teatro, ainda que fosse malcuidado e perdido num
lugar ermo. Ao lado do retrato, nomes de outros atores do passado como
Itália Fausta, João Caetano, Alda Garrido e outros, numa homenagem simples, mas
tocante. Só então percebi o quanto tinha sido pretensioso. Quando peguei o trem
de volta para o Rio, tive a sensação de que tinha sonhado demais.
Não demorou muito para que eu ficasse inteirado de
todo o funcionamento do Projeto Casa de Acolhida; já conhecia todos os
funcionários: as duas assistentes sociais, a Isabel, minha conhecida desde o
primeiro dia, a Blandina, e a estagiaria Vânia, que dividiam uma sala com dois
funcionários burocráticos, que eu só vi nos primeiros dias; os plantonistas e
as cozinheiras trabalhavam em grupos fixos, cerca de quatro, sempre um
plantonista e duas cozinheiras, que trabalhavam em turnos de vinte e quatro por
setenta e duas horas, eram os que tinham mais contato com os internos, uns
permitiam maior aproximação e outros faziam questão de manter uma boa
distância; o coordenador, um senhor de uns sessenta e poucos anos, chamado José
Luís, que chegava sempre na hora em que a sopa estava sendo servida e saía logo
em seguida, na maioria das vezes, sem nada dizer.
Eu dividia o quarto com Roberto, uma
espécie de líder, Juracy, um paulista caladão, Fábio, um nortista vendedor de
biscoitos, Daniel, um nordestino, China, um guardador de carros, Sérgio,
um mineiro, que presenciei roubar uma bicicleta na Praça da Harmonia, e outro,
que não cheguei a guardar o nome, que foi embora nos primeiros dias, pois faria
uma cirurgia, em São Paulo; no dia que partiu despediu-se demoradamente de todos.
O convívio não era de todo ruim, apenas sofria as agruras de ser novato; todos
tinham alguma coisa a dizer sobre como me comportar no quarto, uma vez que haviam
criado algumas normas: era proibido fumar, por causa do risco de pegar fogo na
madeira, depois das dez horas não era permitido acender a luz, ouvir rádio,
dentre outras coisas: normas que eles não seguiam, mas que faziam questão de que
eu seguisse.
No que dizia respeito aos internos dos outros
quartos houve um estranhamento inicial, mas pouco a pouco fui conhecendo um e
outro e me tornando aceito. Também aos poucos, conhecia a casa e os seus
problemas; sim, eles existiam. Constatação que me fazia crer que eu tinha feito
um julgamento apressado. Achei que ali era um paraíso e a cada dia descobria o
quanto estava enganado; embora estivesse longe de se comparar com o albergue da
Praça da Harmonia, era possível notar algumas semelhanças. E isso ficou
mais evidente num incidente entre um colega do meu quarto, o Roberto, e um
plantonista que, para evitar qualquer problema, vou chamar de X: um belo dia, eu
estava descansando no quarto quando o plantonista X chegou transtornado
procurando o Roberto, que chegou logo após, muito bêbado. O que deu para
entender, pela discussão, X acusava Roberto de estar dizendo que ele era “viado”
e se envolvia com os internos. Ele confirmou a história, acrescentando que o surpreendera
fazendo sexo oral em determinado interno na sala da administração. Aí as
agressões tiveram início. X, que era mais forte, bateu muito no interno, apesar
da intervenção dos presentes. Do quarto, a briga evoluiu para o lado de fora,
chamando a atenção de toda a casa, e a briga só terminou quando todos se
juntaram e afastaram o plantonista, que, a essa altura, mais parecia um animal
selvagem. Roberto, sangrando muito, saiu do Projeto naquela noite mesmo.
O fato chamou a minha atenção para uma prática que
havia ali: as expulsões. A partir daquele dia, muitos casos vieram a acontecer;
geralmente, aconteciam durante a noite, eram mais comuns do que eu podia
imaginar, e tanto podiam ser por problemas entre os internos ou destes
com os funcionários, como no caso do Roberto. Pela manhã, o caso era registrado
e as assistentes sociais, quase sempre, optavam pela expulsão, o que me deixava
bastante apreensivo; nunca sabia quando alguém iria cismar com a minha cara, além
do mais, a cada expulsão, vinha outro interno para o lugar, uma nova pessoa nem
sempre muito bem-vinda. Mesmo assim, dava para ir levando, porém, a chegada de
um interno chamado Genílson trouxe sensíveis mudanças: era um rapaz de uns
vinte e tantos anos, mulato, alto, articulado e muito falante. Logo fez amizade
com todos e tornou-se uma pessoa popular, principalmente com os funcionários da
casa, entre os plantonistas, em especial, dos quais se tornou companhia inseparável,
o que fez com que tivesse privilégios e passasse a agir como verdadeiro
plantonista; era comum vê-lo repreender internos e dar ordens a um e outro.
Comigo não chegava a se meter, apesar de estar lotado no meu quarto; viera
ocupar a vaga surgida com a expulsão do Roberto. No quarto cometeu um dos seus
desatinos: numa noite, altas horas, quando todos dormiam, ele chegou fazendo o
maior alarde e foi direto às camas do Sérgio e de outro interno de nome Paulo.
Retirou-os debaixo de sopapos, acusando-os de serem os responsáveis pelos
roubos que vinham acontecendo dentro do Projeto. Falava e espancava os dois,
que não chegavam a oferecer resistência. O barulho atraiu a atenção de todos.
Nessa hora, o plantonista, um senhor de nome Odilon, que dormia na sala da
administração, foi chamado. Sérgio e Paulo juravam inocência, mas “o xerife”
afirmava que eles eram ladrões e que deviam ser expulsos. O plantonista, muito
sensatamente, ponderou que deviam esperar o dia seguinte para que as
assistentes sociais resolvessem a questão. O autoproclamado plantonista concordou,
mas decidiu que os acusados deveriam ter os seus pertences vasculhados para que
se tentasse reaver os objetos roubados. É verdade que os roubos estavam
acontecendo, as reclamações eram constantes, porém, revistados os pertences dos
dois, nada foi encontrado. No entanto, Genílson, investido de seu poder,
ordenou que eles desaparecessem dali, imediatamente, e, mesmo sendo madrugada,
não tiveram outra saída senão obedecer.
Apesar das reclamações feitas à coordenadoria da
casa e ao serviço social, ele continuou aterrorizando por muito tempo ainda.
Aos poucos, se tornou uma pessoa malquista e temida pelos internos, sobretudo,
por aqueles que frequentavam as reuniões que o serviço social fazia, semanalmente,
na tentativa de buscar soluções para os problemas que surgiam e, naquele
momento, era a falta de suprimentos para a sopa, o principal deles; acreditava-se
que essa era, em muitos casos, a única refeição que a maioria fazia durante
todo o dia, deixando claro que havia muitos desocupados na casa: internos que
não tinham nenhuma renda. Isso desmentia a história de que só podia ficar na
casa quem tivesse algum tipo de trabalho. Reunimo-nos várias vezes para tentar
encontrar uma solução para a questão da alimentação. A sugestão era a de que se
permitisse que as cozinheiras vendessem comida aos internos e que cada um
pagasse mensalmente. A proposta foi descartada pelas assistentes sociais Isabel
e Blandina, que trabalhavam em dias e horários alternados, mas nas reuniões
estavam sempre presentes, pois acreditavam que era função da Fundação Leão XIII,
no que eu concordava com elas, porém, os problemas iam muito além do fato de
não haver comida: muitos internos eram alcoólatras, toxicômanos e até marginais
perigosos. Semelhante ao que ocorria no albergue João XXIII, no Projeto também
tinha aqueles que não estavam a fim de nada além de um lugar para se encostar
ou se esconder. Eles eram, em sua maioria, homens de meia-idade cheios de
vícios e problemas que estavam ali exatamente porque esses vícios
terminaram por afastá-los de suas famílias: pais, irmãos, esposas, filhos.
Em tese, o Projeto Casa de Acolhida era muito bonito
em seu ideal humanitário, entretanto, não tinha muita estrutura, era recente,
tinha sido inaugurado em fevereiro de 1991, construído no final do mandato do
governador Moreira Franco e o novo governo não sabia exatamente o que
fazer com ele.
As reuniões passaram a ser de grande importância para
a vida na casa. Vez ou outra se achava uma solução para algum problema que
afligia a todos, o que fez com que passassem a ter um sentido maior: deixávamos
de ser simples estranhos e íamos tornando-nos mais conhecidos uns dos outros. Foi
numa dessas reuniões que surgiu a sugestão de que devíamos ter um aparelho de
televisão para que todos pudessem assistir à noite, antes de dormir. A ideia
nasceu embalada pelo fato de que o plantonista Antônio levava um aparelho
portátil nos seus plantões e a colocava no refeitório para todos assistirem. Grande
parte se interessava em assistir telejornais, humorísticos, programas
musicais, novelas e, principalmente, futebol. No dia do plantão do
Antônio, o refeitório ficava lotado até tarde; nos outros dias, todos sentiam a
falta do televisor. Por isso, decidiu-se que o melhor era comprar um aparelho e
que isso seria feito através de uma coleta de dinheiro, ou seja, todos os
internos contribuiriam. A decisão gerou polêmica: uns achavam que não ficariam
na casa tempo bastante para desfrutar do aparelho; outros achavam que o
aparelho deveria ser fornecido pela Fundação; e as próprias assistentes sociais
viam aquilo com reserva. Mesmo assim, a “vaquinha” terminou por ser feita, não
para comprar uma televisão nova, mas para consertar um aparelho velho que o coordenador
José Luís doou. O conserto consistia na troca do tubo de imagem, que estava
queimado e, como ali de louco e médico tinha de tudo, logo apareceu alguém que
se disse entendido em eletrônica e ofereceu para trocar o tubo e fazer os
reparos necessários. Coordenação feita pelo Paulo – morador do quarto um, que se
despontava nas reuniões, quarenta e poucos anos, muito ligado às assistentes
sociais e com fama de ser o interno mais respeitado da casa –, o tubo comprado,
chegou o dia da instalação, porém o tesoureiro alegou necessidade de se
ausentar e passou o encargo de gerenciar a troca para ninguém menos que o Genílson.
O técnico em eletrônica era um cara baixinho, de
idade indefinida, que eu sempre via por ali. Cheguei a julgar que fosse um
tanto perturbado dado ao fato de ter o hábito de conversar sozinho, também por
ouvi-lo contar que era caminhoneiro e sofrera um acidente em que teria perdido,
além do caminhão, alguns familiares: as sequelas do acidente eram visíveis.
Independente disso, a troca começou a ser feita, em cima da mesa do refeitório,
sob o olhar de muitos curiosos. O homem parecia seguro naquilo que fazia e todos
estavam ansiosos, afinal, ter uma televisão para assistir todas as noites seria
quase um luxo, ainda que fosse preto e branco. Serviço pronto, hora de testar: todos
se prepararam para o grande momento. O aparelho foi ligado e, simplesmente, explodiu:
teve gente correndo para todo lado, pois como tudo aquilo era de madeira,
existia o risco de incêndio. Felizmente, nada de pior aconteceu, no entanto,
morria ali o sonho da televisão comunitária.
Além do susto, o pretenso técnico levou uma surra do
Genílson, mais uma vez, agindo arbitrariamente. Apesar de toda a indignação que
suas atitudes causavam em todos, ninguém fazia nada. Muitas vezes, essas
arbitrariedades nem eram comunicadas ao serviço social, pois de nada adiantava,
parecia que tinha ascendência sobre todos, sobretudo as cozinheiras, que diziam
que ele era um bom-menino, e os plantonistas que deixavam agisse como bem
entendesse, sem nada fazerem para impedir. Por esse período, ele arrumou um
cachorro para, palavras suas, vigiar a casa. Confesso que achei a atitude
descabida, mas a maioria entendia que um cachorro protegeria a casa de possíveis
ladrões ou coisa parecida. O cachorro, preto, tipo fila, passou a conviver com
a gente; logo desapareceu. Dias depois, um funcionário da casa, de nome Roberto,
um funcionário do Projeto, sem uma função específica, acredito que nem ele
mesmo sabia o que fazia na casa, só sei que passava o tempo inteiro bêbado, importunando
seus colegas funcionários e os próprios internos, apareceu com o rosto todo
coberto de umas marcas, que pareciam ter sido provocadas por mordidas. Correu o
boato de que ele, muito embriagado, resolvera brincar com o cachorro e ele o
atacara, mordendo-lhe o rosto e que essa seria a causa do desaparecimento do
animal, entretanto, o verdadeiro motivo foi bem outro: havia um homem que vivia
sentado na mesa do refeitório fazendo entalhe em madeira, o que deixava o local
completamente sujo, fato que quase sempre gerava briga entre ele, os
funcionários e mesmo os internos, que ficavam incomodados com sua constante
presença. Mulato, ele tinha uns sessenta anos e atendia pelo apelido de Baiano,
por causa de seu estado de origem, o que se confirmava quando se via o produto
do seu trabalho, pois sempre retratava o lado velho de Salvador, capital da
Bahia. Inicialmente, tive a impressão de que fosse interno também, mas logo essa
impressão foi desmentida: ele fazia pose de pessoa importante; estava sempre
vestido com um terno amarrotado, era íntimo dos funcionários e isso me levou a
descobrir que se tratava de um ex-funcionário da Fundação Leão XIII, que fora
afastado depois da mudança de governo e estava ali porque não tinha onde morar,
no entanto, se negava a ser um interno como nós, embora as assistentes sociais
vivessem no seu pé para que acertasse sua situação ou saísse dali de vez, mas não
acontecia nem uma coisa nem outra, e ele permanecia sentado na mesa do
refeitório dia e noite.
- Eu trabalhava junto com os “hôme”, não era um
funcionariozinho qualquer não, falava ele para lembrar a todos de que já tivera
muito poder na Fundação; geralmente, se inflamava nessas ocasiões.
Alguns internos e funcionários gostavam de vê-lo
irritado e viviam provocando-o, quando ele dizia que se nós estávamos tomando
sopa ou mesmo morando ali é porque ele deixava.
- Essa casa era para ser minha.
Com o tempo, tornou-se motivo de chacota de todos
pelo fato de não ter o hábito de tomar banhos, foi perdendo a pose e passou a
fazer amizades com os internos, particularmente, com o Genílson. Curiosamente, eles eram sócios no negócio do
cachorro, que, como ficou esclarecido, nunca foi do Projeto, tendo ficado ali
somente enquanto fechavam sua venda. Esse foi o motivo de seu sumiço, pois Genílson
o vendera. Até aí nada demais; um animal no Projeto representava uma boca a
mais e a comida já era escassa para os próprios internos. Nesse caso, sua saída
era uma notícia muito boa, pelo menos em minha opinião, porém, o negociante não
dividiu o dinheiro da venda com o sócio e, com isso, nasceu uma séria
desavença entre eles; sem conseguir sua parte no dinheiro, Baiano jurou
vingança: faria de tudo para que o interno expulso do Projeto.
Era fácil perceber que ali muitos usavam drogas, aliás,
nas madrugadas, ela corria solta; chegavam a fazer vaquinha para comprar. Numa
noite, depois de ser acordado por uma barulheira infernal vinda do lado de fora,
vi quando um interno do quarto, o China, entrou, revirou suas coisas e saiu com
uma arma dizendo que ia matar alguém. Não aguentando de curiosidade, e por
estar acordado, fui ver o que estava acontecendo. Ao chegar, vi que o Neguinho,
interno do quarto dois, chorava ajoelhado afirmando que tinha sido assaltado e levaram
todo seu dinheiro. Numa questão de segundos, todos os internos estavam de pé. Sob
o olhar de todos, China apontava a arma para a cabeça do Neguinho ameaçando atirar.
Tentei entender o que estava acontecendo e descobri que o interno subira até um
determinado morro para buscar cocaína, porém fora roubado.
- Você tá de caô, acusava China deixando claro que
não acreditava na história.
Isso gerava toda aquela confusão, que podia terminar
em morte, e que atraía cada vez mais gente. No meio de tudo, sem mais nem
aquela, Baiano, que estava presente, desferiu um murro na cara do Genilson,
gerando outra confusão. O plantonista foi chamado e Baiano exigiu que
fosse registrada uma ocorrência:
- Genílson é o responsável por toda essa desordem;
Neguinho subiu o morro pra buscar cocaína a mando dele, e isso tá trazendo
perturbação pra dentro da casa, por isso, ele tem de ser punido.
Resultado: no outro dia, sem que ninguém esperasse,
o “xerife” foi desligado do Projeto pelo serviço social e teve de ir embora. Ironicamente,
dias antes, num domingo, ele aceitou Jesus, num culto realizado no refeitório,
prometendo que a partir daquele dia ia mudar de vida. De uma forma não muito
correta, mas bastante oportuna, estávamos livres dele.
- Pensou que podia me passar a perna, se deu mal,
vociferou Baiano sentado na mesa do refeitório; quanto aos outros internos
envolvidos na confusão, nada foi dito nem feito.
Apesar do insucesso da instalação do aparelho de
televisão, as reuniões continuaram acontecendo com certa regularidade. Até
porque, os problemas não paravam de aparecer; além da sopa, começou a faltar o
café da manhã também. E não adiantava esperar que a Fundação mandasse algum
suprimento, a falta era sentida noutras unidades consideradas mais essenciais.
Desde a posse do novo governo, a entidade estava sem
um diretor e isso, diziam, tornava as coisas mais difíceis. Isso fez com
que se pensasse numa saída, fora da Fundação, para o impasse: a solução veio do
Paulo. Apesar de já estarmos no mês de julho, ele sugeriu que fizéssemos uma
festa junina com o intuito de arrecadar fundos para comprar suprimento para a
sopa e o café da manhã. A sugestão foi acatada por todos, com entusiasmo, e
partimos para a organização. Paulo pretendia fazer uma festa grande, com muitas
quadrilhas, barracas, bebidas, auto falante, enfim, e chegou a batizá-la de
“Arraial do Cachorro Cansado”, em referência a um bloco carnavalesco que
existia no Flamengo. Em seus planos constava a possibilidade de conseguir apoio
de fábricas de cerveja, como a Antártica e a Brahma, que emprestariam barracas,
cadeiras, mesas etc. Foi também em busca de apoio que procuramos a RIOTUR,
porque, segundo ele, eles nos ajudariam com os enfeites da rua e
transporte dos integrantes das quadrilhas. Fomos – eu, as assistentes sociais
Isabel e Blandina, Cláudio, interno do quarto cinco, Renato, interno do quarto
um, e o Paulo – recebidos por um rapaz, gordo e alto, que se apresentou como
responsável pela área de apoios da RIOTUR. A assistente social Isabel achou por
bem falarmos um pouco de nós e do trabalho realizado pela Fundação.
- Fundação Leão XXIII? Sim! Acho que conheço. Não é
aquela que cata mendigos na rua? foi o comentário que ouvimos.
Diante do exposto, ficou difícil argumentar. Isabel
bem que tentou fazer o homem ver que não era bem assim e tal e coisa, mas
ele se apressou em dizer que não poderia fazer nada. Voltamos para o Projeto e
lá ficamos sabendo que, da mesma forma, nada seria conseguido com as fábricas
de cerveja, aliás, bebida alcoólica estava definitivamente fora de cogitação, devido
ao fato de muitos ali serem dependentes de álcool. Talvez por isso, Paulo tenha
pulado fora da organização da festa e do Projeto, não tendo sido mais visto por
ali a partir daquele dia. Com seu misterioso desaparecimento, a comissão da
festa ficou bastante reduzida. Basicamente, eu, Isabel e o Cláudio, um
pernambucano falante, muito prestativo, que tinha chegado pouco depois de mim, e
trabalhava entregando panfleto nas ruas. Juntos, percorremos o comércio das
redondezas, pedindo prendas, e conseguimos bastante coisa. A Brahma emprestou
alguns balcões e as barracas foram improvisadas. Na reta final, muitos internos
colaboraram e o destaque foi para o Chagas, que era do quarto, mineiro,
trabalhador de construção civil, responsável por quase toda ornamentação da
festa; não poupou esforços para conseguir folhas de palmeira e até uma
gambiarra para a iluminação. O som foi emprestado pelo Coordenador. Fizemos
muitas e coloridas bandeirinhas de papel de seda. Cada quarto ficou responsável
por uma barraca, que foram variadas. As cozinheiras fizeram salgadinhos para
vender e um dos quartos optou pela venda de refrigerantes. Sugeri ao Fábio,
morador do meu quarto, que colocasse uma barraca com um bingo, o serviço social
optou por um bazar de roupas usadas, e apenas uma quadrilha apresentou-se,
convidada pelo cozinheiro Chiquinho, único homem no meio de sete
cozinheiras. A festa atraiu pessoas das redondezas e os funcionários levaram
seus parentes e amigos. Tudo muito simples, mas com muita animação. Apenas um
incidente marcou a noite: um dos convidados, um médico chamado Dr. Júlio,
alegou que sua carteira, com dinheiro e documentos, tinha sido roubada.
Por não encontrá-la, ele chamou a polícia que, além de revistar todos os
internos, fez com que mostrássemos os nossos pertences. Todas as malas e bolsas
foram revistadas, sem que nada fosse encontrado, o que gerou um grande
constrangimento e apressou o fim da festa. Naquela noite todos dormiram com
alguma coisa atravessada na garganta.
Capítulo 10
O ENGAJAMENTO
Fazia mais de um mês que eu estava “morando” na Casa
de Acolhida e sua infraestrutura me permitia levar uma vida quase normal; falando
grosso modo era como se eu estivesse morando numa vaga. Diferentemente de
muitos internos, que pagavam as cozinheiras para lavarem suas roupas, eu
preferia cuidar das minhas, pessoalmente; era para isso que existiam os tanques
e a água em abundância. Por essa época, tinha recuperado totalmente a
saúde e comemorava o fato de estar cerca de dois meses sem fumar. Depois de passar
alguns anos fumando, era a primeira vez que decidia parar: a decisão fora
tomada durante os dias em que estive fortemente gripado e, passado o nervosismo
dos primeiros dias, já me sentia melhor e acostumando com a ideia de não fumar nunca
mais, apesar do fato de que quase todos à minha volta fossem fumantes
inveterados. Despeito todos os incidentes que aconteciam diariamente, me sentia
mais tranquilo e traçava alguns planos para o futuro, entre eles, abandonar o
serviço na obra para arranjar uma ocupação de carteira-assinada na minha área,
ou seja, num escritório de contabilidade. No entanto, após pensar um pouco,
julguei que ainda precisava juntar um pouco mais de dinheiro. Apresentar a peça
no teatro de Nova Iguaçu acabou custando mais do que eu imaginara, pois, além
de ter amargado toda aquela decepção, precisei desembolsar algum dinheiro para
pagar o aluguel do espaço; somado ao fato de ter ficado uns dias parado, por
causa da gripe e da inflamação dentária, o resultado era que eu ainda não podia
deixar a obra, tive de me conformar e continuar a enfrentar a vida de peão de
obra na reforma da Praça Noronha.
Após a festa junina, houve uma aproximação maior dos
internos com as assistentes sociais; os dias trabalhados juntos na organização
da festa permitiram que passasse a existir uma relação de confiança entre as
duas partes e o resultado foi benéfico para ambos. Todavia, bem diferente da
expectativa inicial, o dinheiro arrecadado não foi lá grande coisa. Mesmo assim,
Isabel fez uma lista de prioridades e eu fui com ela fazer as compras. Deu para
comprar apenas alguns objetos que estavam faltando: copos, pratos, garfos,
colheres, cestas de lixo; os gêneros alimentícios ficaram de fora.
O Projeto – nome mais usado para referir-se a casa –
não tinha ainda uma linha de ação definida. A própria Fundação, como afirmavam
os funcionários, sobretudo as assistentes sociais, nunca tinha trabalhado com
aquele tipo de casa, ou seja, estavam tateando no escuro. As assistentes
sociais, cheias de boas intenções, buscavam uma maneira de melhor conduzir as
coisas, porém, isso era ameaçado, tanto pela falta de estrutura administrativa,
quanto pelo próprio interno que, apesar de ter ali uma maneira relativamente
decente de reconstruir sua vida, tinha interesse de que prosperasse, mas, sem
regras muito bem definidas a seguir, agia como bem entendia criando, com isso,
um ambiente confuso. Foi daí que nasceu a necessidade de que se fizesse um
trabalho efetivo para que as coisas pudessem de fato funcionar melhor. Tudo
começou dentro dos quartos com a escolha, entre os seus ocupantes, de uma
espécie de líder, que teria a função de ser uma ponte entre o ocupante do quarto
e a casa. As eleições para escolha dos líderes ocorreram sem problema; essas
lideranças, em muitos casos, eram naturais: como era o caso do Valdecir, do
quarto dois, o Chagas, do quarto um, e o Cláudio do quarto cinco. No quarto
quatro, para minha surpresa, o escolhido fui eu, embora achasse que o Fábio, o
vendedor de biscoitos, fosse o mais indicado. Apenas o quarto três, em que
estavam os internos mais problemáticos, não escolheu nenhum líder. Logo em
seguida, foi escolhida uma comissão para elaborar um estatuto de funcionamento
para a casa. Mais uma vez, fui um dos escolhidos, juntamente com o pernambucano
Cláudio. Também faziam parte da comissão as duas assistentes sociais, o
plantonista Gaspar e a cozinheira Aparecida. Durante alguns dias, nos reunimos
e no final o estatuto estava pronto. Era muito simples e nele constavam coisas
básicas, como hora de entrada e saída, horário das refeições, e do uso das
partes comuns, como chuveiros, banheiros e os tanques de lavar roupa etc.
Regras que, na verdade, já existiam, mas que não eram cumpridas. Discutimos
também alguns pontos polêmicos, como a proibição de vender comida ou qualquer
outra mercadoria dentro do Projeto, e fixamos o horário limite para que o interno
se recolhesse ao seu quarto: às vinte e duas horas. A assistente social Isabel
propôs a criação de uma carteirinha de identificação do interno em que constaria
foto, nome do portador, os números do quarto e da cama, além da data que o
portador dera entrada e a data do futuro desligamento. Alguns tópicos geraram
muita discussão e o caso da venda de comida pelas cozinheiras dona Maria e dona
Terezinha foi um deles; a maioria batia na tecla de que essa função era da
Fundação. As expulsões foram outro ponto de grande polêmica. Sobre elas me
debati muito; embora as julgasse necessárias, achava que eram também, muitas
vezes, arbitrárias, pois não se chegava a apurar, com clareza, as denúncias e
ocorrências, tudo era decidido no calor do momento, mas não obtive sucesso.
Julgaram que eu estava advogando em causa própria, uma vez que também poderia
ser expulso como qualquer outro. Não podia duvidar que isso acontecesse; bastaria
me envolver numa confusão com algum funcionário e, pronto, estava na rua: entre
a palavra de um funcionário e a de um interno, prevalecia a do funcionário.
Com o estatuto pronto, chegou a hora de colocá-lo em
prática. O primeiro passo foi torná-lo conhecido. Fui designado para
datilografar tudo na velha máquina de escrever da administração. Em seguida,
foram afixadas cópias na porta de cada quarto e em outros lugares visíveis da
casa, fato que acabou por gerar algumas manifestações contrárias; no dia
seguinte, algumas cópias apareceram arrancadas e rasgadas e os comentários
desaprovadores foram feitos abertamente. Ainda assim, Isabel seguiu firme no
seu propósito de botá-lo em prática. Para a confecção das carteirinhas de
identificação, foi necessário numerar todas as camas e confirmar a numeração
dos quartos que já existia, mas não era oficial. Com isso, minha cama ganhou o
número trinta e dois. Isabel também resolveu numerar os lençóis, fronhas e as
tolhas com o mesmo número da cama, usando um pincel com tinta acrílica. Na hora
da confecção das carteirinhas, muitos alegaram não ter retratos nem condições
para tirá-los. O serviço social conseguiu que fossem feitos através de um
fotografo que trabalhava para a Fundação, sem que os internos nada pagassem por
isso. Outra iniciativa nascida depois das reuniões para criação do estatuto foi
a de montar uma espécie de banco de empregos, visando os muitos desempregados
que existiam ali, através de parcerias de empresas – que comunicariam a
existência de vagas – com o Projeto, que indicaria os candidatos aptos para
cada função, cabendo a seleção final às futuras contratantes; embora tenham
acontecido alguns contatos entre as assistentes socais e empresas interessadas
na parceria, nada de concreto foi realizado nesse sentido.
Mesmo com todas as dificuldades, a casa parecia ir,
aos poucos, entrando nos eixos. Lentamente, começaram a chegar pessoas mais
centradas e com objetivos mais definidos, isto é, ficar ali até adquirir
condições de pagar por sua moradia. As lideranças também estavam fortalecidas e
isso fazia com que eu tivesse um contato quase que diário com as assistentes
sociais; mais com Isabel do que com Blandina. As duas tinham temperamentos
muito diferentes; enquanto Blandina mantinha uma considerável distância dos
internos, Isabel era mais próxima, parecia mais interessada que tudo desse
certo e era também a mais inflamada das duas; Blandina revelava-se mais
intransigente, principalmente na hora de resolver qualquer questão relacionada
ao comportamento do interno; para Isabel o interno estava acima de tudo,
para Blandina, as regras estavam acima de tudo. Independente disso, o trabalho
delas não entrava em choque, pelo menos, não cheguei a presenciar nenhum tipo
de situação que me levasse a pensar o contrário. O contato constante com elas
me fazia ficar mais inteirado das coisas, conhecer mais a fundo os problemas da
casa e isso me levou a uma constatação que me fez mudar ainda mais minha maneira
de agir ali dentro: a Casa de Acolhida era um projeto pioneiro, um teste do
qual dependeria a abertura de outras casas, como aquela, para atender a
todas as pessoas que viviam nas ruas. Vinha daí a explicação para o uso da
palavra “Projeto” na frente do nome “Casa de Acolhida”. Isso fez com que me
sentisse um tanto responsável por sua continuidade. Mais do que nunca, eu iria
lutar para que desse certo. Tinha, é lógico, o meu interesse particular de que
a casa durasse pelo menos mais quatro ou cinco meses, o tempo que me restava
ali, mas acima de tudo pensava no bem que faria a outros, se viesse a dar
frutos. Creio que não só eu, mas todos pareciam imbuídos do mesmo objetivo. A
ideia de deixar de pensar simplesmente em si e dar espaço para o interesse coletivo
tomou conta de todos; era comum ver todos trabalhando para que tudo realmente
desse certo.
Esse espírito rendeu outras mudanças, como a
construção de uma sala para o serviço social – buscando dar mais privacidade
para o atendimento ao interno –, também em madeira, usando uma parte do refeitório,
realizada por um interno, um senhor de uns sessenta e poucos anos, marceneiro,
bastante habilidoso, que enfrentava sérios problemas de alcoolismo.
Na nova sala, passou a funcionar também uma biblioteca.
A iniciativa partiu de Isabel, que conseguiu algumas doações de livros e
revistas. O acervo foi completado com doações dos próprios internos. Fui
escolhido para catalogar tudo e acabei fazendo o papel de bibliotecário;
separei os livros e revistas por ordem de assunto e fiquei responsável por
emprestar e receber de volta o pequeno acervo. Isso me obrigou a criar um
fichário e ter controle do que entrava e saia, bem como da conservação do
material. Entre as doações também constavam brinquedos do tipo passatempo, como
quebra-cabeças e dominós, que passaram a ser a grande diversão de todos. À
noite, depois da sopa, a pedida era uma partida de dominó. Chegou-se a ter
duplas que eram difíceis de serem vencidas, como o Chagas e o Menor, por
exemplo. Novamente cogitou-se comprar um aparelho de televisão, mas a
lembrança da experiência fracassada ainda era muito forte e a ideia não foi
adiante.
As mudanças não fizeram da casa nenhum paraíso, porém
facilitou em muito a vida ali dentro. Os problemas existiam e não eram poucos,
mas pairava no ar certa vontade de mudança.
A onda também atingiu os alcoólatras, que eram
muitos e representavam, talvez, o maior problema enfrentado ali; o alcoolismo era
o responsável por dificultar o relacionamento não só entre os internos, também
entre o interno e os funcionários. Em suma, era a bebida a maior causa das
confusões e das, ainda, constantes expulsões. Era triste ver um colega ser
desligado porque bebeu um pouco mais e arranjou confusão. Na tentativa de
resolver o problema, as assistentes sociais acabaram acatando a sugestão dos
internos, Jorge Cozinheiro e um recém-chegado chamado Sérgio, ambos do quarto
cinco, de convidar um membro dos Alcoólicos Anônimos para dar uma palestra no
Projeto. Numa noite, recebemos a visita de um representante do grupo, que nos
falou sobre os perigos do vício e nos alertou para o fato de que todo mundo é
um alcoólatra em potencial; segundo ele, para ser considerado um alcoólatra bastava
beber mais de um copo. Afirmação que me deixou um pouco apreensivo: sempre bebi
mais que dois copos. A reunião foi bastante proveitosa. O representante deu
depoimento dizendo manter-se longe do vício graças à entidade. Salientou também
necessário ter coragem para assumir-se viciado e que esse é o primeiro passo a
ser dado. O interno Jorge Cozinheiro deu depoimento afirmando-se alcoólatra; por
causa do vício, foi expulso da casa dos pais e acabou vivendo na rua como
mendigo, tendo encontrado ajuda somente ao procurar o AA. Depois disso, encontrou
uma profissão, a de cozinheiro, daí seu apelido, e estava reconquistando a
confiança da família. A seguir, foi a vez de Sérgio falar que, ao contrário de
Jorge, se disse viciado em drogas, adotara a filosofia dos Alcoólicos Anônimos
e já estava fazendo progresso. O emprego num hotel, na Rua Senador Dantas, no
centro do Rio, era prova disso. A reunião contou ainda com a presença da Isabel
e de alguns funcionários. Infelizmente, os internos que mais precisavam de
ajuda não se interessaram.
Com todo esse clima favorável, voltei a pensar em
Saudades da China. A Cláudia tinha agendado uma apresentação da peça na quadra
da Escola de Samba Imperial, em Comendador Soares, na Baixada Fluminense. O
público reagiu bem ao espetáculo e isso fez nascer a vontade de continuar. Só que
apresentá-la num teatro convencional estava totalmente fora de cogitação; o preço
do aluguel inviabilizava qualquer tentativa e ainda me faltava infraestrutura,
não tinha condições, porém num espaço alternativo talvez fosse possível. Foi
então que pensei em apresentar a peça no Projeto. Falei com a Isabel e a Blandina,
que gostaram da ideia, mas pediram para ver o texto antes de tomarem qualquer
decisão. Entreguei uma cópia para elas e, depois de se mostrarem um tanto
desconfiadas do que seria realmente o espetáculo, resolveram arriscar. Voltei,
assim, a fazer os ensaios no refeitório, despertando a atenção de todos, o que
fez com que eu tivesse outra ideia: a de fazer com que alguns internos tomassem
parte do espetáculo, embora tratasse de um monólogo, não foi difícil
encaixá-los.
Semelhante à época da festa junina, a casa ficou em
polvorosa; os internos participavam ativamente e o serviço social dava total
apoio. De repente, tudo tomou uma dimensão que eu não esperava; de uma
simples apresentação, tínhamos o nascimento de um grupo teatral, com nome e
tudo. Foi batizado de “Os renascentes”, numa alusão à própria condição de
cada um, como explicara o interno José Teles, que sugeriu o nome, ao ser
questionado sobre o seu significado. Do grupo participavam ainda o Chagas, o
Valdecir, o Geraldo e o Menor. Esse último, seu nome verdadeiro era Renato, mas
pelo fato de parecer novo demais, era chamado de “Menor”, na verdade, era “De
Menor”, apesar de ele afirmar que já tinha vinte anos. Além de atuar, cada um
teve outra função: Chagas foi responsável pela iluminação e o som, José Teles,
desenhista, cuidou dos cartazes, Valdecir foi uma espécie de diretor de
cena, Gerado e o Menor fizeram a divulgação.
O dia da apresentação, 28 de agosto de 1991, foi
como um dia de festa no Projeto. O palco foi montado no refeitório. Isabel
resolveu cobrir todas as paredes com manchetes de jornais, também de jornal foram
feitas as roupas dos atores-internos, que, em cena, tinham a função de ser a
consciência do personagem Zé da Silva. Criei marcações fáceis, mas de bastante
efeito, para que a presença deles no palco não parecesse uma coisa arranjada.
Tudo transcorreu de forma perfeita e tivemos um público razoável: os internos,
funcionários e alguns convidados, como a Lúcia Helena, chefe das assistentes
sociais do albergue da Harmonia. Todos gostaram do espetáculo, apenas os
internos salientaram o fato de que já conheciam bem a história, pois
muitos a viviam na própria pele.
Dias depois tivemos uma visita inesperada de Cláudia
– “a dona da voz da Dorinha”, como era conhecida por todos do grupo de teatro
–, que apareceu sem aviso prévio, depois de prometer visitar várias vezes e
“dar o bolo”. Como eu avisava a todos, eles ficavam aguardando sua chegada, diante
de seus furos, chegaram a duvidar de sua existência. Naquela noite, ela estava
lá, em carne e osso, provando que realmente existia.
A incansável Isabel, pois não deixava a peteca cair,
trouxe o convite da coordenadora Lúcia Helena para que apresentássemos a peça
no albergue João XXIII, na Praça da Harmonia. A possibilidade de voltar àquele
lugar, depois de ter passado lá dias tão ruins, não chegou a me animar; tinha
medo de não conseguir fazer com que o meu trabalho de ator rendesse bem por
causa das lembranças que ainda eram fortes. Mesmo assim, concordei com a
apresentação e ela acabou acontecendo numa noite após a sopa, no refeitório, e
recebeu o mesmo cuidado que a apresentação acontecida no Projeto. No dia
marcado, fomos para lá cedo e desde a nossa chegada enfrentamos problemas com
os funcionários, que chegaram a nos repreender por estarmos circulando dentro
do albergue. Quando dizíamos o que estávamos fazendo ali, se desculpavam um
tanto contrariados. A apresentação transcorreu bem. Novamente, tivemos uma
plateia de albergados e alguns convidados. Somente eu não estive bem e jamais
desejei tanto que um espetáculo chegasse ao fim; o fato de estar dentro do
albergue não me fez bem, tinha jurado não pisar naquele lugar novamente e,
mesmo numa situação diferente, deixei de ficar perturbado.
A peça voltaria a ser apresentada mais uma vez em
Nova Iguaçu, porém numa outra casa, o Espaço Calabouço, da Casa de Cultura,
mais voltada para a poesia e bastante alternativa. Por isso, encontrei alguma
facilidade em agendar o espetáculo para o dia 29 de setembro de 1991, um
domingo. Apesar de ter trabalhado durante o sábado no jornal, estava animado.
Fomos todos juntos de trem, que pegamos na Central do Brasil por volta de meio
dia – num domingo ensolarado e quente – e depois de uma hora e meia de viagem estávamos
chegando ao destino.
Para essa apresentação, tudo foi remodelado, e gerou
certo nervosismo, afinal, era a primeira vez que o grupo se apresentaria fora
dos domínios da Fundação, precisava caprichar. Além do que, íamos cobrar
ingressos, tinha de ser uma apresentação mais profissional. Entre as mudanças,
estava a entrada do Valdemir substituindo o Valdecir, que agora cuidava do som.
Valdemir, também conhecido como “Índio”, era um interno que tinha acabado de
chegar ao Projeto, ao tomar conhecimento do grupo, se ofereceu para fazer
parte.
Dessa vez, consegui que saísse nos jornais da
baixada e a Cláudia, que trabalhava num pequeno jornal chamado “O Estadão de
Belford Roxo”, nos deu muito apoio. Coube ao Antônio, o plantonista, fazer os cartazes
em silkscreen. Mais uma vez, a Isabel nos acompanhou, sempre registrando tudo
com sua máquina fotográfica. Alguns internos também foram; entre eles, o
Cláudio e o Chileno. Chagas levou uma senhora de nome Lúcia, que
apresentou como sua namorada, que se mostrou prestativa e solícita. Dois incidentes
marcaram a apresentação: Geraldo, num descuido, caiu do palco, e a voz da
Dorinha, que era feita pela Cláudia, por uma falha técnica, não entrou. O
problema é que ela estava na plateia e foi difícil evitar o constrangimento. Após
o espetáculo, teve início um pequeno debate em que falei um pouco sobre a peça
e o que me levou a escrevê-la. A grande curiosidade de todos era saber se
aquela era a história da minha vida. Expliquei que não e que tive a ideia ao
sentir necessidade de fazer alguma coisa que expressasse a minha profunda
indignação com tudo o que me cercava e o resultado tinha sido aquela peça.
Perguntaram também sobre a minha vida e como eu tinha chegado até ali; respondi
a tudo com prazer. Pela primeira vez, a peça encontrava um público com
distanciamento bastante para poder discutir e entender sua temática. Saí de
Nova Iguaçu com a alma lavada. Quando chegamos ao centro do Rio, depois de
levarmos Isabel ao ponto de ônibus, fomos para um bar, na Avenida Mem de Sá,
onde comemoramos o nosso “sucesso”. Todo aquele período ainda duraria por algum
tempo, mesmo com os ventos soprando contra.
Capítulo 11
AS PEDRAS DO CAMINHO
Embora totalmente envolvido com as questões do
Projeto, não me descuidava de meus interesses pessoais; tinha traçado metas que
só seriam atingidas quando conseguisse um emprego que me permitisse sair
definitivamente dali. Para que isso acontecesse mais rapidamente, parei de
trabalhar na obra e fiquei apenas com o serviço dos finais de semana no jornal
O Dia; o que ganhava dava para me manter, possibilitando que, durante a semana,
me dedicasse a procurar emprego com mais tranquilidade. O restante do tempo
dedicava a casa, sempre procurando ser útil em alguma coisa. A aproximação com
o serviço social e minha atuação junto aos internos, fosse com o grupo de
teatro ou em qualquer outra função, me rendia uma boa popularidade, não havia
quem não me conhecesse, porém, trazia a reboque um grande inconveniente: a
antipatia despertada em alguns internos e até mesmo em funcionários não
interessados no bom funcionamento da casa, principalmente pelo fato de eu estar
sempre próximo às assistentes sociais; e como elas não ficavam na casa todo o
tempo, mas estavam sempre por dentro de tudo, eles julgavam que era eu quem as
mantinha informadas, juntamente com todos que faziam parte da turma que ficou
conhecida como “pessoal do teatro”, termo que era usado, muitas vezes, de
maneira pejorativa. Na verdade, éramos vistos como uma espécie de fiscais do
Projeto, o que fazia esse pessoal interromper conversas ou atos de
insubordinação quando percebia nossa presença, temendo que fosse dedurado. No que,
de certa forma, procedia, pois nosso interesse era de que a casa funcionasse
bem; era para isso que estávamos trabalhando. Entre os funcionários antipáticos
a nós, além de alguns plantonistas e das cozinheiras, estava o próprio coordenador
José Luís. Não entendia bem o motivo por que ele não estava muito satisfeito
com todas aquelas mudanças; apesar de inicialmente ter se mostrado simpático e
até ter chegado a colaborar, aos poucos foi demonstrando que a coisa não era
bem assim; passou a criticar abertamente as assistentes sociais e, quando tinha
oportunidade, as boicotava, interpondo-se no trabalho delas junto aos internos,
permitindo a presença na casa daqueles que haviam sido desligados ou cujos
prazos de permanência tinham chegado ao fim: havia uma turma de cinco ou seis
que estava com seus prazos esgotados: o Fábio do Biscoito, o Pará, o
Formigão, o Neguinho e o China, que estavam ali desde a inauguração, em
fevereiro de 1991, quando, segundo um deles, teria sido o único dia em que a casa
realmente funcionou direito. Contava o Fábio do Biscoito, amazonense, baixinho
e bom de argumentos, que o Projeto fora inaugurado com um lauto almoço que
contou com a presença de autoridades e da imprensa.
- Fizeram tudo bonito, só para tirar fotografia; depois
da inauguração, nunca mais teve um almoço daqueles nem nada funcionou direito, afirmava
e concluía dizendo que era pioneiro e que, portanto, tinha direito de
permanecer na casa indefinidamente. Além de salientar seu bom-comportamento e o
fato de ser um trabalhador; para ser exato, era uma espécie de empresário, vendedor
de biscoitos, tinha bancas espalhadas por vários pontos do centro da cidade e,
para mantê-las, contratava os serviços de alguns internos, José Teles um dos
albergados que trabalhavam para ele.
Como o empresário de biscoitos, os outros apresentavam
seus motivos para não sair: Pará, Formigão e Neguinho diziam não serem só
internos, mas funcionários do estacionamento que funcionava ao lado que,
segundo eles, cedera o terreno para a construção do Projeto Casa da Acolhida, e
o China, um nordestino, que de chinês não tinha nada, quarentão, moreno, tinha
o costume de se drogar, assim como fazia o Pará, o Formigão e o Neguinho, dizia-se
casado e morador da Baixada Fluminense, para onde afirmava ir todos os fins de
semana, trabalhava num estacionamento da CODERTE em algum ponto centro da
cidade e vivia esbanjando dinheiro, o que me fazia pensar que ele não tivesse
necessidade de estar ali, mas não sairia enquanto os outros não saíssem, ou
seja, estava estabelecido o impasse. Nas ocasiões em que se drogava, ficava
violento ou simplesmente deitava na cama e passava a noite inteira falando
coisas desconexas, como se estivesse louco, perturbando o sono de todos no
quarto.
Os quatro eram as verdadeiras ovelhas-negras do
Projeto. Jamais se conseguiu fazer qualquer coisa contra eles, mesmo sendo os responsáveis
por quase todas as ocorrências que se davam ali. A explicação para tanta
tolerância estava no fato de serem amigos do Coordenador, que os defendia toda vez
que se tentava colocá-los para fora. No entanto, com o fim de seus prazos de permanência,
as assistentes sociais passaram a fazer pressão: eles precisavam deixar suas
vagas para outros que estavam esperando na fila.
Outro grande problema, e que também incluía o Coordenador,
era a venda de produtos, proibida pelo estatuto e vinha acontecendo cada vez
com maior frequência. Fábio, para citar um exemplo, comercializava seus
biscoitos abertamente e praticamente todos os internos, incluindo eu, eram seus
fregueses; os biscoitos eram uma espécie de complemento alimentar para todos, principalmente
quando a sopa não era servida. Tinha também o fato de que vendia fiado, o que
fazia com que as assistentes sociais, de certa forma, fechassem os olhos
para a questão. Por outro lado, elas faziam pé-firme na questão da venda de
refeições, feita pelas cozinheiras dona Maria e dona Terezinha, passando por
cima da proibição. Diziam fazer isso porque o Coordenador não deixava
suprimentos para fazerem a sopa; diante disso, elas compravam o mantimento usado
na confecção das refeições do próprio bolso, por isso, tinham de cobrar. Estranho
que nos outros plantões sempre havia comida, ainda que fosse uma sopa rala, fazendo
nascer a suspeita de que elas usavam o material da sopa para fazer a comida que
vendiam, além, é claro, do gás. Polêmica à parte, não havia quem não apreciasse
a comida caseira que as duas cozinheiras serviam; todos ali estavam fora de
casa, e nada melhor que aquela comidinha para matar a saudade do tempero da
mamãe. Depois de comer pela primeira vez, fiquei freguês e tentei convencer as
assistentes sociais a liberarem, argumentando sobre a importância que tinha
para nós, mas elas não arredaram o pé; eram contra e não tinha conversa; afirmavam
que a atitude só servia para colocar em descrédito o trabalho do Projeto.
Dona Maria, uma das cozinheiras, era uma senhora
muito popular, que gostava de conversar com todos e aos domingos vinha,
acompanhada do marido e familiares, para realizar cultos evangélicos na
casa; por sua vez, dona Terezinha, a outra cozinheira, era mais calada, de
poucos amigos. Mais tarde, outras cozinheiras aderiram à ideia de vender comida.
Uma delas foi dona Irene, uma mulher espalhafatosa, de fala grossa, mas de
grande coração, que vendia salgados, que fazia em casa, geralmente, no café da
manhã. Aos poucos, tornou-se uma grande mãe de todo mundo; sempre passional e
engraçada, lembrava uma mama italiana dessas das novelas. Rezava terços
juntamente com o plantonista Aílton, outra figura bastante peculiar, e contava
que se casou no programa do Jota Silvestre, na televisão. Com a dupla,
trabalhava Vera, uma cozinheira, relativamente jovem, gordinha, que usava um
batom muito vermelho e que gostava de se insinuar para os internos.
Os plantonistas seu Odilon, Gaspar, Ernani, Valentim
e Antônio, e os cozinheiros, dona Teresa, Chiquinho, Aparecida e Paula não
faziam nada além de cumprir os seus plantões. Alguns, com mais eficiência,
outros, com menos, mas sem criarem grandes polêmicas, apesar dos constantes
envolvimentos que existiam entre funcionários e internos, sobretudo os
plantonistas; era comum saírem para beber com internos, abandonando o posto. Quando
acontecia algum problema grave, e era comum acontecer, eles nem sempre estavam
presentes. Não raramente, as amizades acabavam em confusão e, consequentemente,
em expulsão do interno envolvido. Talvez isso se desse com tanta frequência
pelo fato de que o convívio entre acolhidos e funcionários fosse muito próximo.
Outro dado comum era o fato de, muitas vezes, o plantonista, ou demais
funcionários, ser tão ou até mais problemático que os internos; havia, entre
eles, casos de alcoolismo, dependência química e outros problemas,
tornando a vida no Projeto um tanto difícil, pela forte insegurança gerada. Com
o tempo, já era possível saber qual o plantão mais tranquilo ou o mais agitado,
e, diante disso, aprendi como agir em cada um deles para não me envolver
em problemas.
A bomba de sucção, que puxava água da rua desapareceu.
A ocorrência se deu no plantão do Antônio. O Coordenador foi comunicado e
apareceu para apurar o que tinha acontecido. As suspeitas recaíram sobre os
internos e instalou-se um clima de suspeitas e acusações. Muitas histórias
passaram a ser contadas: havia internos que juravam ter visto o Pará roubá-la;
outros afirmavam que o próprio Coordenador mandou retirá-la. O certo é que nada
ficou provado. Apenas o plantonista viveu a ameaça de um inquérito
administrativo, que, creio, não aconteceu.
O roubo, ou retirada, da bomba gerou um problema
sério: sem ela, não tínhamos água. A situação durou dias, a vida no Projeto
ficou impraticável. A solução veio através do vizinho, o dono da oficina
mecânica em frente, chamado de Ruço – nada a ver com o outro Ruço do albergue
da Harmonia, embora ambos guardassem alguma semelhança física: eram gordos e
aloirados –, que, numa atitude benevolente, resolveu fornecer a água de sua
oficina mecânica, que funcionava num prédio antigo que dava para a Rua Dom
Pedro I.
Inesperadamente, o Coordenador passou a frequentar
mais assiduamente o Projeto. Se antes apenas entrava e saía rápido, agora
era comum vê-lo por lá com alguma constância. Parecia estar disposto a colocar
a casa nos eixos, como se, de uma hora para outra, tivesse acordado e tomado
consciência de que seu trabalho era um tanto quanto medíocre. Numa dessas idas,
apresentou um policial de meia-idade, já era conhecido de todos os internos,
que teria a função de ajudá-lo a manter a ordem. O militar passou a entrar nos
quartos, pela manhã, acordando quem estivesse dormindo, não queria saber de ninguém
dormindo durante o dia, bastava que alguém estivesse deitado e lá vinha ele com
um discurso na ponta da língua e o cassetete na mão, criando problema para
aqueles que trabalhavam à noite e precisavam dormir de dia. Mais uma vez, José
Luís entrou em choque com o serviço social: a permanência do interno no
Projeto, durante o dia, era acertada com elas.
A chegada de um caminhão abarrotado de gêneros alimentícios
movimentou a casa; de uma hora para outra, alguns homens começaram a
descarregar as mercadorias: sacos de leite em pó, arroz, açúcar, farinha,
feijão, latarias e carnes salgadas. Disseram tratar-se de uma doação de um
supermercado do Rio. Tudo foi recebido com grande entusiasmo e logo foi
possível ver os funcionários encherem suas bolsas e levarem o que queriam para
suas casas. Quando alguém se colocava contrário àquela atitude, diziam que
agiam daquela forma por estar há anos sem receber aumento de salários. Alguns
usaram essa ocasião para dizerem que a situação deles não era diferente da nossa;
estavam passando por privações tanto ou mais do que nós. Apesar deste saque explícito,
sobrou muita coisa e a despensa ficou cheia. Com isso, voltou a ser servido o
café da manhã e a sopa passou a ser um prato mais apetitoso. Período em que o Coordenador
pôde ser encontrado no refeitório lembrando a todos que a doação fora conseguida
graças aos seus esforços, prova maior de seu trabalho, porém, o Baiano
reivindicava para si o feito, afirmando que o caminhão de alimentos foi doado
a ele, mas, por não ter o que fazer com tudo aquilo, teria resolvido
cedê-lo ao Projeto. Os dois discutiam muito e sempre que podiam um desmentia o
outro, nunca chegando a um acordo quanto ao verdadeiro benfeitor; o mais
acertado é acreditar que não tenha sido nem um nem o outro.
Novamente, fomos convidados a fazer uma apresentação
com o grupo. Dessa vez, queriam uma peça infantil para as crianças do albergue
da Harmonia. Pensei em alguma coisa e no final acabei escrevendo: “Juca e Bilo,
em busca de uma grande aventura” sob medida para os integrantes do grupo, até no
número de personagens, e conta a história de duas crianças da zona sul do Rio
que resolvem fugir de casa e acabam vivendo uma aventura nas ruas da cidade do
Rio de Janeiro. Tão logo a peça ficou pronta começamos a ensaiar. Inadvertidamente,
resolvi convidar a Lúcia, namorada do Chagas, para participar da peça, por ela
estar constantemente no Projeto e, portanto, sempre presente aos ensaios, mas
logo iria me arrepender; era uma pessoa problemática e, como o Chagas, bebia muito
e era usuária de drogas, embora se fizesse passar por uma pessoa equilibrada e
ter chegado a oferecer ajuda profissional às assistentes socais. Entretanto,
era fácil perceber que era uma desatinada, pois chegou a pedir para morar no
Projeto para, segundo ela, tomar conta de nós. Além desse, outro problema
atrapalhou o desenvolvimento do trabalho: o alto índice de analfabetismo da
turma; a maioria mal sabia assinar o nome e, por haver texto a ser decorado,
tudo se tornou impossível. Diante disso, optamos por fazer um trabalho de
improvisação. Ideias boas surgiram e chegamos a montar alguns esquetes, que
acabaram morrendo no nascedouro.
A inesperada assiduidade do Coordenador foi logo
entendida: o serviço social chegou com a notícia de que a Fundação Leão XIII
tinha um novo diretor: ele se chamava Major Heleno, era da polícia, e tinha
acabado de ser nomeado pelo governador Leonel Brizola. Segundo as assistentes
sociais, a nomeação significava que o governador tinha interesse na Fundação e
isso representava a esperança de que as coisas finalmente entrariam nos eixos e
que todos os problemas da casa seriam resolvidos. Nesse espírito, recebemos a
visita de um grupo de pessoas que se dizia parte da diretoria da Fundação e viera
em nome do novo diretor. No grupo estava uma senhora de nome Carmem que nos
avisou que o Major viria pessoalmente nos visitar, pois ele já tinha ouvido
falar do trabalho do grupo de teatro que existia no Projeto e queria muito nos
conhecer. Ficamos todos empolgados com as palavras elogiosas e jamais
poderíamos sequer desconfiar do que viria após a visita. Dias depois, durante
uma madrugada, fomos despertados por um batalhão de soldados da polícia militar,
fortemente armado, que invadiu os quartos, vasculhou todos os nossos pertences
e deu uma geral em todo mundo. Debaixo de gritos, fomos obrigados a deixar os
quartos e ficar de pé do lado de fora, onde sofremos uma revista. Ninguém
entendeu direito o que estava acontecendo e quem fazia alguma pergunta era logo
repreendido; os policiais pareciam estar à procura de alguém ou de alguma
coisa. Feito isso, o batalhão foi embora, sem levar nada nem ninguém. A partir
daquele dia, as batidas policiais passaram a ser quase que diárias, deixando
todo mundo muito apreensivo. Assim, ficamos conhecendo as mudanças que o novo
diretor estava implantando; fomos informados que aqueles policiais vinham por ordem
dele, como resposta às denúncias de roubos e outras infrações, cometidas pelos
internos nas imediações da Praça Tiradentes, que chegaram ao seu conhecimento.
Pelo que ficou entendido, a vizinhança, sobretudo os comerciantes, não
apreciava muito o fato de ter aquela unidade da Fundação Leão XIII tão
próxima, e acusava os internos por tudo de ruim que acontecia na área.
Mais mudança ocorreria, mas, dessa vez, com relação
aos funcionários, principalmente as cozinheiras, que eram obrigadas a dormir no
Projeto e recusavam a fazê-lo, alegando que não havia acomodações para elas, o
que, de certa forma, era verdade. Todavia, após a entrada do Major, elas
passaram a dormir na casa, a fazerem o café da manhã pontualmente e só irem
embora quando fossem rendidas pelas colegas do plantão seguinte. Os
plantonistas também passaram a ficar mais no Projeto e a fazer questão de que
assinássemos o livro de presença, exigência que há muito tinha sido esquecida;
antes, o único que fazia exigia era o plantonista Aílton, que era capaz até
mesmo de acordar um interno de madrugada, se percebesse que ele não assinara o
livro.
Nesse período, fomos procurados por uma jornalista e
um fotógrafo que diziam ser de uma revista de São Paulo e queriam fazer uma
matéria sobre a vida dentro do Projeto: como vivíamos, que tipo de assistência
nós recebíamos, por que estávamos ali e quais eram nossos objetivos. Fui
apresentado a eles pela Isabel, que me convenceu da importância de dar uma
entrevista falando do Projeto e do grupo de teatro. Apesar de ter ficado um
pouco receoso, resolvi falar e os coloquei em contato com os outros integrantes
do grupo. O único senão foi na hora das fotos:
ninguém aceitou posar para a lente do fotógrafo. A possibilidade de ser
reconhecidos, através das fotos que seriam publicadas na revista, deixou todos
bastante temerosos; as famílias não sabiam que estavam naquela situação. Pela mesma
razão, também recusei. Quanto à reportagem nunca soube se saiu ou não, nem
nunca soube sequer o nome da revista.
A atitude coletiva de não querer posar para fotos e se
expor me fez pensar num fato: eu estava há mais de um ano sem fazer contato com
minha família e, embora evitasse pensar no assunto, não podia negar que isso me
incomodava. Situação comum entre quase todos os internos; a maioria tinha
perdido contato de vez com a família, talvez fossem dados como mortos, ou, como
eu, estava sem dar notícias há meses ou anos. Isso ficou claro quando apareceu
no Projeto a mãe do José Teles dizendo que procurava pelo filho há meses e que chegou
a ter notícia de sua morte.
- Nem posso acreditar, meu filho; graças a Deus,
você tá vivo, ela disse emocionada abraçada ao filho no comovente reencontro.
Outro que foi “encontrado” no Projeto foi o Leandro,
um rapaz negro, magro, relativamente alto, devia ter por volta de vinte anos, gostava
de andar sempre bem-vestido e dizia trabalhar na recepção de um hotel na zona
sul, embora, na verdade, fosse garoto de programa. Um dia, seus pais, que
viviam no interior do estado do Rio de Janeiro, apareceram e o levaram de volta
para casa. No meu caso, tinha decidido que só entraria em contato com a família
quando estivesse numa situação estável; para isso, precisava, com urgência,
conseguir um emprego de carteira-assinada, porém, não estava nada fácil.
Capítulo 12
NO MEIO DO CAOS
Como já disse, o Projeto era um local aberto, sem muita proteção, o que
facilitava a aproximação de pessoas que viviam ou trabalhavam nas redondezas,
principalmente a Praça Tiradentes, de onde vinham os ladrões, as prostitutas e
os travestis, que usavam o estacionamento para seus encontros com clientes,
cheirar cocaína, ou mesmo para fazer acertos de contas uns com os outros, pois
era comum, por exemplo, ver os travestis brigarem por ali quando, geralmente,
usando estiletes, giletes e outros objetos cortantes e as brigas terminavam,
quase sempre, com alguém de cara cortada. O local atraía também as pessoas
desabrigadas e mendigos que iam até lá em busca de comida ou mesmo de um lugar
para passar a noite; muitos ficavam por ali mesmo ou se tornavam habituais frequentadores.
Todavia, era um velho conhecido de todos que mais atraía mais pessoas: Baiano,
aquele mesmo que ficava sentado no refeitório fazendo entalhes na madeira e
provocava muita sujeira; ele continuava por lá, ele e seus garotos. Começou com
um menino, que mais tarde viria a ser apelidado de Baianinho, devido à
semelhança física entre eles. Baianinho, que tinha por volta de uns treze
anos, logo conquistou a todos, porém, ficou conhecido mesmo foi pelo hábito que
tinha de aproveitar qualquer descuido para entrar nos quartos e praticar
pequenos furtos, como fez com a câmara fotográfica do Valdecir, que
roubou e vendeu para uns garotos que viviam nas imediações do aeroporto Santos
Dumont, onde o dono foi buscá-la, depois de apertá-lo e ouvir sua confissão. A
ocorrência foi denunciada às assistentes sociais, e veio reforçar a posição
contrária que sempre tiveram a respeito da presença do Baiano na casa.
Baiano não ficaria somente com o Baianinho; aos
poucos foram chegando outros garotos, que se instalaram por ali, onde dormiam,
cheiravam cola e roubavam. Alguns eram dóceis e de fácil convívio, no entanto,
outros eram verdadeiros pequenos marginais. Com o tempo, descobriu-se que o
Baiano tinha interesse em cuidar de meninos de rua e parecia estar bastante
empenhado nisso; dizia que já tinha comandado um abrigo para menores que
funcionava numa casa da Rua República do Líbano. Certa ocasião, ele chegou a
reunir turma para tentar retomar a tal casa, pois afirmava que o diretor do
abrigo havia usurpado seu lugar usando de meios escusos. Numa noite, vi quando
ele, as crianças, alguns internos e funcionários saíram armados de paus e
pedras para retomarem a casa, usando a força: chegaria, botaria o diretor para
fora e o lugar seria dele novamente. Ali, abrigaria todas aquelas crianças e
todos ficariam bem, até empregos prometia para quem apoiasse a sua causa, entretanto,
não foi isso o que aconteceu, pois voltou sem nada conseguir e se instalou
os garotos de vez no Projeto, e o convívio com os internos não era bom; quase
sempre tinha confusão, ou seja, mais um problema de difícil solução; não
era apenas o constrangimento da presença dos garotos dormindo ali jogados
pelos cantos da casa, em total promiscuidade, mas o de ver mães em busca de
seus filhos: elas vinham procurá-los e, em alguns casos, eles estavam ali,
porém Baiano os escondia.
A cozinheira dona Maria entrou nessa história ao
adotar um desses garotos, aliás, dois, levou-os para casa e passou a cuidar deles.
Os meninos, que estavam sujos e malcuidados, passaram a frequentar o Projeto
limpos e bem-vestidos, pois ela os plantões de domingo. Vendo isso, Baiano
tratou de tentar reconquistá-los com falsas promessas. Um deles, logo retornou
para sua companhia, deixando a casa de dona Maria; o outro ficou com a
cozinheira. Cheguei a vê-lo, na companhia dos pais adotivos, lendo trechos da
Bíblia durante os cultos que se realizavam no Projeto, acredito que organizados
pela própria dona Maria. A cena deixava o muito irritado, demonstrando que sua
intenção com os garotos não era das melhores.
A partir daí, ele se tornou uma pessoa não muito
grata para todos e a ser visto como explorador de menores. Isso se confirmava
quando eles eram vistos roubando ou pedindo esmolas nas ruas do centro da
cidade e depois lhe entregarem todo o dinheiro. Quando isso acontecia, era
fácil de notar, pois sempre saía para jantar ou dormia fora. No mais,
continuava ali, brigando e esbravejando, agindo, muitas vezes, como um louco.
Nessas ocasiões, dizia ser amigo particular da esposa do governador, dona Neusa
Brizola, a madrinha do projeto revolucionário que tinha para tirar todas
as crianças das ruas.
- Só eu posso acabar com o problema do menor
abandonado no Rio de Janeiro, ele afirmava.
No meio de tudo isso, não era difícil deduzir que o
Projeto tinha perdido a tranquilidade que havíamos conquistado com tanto
trabalho. Já não era mais possível acreditar que o novo diretor da Fundação
resolveria alguma coisa. Haja vista, os seus métodos. A saída foi tentar
adiantar o meu lado. E, por ainda não ter conseguido um emprego de
carteira-assinada, voltei a ficar preocupado com o futuro. Logo, meu prazo de
permanência acabaria e, do jeito que as coisas estavam, era possível que
nem chegasse até o fim; a convivência entre menores de rua, bêbados,
drogados, marginais foragidos, internos e funcionários não era o que se podia
classificar de pacífica, mesmo com certa tolerância que passou a existir; já
não se via os arroubos dos primeiros dias e até os inveterados defensores da
boa-ordem se metiam em confusões.
Um indivíduo, que estava vivendo escondido por ali,
me jurou de morte: dizia ser de uma favela em Bangu, onde teria se envolvido em
briga com outros bandidos da área para tomar o controle do tráfico. Vivia
armado e não fazia questão de esconder isso, pois estava sempre mostrando um
revólver do tipo trinta e oito. Tudo se deu quando eu tentei impedi-lo de se
instalar no meu quarto, sem o conhecimento do serviço social. Ele não gostou e
partiu para cima de mim, dizendo que me daria um tiro. Seus gritos atraíram a
atenção dos internos, que foram chegando, o que, possivelmente, o deixou
intimidado e impediu que atirasse em mim. Fiquei muito assustado com o episódio
e pedi ajuda às assistentes sociais, que ofereceram como alternativa que eu
voltasse para o albergue da Praça da Harmonia até as coisas acalmarem, o que,
para mim, estava completamente fora de cogitação; se tivesse de voltar para
aquele lugar, preferiria a rua. Tinha decidido que para aquele lugar não
voltaria. Não porque não fosse um lugar bom ou coisa parecida, era porque tinha
estabelecido uma meta e voltar para o albergue da Harmonia era um retrocesso. A
saída, então, foi conviver com o perigo, contando com a proteção de Deus e de
amigos, como o Chagas e o Valdecir, que passaram a me escoltar, cuidando para
que eu não ficasse sozinho. Dias depois, a figura sumiu sem deixar rastro.
Deficiências do Projeto à parte, em nossas noites
ociosas, em geral, ficávamos batendo papo até por volta de meia-noite, sentados
no refeitório, embora isso fosse contra o regulamento, pois o horário
estabelecido para todos estarem nos quartos era dez horas. Poucas vezes, isso
foi levado a sério, mesmo porque o calor de quarenta graus da cidade do Rio de
Janeiro num quarto pequeno, com oito marmanjos, não ajudava muito.
Através do livro de presença que, mesmo com toda
aquela desordem, ainda tínhamos de assinar, confirmava-se o fato de que a
maioria dos internos era analfabeta ou semianalfabeta. Por isso, chegou-se a
pensar em criar um curso de alfabetização, mas a iniciativa não foi para
frente.
Durante os longos bate-papos, íamos conhecendo um
pouco da vida de cada um; ouvíamos histórias de alegrias e tristezas, muito
erro e pouco acerto. Como a maioria fazia parte da turma do teatro, essas
conversas acabavam quase sempre tomando um caráter de trabalho de grupo.
Algumas vezes, caminhávamos até o Aterro do Flamengo e as reuniões aconteciam no
anfiteatro de lá, um local aberto, próximo à sede da empresa Rio-Luz. Foi numa
dessas reuniões que cada um falou de sua vida, respondendo perguntas do tipo:
“O que o levou a sair de casa?” ou “Por que motivo acabou na rua sem moradia?”
O primeiro a falar fui eu. Falei da minha obstinação em seguir a carreira de
ator, o desemprego, a falta de oportunidades para um ator desconhecido
encontrar trabalho e tudo o mais. A seguir, sentados em círculo no anfiteatro,
cada um falou por sua vez. Valdecir, falou do casamento desfeito em Sorocaba,
no interior de São Paulo, fato que o deixou muito abalado e o fez sair da
cidade; primeiro, tentou viver na capital paulista, mas resolveu aumentar a
distância, vindo para o Rio de Janeiro, e trabalhava num hotel. Geraldo, falou
de seu assunto preferido: a sua opção sexual; a razão para ter saído de casa
foi para fugir dos pais e dos muitos irmãos, que não aceitavam seu
homossexualismo, que tentou mascarar tornando-se evangélico, porém acabou seduzido
por um irmão da igreja, o caso veio a público, fazendo cair sua máscara. Logo
a seguir, falou o Renato Holzmeister, o Menor, de Vitória Espírito Santo, onde
a família vivia; seu nascimento se deu do encontro entre um europeu e uma negra
brasileira: o pai, um alemão que veio para o Brasil, ainda criança, juntamente
com toda a família, fugindo de uma Alemanha arrasada pela segunda guerra mundial
e a mãe era uma negra capixaba. Revelou que as histórias que a avó alemã, que
ainda vivia, contava o faziam desejar conhecer o país natal do pai. Só não
conseguiu explicar o real motivo que o levou a sair de casa tão novo, fazendo
crescer a certeza de que ele era realmente menor de idade e que estava ali sem
o conhecimento da família. Renato, como eu preferia chamá-lo, trabalhava comigo
no jornal O Dia aos sábados e, durante a semana, com o Fábio do Biscoito,
tomando conta de uma banca em frente ao Teatro João Caetano. Paulo, ou Paulista
II, disse que estava no Rio para aprender a viver; viciado em drogas, saiu de
casa prometendo à mãe, que era dona de um bar num bairro da periferia de São
Paulo, que só voltaria quando estivesse regenerado. Chileno, que era mesmo
natural de Santiago do Chile, falou que chegara ao Brasil com alguns dólares,
mas que fora assaltado logo na chegada, quando andava pelo calçadão de
Copacabana. Veio para o Brasil, dentre outros motivos, para fazer uma plástica.
- A cirurgia plástica no Brasil é muito adiantada,
afirmava.
Já tinha conseguido se operar, de graça, na Santa
Casa de Misericórdia, mas tinha decidido viver no Brasil. Trabalhava com
artesanato e tinha uma banca na Praça do Lido, em Copacabana. Falou também das
dificuldades encontradas por ser estrangeiro, e que, no início, não estavam
querendo aceitá-lo no Projeto por esse motivo; teve de conseguir uma carta do
consulado do Chile para que fosse aceito. Tudo isso, falado com um sotaque
muito carregado e uma extrema dificuldade de se expressar em português; era o
único estrangeiro do Projeto. Em seguida, falou o Cláudio que, para espanto de
todos, disse que tinha uma família muito problemática. O pai morrera num
acidente automobilístico, a mãe, que era esquizofrênica, e os irmãos
viviam em Recife. A família possuíra muitos bens, porém todos foram vendidos
após a morte do pai. Veio para o Rio tentar a sorte e, quando conseguiu um
emprego, escreveu para a mãe dando a notícia. Para sua surpresa, ela apareceu
em seu trabalho, dias depois, de malas e bagagens, para morar com ele. Só que,
apesar de estar trabalhando, ele morava na rua. Sem ter como explicar a
situação, arrumou uma desculpa e a colocou num ônibus de volta para Recife, no
mesmo dia. Quando falou, se emocionou a ponto de chorar. Refeito, acrescentou
que desde então não tivera mais notícias dela ou dos irmãos. No momento, sua
situação estava diferente, pois finalmente tinha conseguido um bom emprego; faltava
tomar coragem para voltar a fazer contato com a família. Depois foi a vez de
Chagas falar de suas eternas porra-louquices, entre as quais, o estranho e
divertido triângulo amoroso que vivia com Geraldo e Lúcia. Para ser franco, ele
explora os dois. No mais, falou que era mineiro de Ipatinga e que sua maior
preocupação na vida é que nunca faltasse maconha no mundo. Alguns que já tinham
falado tomaram novamente a palavra e a ordem foi perdida. De repente, até os
que inicialmente se negaram a falar como o Valdemir, o José Telles e outros
resolveram relatar suas histórias. E assim, sem nenhuma obrigação, cada um
falou de si, numa espécie de desabafo. A cada encontro desses, e eles foram
muitos, todos iam se conhecendo melhor. Isso fez nascer um sentimento de
irmandade, de fraternidade entre todos; era como se ninguém estivesse mais
sozinho, pois tínhamos uns aos outros. Pelo menos, para dividir as mágoas,
queixumes e alegrias, mesmo que as histórias muitas vezes não tivessem muito
nexo e parecessem inverossímeis.
E foi nesse clima que num domingo preparamos um
churrasco, no próprio Projeto. A turma se reuniu e preparou tudo: além de
carne, teve muita cerveja, que era proibida, e música. No dia seguinte, o
serviço social foi avisado de nossa “insubordinação”, mas, por não ter
acontecido nenhum incidente, a denúncia acabou perdendo sua força e foi
esquecida.
O Projeto já não era um lugar ideal para ficar,
então, a saída era arrumar muita atividade fora. Por isso, íamos a cinemas,
museus, ao Centro Cultural Banco do Brasil e a toda e qualquer programação
gratuita que saía nos jornais. Outra opção eram as praias, para onde íamos aplacar
o forte calor do final do ano, as preferidas eram Copacabana e Ipanema, mas às
vezes íamos também ao Flamengo. Todo domingo, saíamos em turma e passávamos o
dia fora. Geralmente, era um passeio muito agradável e sem incidentes. Valdecir
gostava de registrar esses momentos com sua máquina fotográfica. Uma vez
reveladas, as fotografias eram mostradas a todos. O fato de alguém sair mal na
foto, ou ser muito feio, era motivo de muita gargalhada.
O tempo passava e as coisas não melhoravam; as
brigas eram constantes e eu já tinha perdido a esperança de ver aquilo
funcionar direito novamente. Alguns internos, como o Cláudio, o Sérgio e o
Jorge Cozinheiro pediram para sair alegando que não tinham mais motivos para
continuarem ali: Cláudio estava trabalhando como segurança no Shopping Rio Sul
e alugou um quarto na Avenida Gomes Freire; Sérgio e Jorge foram morar em seus
respectivos empregos; até o Geraldo, depois de viver entre Copacabana e o Projeto,
decidiu morar em seu novo emprego, muito mais pela decepção de ver seu amado
Chagas nos braços da Lúcia do que por qualquer outra coisa.
Os amigos saindo, a casa já não era o lugar
agradável de antes, o que a falta de água, que Ruço deixou de fornecer devido
ao aumento excessivo da conta, só agravava. Dessa forma, deixou de ter água
para fazer a sopa, dar descarga nos banheiros, banho, então, estava fora de
cogitação. Mesmo com todo esse caos, o vizinho batia o pé e dizia que só voltaria
a fornecer caso a Fundação se responsabilizasse por sua parte na conta, incluindo
as cobranças dos meses anteriores; alegava que não tinha como arcar com tudo
sozinho; diante do impasse, a água permanecia cortada.
Depois de muita negociação, Ruço acabou concordando
em encher a caixa do Projeto uma vez por dia, o que fez com que a água passasse
a ser objeto de disputa entre todos. E, como havia muita gente para tomar banho
e usar os sanitários, o jeito era não dormir no ponto. Até mesmo as cozinheiras
precisavam entrar na briga para garantir a água para a sopa, a lavagem dos alimentos
e dos pratos; se por ventura não conseguissem, não tinha sopa; porém difícil
mesmo era aguentar o mau-cheiro dos banheiros e das outras dependências da casa;
com o forte calor do verão, a casa passou a ser o paraíso das moscas e de outros
insetos.
As mudanças continuaram. O coordenador José Luís foi
afastado e substituído pela Blandina, para o lugar dela veio uma nova
assistente social, a Cláudia, uma moça morena, relativamente jovem, que iria
estabelecer um relacionamento distante entre os internos e o serviço social; não
admitia muita aproximação e fazia questão de definir os papéis. O que, para o
trabalho dela, talvez fosse bom, mas não era o que todos estavam acostumados.
Como ela se apresentava como chefe, Isabel passou a ter o mesmo comportamento.
Dessa forma, os desligamentos passaram a acontecer com mais frequência,
incluindo os protegidos do antigo coordenador, cujos prazos de permanência já
tinham terminado, pois tiveram de procurar outro lugar para ficar.
Ironicamente, a maioria foi para a rua, passando a
dormir pelas proximidades da Praça Tiradentes. Isso, no meu entendimento,
tornava sem efeito o trabalho da casa; os seis meses passados lá, de nada valeram.
Num mesmo dia, a casa recebeu dez novos internos,
que vieram ocupar o lugar dos que saíram ou foram desligados. Novamente, fui
procurado pela Isabel; queria me transferir para um quarto em que só tivesse
internos recém-chegados. A intenção era a de que eu passasse para eles as
normas da casa, facilitando a adaptação e acenando para a volta dos bons tempos.
Embora a ideia não me agradasse muito, aceitei a incumbência e me
transferi para o quarto dois. Não surtiu grande efeito, pois logo descobri que os
recém-chegados eram todos antigos fregueses da Fundação, com passagem por
várias de suas unidades, portanto, portadores de vícios difíceis de saírem com algumas
palavras, conselhos ou exemplos.
Por estarmos, quase todos, próximos do fim de nossos
prazos de permanência, Chagas e Valdecir sugeriram que deveríamos alugar uma
casa, onde todos morassem juntos, como se fosse uma grande família, dando,
assim, continuidade ao nosso convívio no Projeto. Ideia bonita e interessante, se
não fôssemos um bando de desempregados ou subempregados. Chagas trabalhava em
obras e Valdecir era funcionário de um hotel, ambos abandonaram seus empregos e
viraram camelôs, influenciados pelo sucesso do Fábio do Biscoito que, diziam,
ganhava muito dinheiro com essa atividade. Armaram suas barracas na Rua Uruguaiana,
a rua mais visada pelos fiscais da prefeitura, mas depois de terem suas
mercadorias apreendidas várias vezes e viverem correndo da repressão aos
camelôs, desistiram.
Da turma, os poucos empregados era o Domingos, um
mato-grossense que trabalhava no Mac Donald’s da Rua São José, e o Valdemir,
que era atendente numa confeitaria na Glória. Pelo meu lado, ainda estava
apenas no jornal, aos sábados. Mesmo assim, partimos para procurar a casa. Nela
moraria eu, Chagas, Valdecir, Menor, Paulista II, Domingos, também conhecido
como Mac, Valdemir, dentre outros; Geraldo e Lúcia também faziam parte da
turma. Pelas dificuldades normais nesses casos, como fiador ou altos depósitos,
o entusiasmo inicial foi acabando até que a história terminou no esquecimento.
No meio de todo o caos, uma novidade me devolveu a esperança no futuro: após uma procura que durara mais de dois meses, eu tinha conseguido um emprego de carteira-assinada e salário, mais ou menos, compatível com a função; fui contratado pelo síndico Eliseo López, um espanhol, como auxiliar administrativo, no Condomínio do Edifício Catete Center, no Flamengo. Não se tratava de uma empresa propriamente falando, era uma administração própria, mas o prédio era muito grande, cerca de quinhentos e vinte apartamentos, e tinha bastante serviço. A minha função seria cuidar do departamento de pessoal, além de auxiliar o administrador do prédio, Alberto Pereira. Dessa vez, lembrando os ensinamentos recebidos no Albergue da Harmonia, resolvi não tocar no assunto “Fundação Leão XIII”. Quando perguntaram onde morava, criei uma tia que não existia e disse morar com ela; o endereço era o mesmo em que funcionava o Projeto, ou seja, a Rua Dom Pedro I, número 28; colou. Assim, 02 de dezembro de 1991 foi o meu primeiro dia de trabalho: tudo o que eu precisava para sair do Projeto e retomar a minha vida, entretanto, isso ainda demoraria um pouco; se antes pensava que quando arrumasse um emprego todos os meus problemas estariam resolvidos, agora, empregado, sabia que não era bem assim; primeiro, precisava passar pela experiência de noventa dias e torcer para me manter empregado, só depois, poderia resolver de vez o meu problema de moradia. Pensando assim, decidi ficar no Projeto até que isso fosse possível.
Capítulo final
A VIDA SEGUE
Aproximava o natal de 1991, apesar de todas as tentativas,
as coisas no Projeto não melhoravam, e o convívio era cada vez mais difícil,
pois cada novo interno que chegava era mais um problema que se anunciava. Isabel
teve a ideia de fazermos uma festa para comemorar a data e resultou num almoço
feito pelo Jorge Cozinheiro – que estava de volta, depois de ficar morando uns
tempos fora – com a ajuda das cozinheiras da casa. Antes, foi apresentada uma
peça escrita por mim, com a participação do pessoal grupo que ainda estava por lá
e um coral, também de internos, ensaiado e comandado por um interno que tinha
chegado a pouco, conhecido como Professor, dado ao fato de estar sempre portando
livros, cantou a tradicional “Noite Feliz”. A coordenadora Carmem esteve
presente, além dos funcionários, assistentes sociais e internos. Tudo muito
simples, mas de muito bom gosto, o que fez lembrar os bons dias. A novidade foi
a presença do Manoel, também chegado naqueles dias, o sergipano que conheci no
albergue da Harmonia, o que vivia recitando Shakespeare, de quem possuía alguns
livros, ricamente encadernados, de fazer inveja que, afirmava, comprara num
sebo. O dado triste ficou por conta do Sérgio, o interno do quarto cinco que
saíra para morar no emprego, que estava de volta completamente transformado e
transtornado: estava se drogando novamente e vivia jogado por ali, dando a
entender que logo viraria um mendigo de verdade.
Logo depois do natal, alguns internos começaram a
definir seus destinos: Valdecir, por exemplo, resolveu retornar para
Osasco, São Paulo: tinha intenção de voltar para a esposa e os filhos, que
abandonara ao vir para o Rio de Janeiro; e Paulista II, o Paulo, que voltou
para a casa da mãe, na capital paulista. Figura engraçada, Paulista II era um
verdadeiro menino grande, que chegou ao Projeto no mesmo dia que eu – fomos, na
verdade, atendidos ao mesmo tempo –, e tinha um sotaque caipira de interior
muito forte, embora afirmasse que ser natural da capital paulista; afirmação
confirmada pelo Chileno, que dizia conhecer sua família. Recebeu o apelido de
Paulista II por causa do Valdecir, que era também conhecido como “Paulista”, gostava
de construir balões e construiu um, no Projeto, que subiu aos céus, para sua
alegria e admiração dos internos. Quando falavam que soltar balões era proibido,
pois poderiam provocar incêndios, ele retrucava dizendo que um balão
subindo no céu era a coisa mais bonita do mundo e que isso justificava o risco.
Chagas, Menor, Domingos, o Mac, e eu fomos levá-los à rodoviária Novo Rio; os
dois viajaram no mesmo dia e hora. Na despedida, bateu uma tristeza: no fundo,
era a certeza de que dificilmente voltaríamos a nos encontrar.
Com um telefonema, reatei o contato com a minha
família. Falei com a Eloisa, minha irmã mais nova. Não foi fácil explicar os
meses de ausência. Para ser sincero, não tinha noção de ter ficado tanto tempo
sem dar notícias; talvez pelo fato de terem acontecido tantas coisas, eu não
tenha sentido o tempo passar. Ainda assim, não abri o jogo, inventei algumas
desculpas e, mesmo levando muita bronca, decidi nada dizer sobre o que tinha
vivido nos últimos tempos, ninguém iria entender; nem eu mesmo entendia.
Veio o ano novo. O ano de 1992 chegou trazendo
chuvas torrenciais e mais problemas: o sobrado que havia em frente, uma
construção de dois andares do século 19, onde funcionava a oficina do Ruço,
teve suas estruturas abaladas com as chuvas; parte do segundo andar desabou e
atingiu a rede elétrica, fazendo com que o fornecimento de energia fosse
cortado, deixando-nos no escuro. Durante alguns dias, esperou-se que a Fundação
resolvesse o problema e nada. As chuvas
se intensificaram e o prédio ruiu totalmente sobre a parte da frente da casa,
obstruindo os quartos um, dois e três, levando a Defesa Civil a isolar toda a
área. Passamos, dessa forma, a sermos impedidos de entrar. A permissão era
apenas para pegar os objetos pessoais e um interno de cada vez, acompanhado de
um bombeiro.
O serviço social, sob o comando da assistente social
Cláudia, reuniu o pessoal e confirmou o que todos já esperavam: a partir
daquele dia, o Projeto Casa de Acolhida deixava de existir, definitivamente, e
todos seriam mandados de volta para o albergue da Praça da Harmonia. A maioria
aceitou a transferência, sem grandes problemas, entrou no ônibus da Fundação e
partiu não se dando conta de que voltava para o começo. Alguns, até se divertiram
com a situação; para eles, estar ali, ou em qualquer outro lugar, não fazia
diferença. Cheguei à conclusão de que tinha acabado para mim: a partir
dali, andaria com as minhas próprias pernas, era agradecido à Fundação Leão XIII
por tudo, mas não tinha volta.
Meu prazo no Projeto já tinha vencido há mais de um
mês e só fiquei ali mais esse tempo pelo meu bom relacionamento com o serviço
social, mesmo assim, aquele não deixou de ser um momento de muita tristeza, apreensão
e medo; embora, de certa forma, esperado, o fim me pegou de surpresa, não só a
mim, mas a quase todos que tinham intenção de dar outro rumo para suas vidas.
Juntamente com Chagas, Menor, Domingos e alguns outros, eu passei uns dois dias
nos escombros da casa, escondido do pessoal da Defesa Civil, que fazia plantão
no local: nós utilizamos os dois quartos que tinham ficado intactos. Nesse meio
tempo, Chagas e Menor se mudaram para um barraco na comunidade Cidade de Deus,
em Jacarepaguá.
Mantive o trato feito com Domingos e Valdemir nas
areias da praia de Copacabana, logo após o espetáculo da queima dos fogos que
acontece todos os anos, de alugarmos um apartamento juntos e saímos à procura,
pois estávamos empregados e acreditamos que isso facilitaria, porém,
encontramos muita dificuldade e a ideia de um apartamento-conjugado teve de ser
substituída; não tínhamos fiador e nossas condições somente davam para alugar
um quarto e foi o que fizemos: alugamos um quarto numa casa de cômodos, num
sobrado da Rua do Senado, no centro da cidade. Tratava-se, para ser honesto, do
que popularmente chamavam de uma “cabeça de porco”; ali viviam, em quartos
minúsculos, travestis, prostitutas, trabalhadores, ladrões, desocupados e
famílias inteiras. Cheio temores, abri o jogo com o patrão: relatei a minha
real situação e, para minha surpresa, ele aceitou me dar um adiantamento para
eu pagar minha parte no depósito do aluguel do quarto. Assim, num sábado
ensolarado, após vários dias de chuva, deixamos o Projeto, apenas eu e o
Domingos, porque o Valdemir, como eu saberia depois, aceitou voltar para o
albergue da Harmonia.
Antes de deixar o que restou do Projeto Casa de
Acolhida, dei uma última olhada nos destroços da construção e não pude conter a
emoção; por mais de seis meses, eu tinha vivido ali, foram dias difíceis, mas
também dias de alegria; ali, eu sonhara com a possibilidade de que o “Projeto”
vingasse e pudesse ser o ponto de partida para outras casas que viriam a
beneficiar tanta gente; ali, eu encontrara apoio e amigos; ali, tinha
readquirido a fé na vida, e era dali que eu partia para o ansiado passo de
volta à vida tida como normal. A certeza do bem que aquele lugar me fez, me deu
forças para seguir em frente. Junto com o Domingos, atravessei a rua, disposto
a escrever um novo capítulo da minha vida.
A partir daquele dia até a sua demolição, o
“Projeto”, ou o que restou dele, seria habitado por Baiano que, por algum tempo,
acreditou ter conseguido nos expulsar e que o espaço ficara para ele e seus
garotos.
O tempo passou e consegui me manter estável no mesmo
emprego, com isso tive de volta o meu convívio social. Depois de morar no
sobrado da Rua do Senado por mais de um ano, me mudei, ainda na companhia do
Domingos, para um apartamento-conjugado no Flamengo. Pouco tempo depois, seria
a vez de ele ir embora; desempregou-se e resolveu voltar para sua terra
natal, no interior do Mato Grosso. Quanto a mim, ainda não consegui realizar o
meu grande sonho de poder viver exclusivamente da profissão de ator, porém já
tenho dado alguns passos nesta direção.
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