Pesquisar este blog

outubro 04, 2011

Falem mal de mim.

     O que para muita gente é sinal de aborrecimento e chateação, para o meu amigo Carlos é sinal de alegria e contentamento. Não acertou quem apostou que seria comer um prato de jiló, acordar cedo todos os dias ou coisa do gênero. O que jamais tiraria Carlos do sério é nada mais nada menos que alguém falar mal dele, imputar-lhe acusações, ainda que falsas.
     Esse seu jeito estranho de ser deixa muita gente estarrecida e por que não dizer também assustada. E não adianta você chegar e alertá-lo de que ele está sendo vítima de alguma fofoca ou maledicência: ele reage calmamente e até com uma certa alegria que deixa qualquer um desconsertado:
- Você não vai fazer nada?
- Não.
- Como não? Eles estão falando...
- Deixa que falem. Eu não importo. Até acho bom.
- Você deve ser louco. Só pode ser louco. Todo mundo metendo o malho e você...
Creio que você já deve ter percebido que o diálogo não prossegue. E eu digo porque: ninguém consegue aceitar aquela calma toda e acaba saindo porta à fora cheio de indignação enquanto Carlos fica sorrindo satisfeito.
     Eu já cheguei a pensar que ele faz isso por charme, que no fundo deve sentir vontade danada de desancar aqueles que não perdem oportunidade de botar seu nome na roda; ora dizendo que ele é preguiçoso, covarde, que bate em mulher; outras que é mal pagador, que deve a todo mundo, um conversa fiada, cachaceiro, mentiroso, salafrário, filho da p., que não perdoa ninguém, que não tem Deus no coração. Até de veado já foi chamado e nada.  Nem sombra de sequer uma cara de aborrecido.  Segue adiante sem nem olhar para o acusador. O máximo que já vi foi ele dizer:
- Se tá dizendo isso, então, prova. Quero ver. - fala assim, meio entre dentes, sem se preocupar se está sendo ouvido ou esperar pela resposta.
     Não me incluo entre os difamadores do Carlos, mas, confesso, sempre tive um pé atrás com ele. Afinal, é muita gente falando mal, fazendo acusações. Não vai me dizer que você também não ficaria meio assim, sei lá, desconfiado? Não dizem que a voz do povo... Pois é. Vai daí que...
    Porém, um dia aconteceu algo que me deixou intrigado. Foi quando surgiu o boato de que Carlos tinha se transformado num herói. É isso mesmo. Não se falava em outra coisa. Todos faziam questão de descrever o ato heróico de Carlos: estavam todos num piquenique na praia quando o filho da Laurinha começou a se afogar. Ninguém se mexeu. Todos pasmos olhando o menino se debater na água, pronto para sumir e não mais aparecer. Foi quando Carlos levantou de sua cadeira e se atirou na água trazendo, em seguida, o afogado nos braços. Estendeu o garoto na areia, fez os procedimentos necessários e logo ele dava sinais de vida. Carlos salvou o filho da Laurinha.
     A partir daí todos passaram a tratá-lo como herói, com pompas e reverências. Nada mais lembrava aquele Carlos de antes. Agora ele era bem-vindo em todas as rodas, festas e comemorações. Advinha qual foi sua reação diante do clamor geral? Indignação pura. Basta alguém tocar no assunto para ele ficar fora de si de raiva, vociferando impropérios como se fosse um louco. Ele que se sentia tão calmo e tranquilo quando sofria acusações, agora que é alçado a categoria de herói tem essa reação absurda. Dá para entender? Difícil, não é? Pois pode acreditar: o Carlos prefere que falem mal dele do que falem bem. Não aguentando de estupefação, perguntei a ele:
- Por que essa reação, Carlos? Afinal você salvou o garoto ou não?
- Salvar, salvar não sei. Sei que tirei o garoto da água antes que ele morresse. Se isso é... Quer saber de uma coisa? Essa gente tem mania de falar coisas. Agora tão com essa história de herói, se eu acreditar nisso vou ter que acreditar em todas as outras coisas que falaram de mim esses anos todos. Já pensou se acredito nessa papagaiada toda e começo a me sentir o herói e coisa e tal. Nem pensar. É melhor que falam mal de mim.
    E lá vai ele sem me dar tempo de, pelo menos, argumentar.

outubro 01, 2011

Antes que a casa caia.


    Parece que é um hábito corriqueiro deixar que as coisas estraguem, deteriorem para só então depois dar um jeito de tentar recuperá-las. Podemos ver isso facilmente dando umas voltas pela cidade do Rio de Janeiro. Pelo caminho, qualquer um que você tomar, você pode ver muita beleza, prédios de arquitetura deslumbrantes, monumentos históricos, mas também pode ver muita coisa deteriorada, estragada mesmo. Chega a dar pena ver prédios cheios de história para contar caindo aos pedaços. Na região do centro próxima à praça Tiradentes, rua Gomes Freire, rua dos Inválidos então, chega a dar medo. Além do mais, a população (nós) ainda corre o risco com os desabamentos constantes, incêndios, etc.
     É possível que você esteja pensando: "mas são só os prédios públicos que agonizam e morrem na nossa frente". Isso é verdade. Tem muita propriedade particular nesse meio também. Só que, cabe ao poder público cuidar para que os proprietários particulares cuidem bem dos seus imóveis através de uma fiscalização mais rigorosa, não é mesmo? No caso do prédios públicos, vira e mexe a gente fica sabendo que um ou outro será recuperado. Isso significa sempre o gasto de cifras altíssimas. Dinheiro que não se sabe se é mesmo necessário ou usado, mas que é anunciado, creio até que com algum orgulho. Como se fosse bom gastar muito, se isso fosse sinônimo de importância, trabalho bem realizado, presteza do poder público e mais não sei o quê.
    Não foi só a notícia de que algumas casas que estão quase indo abaixo próximo aonde eu moro serão recuperadas (as casas no sopé do Outeiro da Glória) que me levou a escrever esse post. Mais do que isso, foi o fato de que na vida costumamos agir de maneira parecida: primeiro engordamos além da conta para depois fazer um grande regime (a moda agora é cirurgia); deixamos nossos relacionamentos deteriorar para depois sair em campo para tentar recuperar a pessoa amada; o mesmo se pode dizer do nosso corpo, aquela barriguinha que cresce com o nosso consentimento e que depois lutamos para perder; ficamos sedentários para mais tarde lembrarmos (ou sermos lembrados) de que devemos nos mexer; nossas rugas, nossos dentes, enfim tudo aquilo que podemos prevenir e que, quase sempre, deixamos de lado, como se não pudéssemos fazer nada, se não dependesse de nós.
     Pelo contrário, depende sim. Aliás, para ser exato, depende somente de nós, de ninguém mais.  Podemos e devemos agir antes que "a casa caia", antes que seja tarde demais, antes que as pessoas comecem a olhar horrorizadas para nós, como se fossemos "monumentos" em vias de desabamento. Antes que precisemos fazer malabarismos para aparentar menos idade, menos peso, menos ignorância.
   Já pensou nisso? Então vamos agir enquanto é tempo. Os outros monumentos e prédios (desculpe a comparação) podem até depender do poder público para não virem abaixo ou deteriorarem, mas nós não. Cabe a cada um de nós cuidar de si (física e intelectualmente), manter-se bem, cuidar-se dia a dia, para não ser surpreendido de uma hora para outra. Cuide-se! A hora é agora.

setembro 30, 2011

Felicidade existe?

     Quando faziam essa pergunta para Elaine, ela fatalmente respondia que não. E não era um não baixinho, envergonhado ou indeciso. Era um não para acabar com qualquer dúvida possível. Essa pergunta era comumente feita a ela porque, visto de fora, ela parecia ter o que podemos chamar de uma vida perfeita: era bonita, bem casada, um casal de filhos, uma boa casa; ela e o marido eram formados ela, professora, ele, engenheiro. Os dois eram muito queridos dos familiares e amigos, chegavam a exercer uma certa liderança sobre todos e eram vistos como exemplos de pessoas bem sucedidas, casal apaixonado, filhos bem educados, enfim, uma vida que muitos pediram a Deus.
     O ceticismo de Elaine assustava um pouco. Era difícil acreditar que uma pessoa de certa forma abençoada por Deus, tivesse aquele tipo de visão da vida. Para ela tudo o que tinha conseguido na vida foi por seus méritos e esforços. Aquilo que todos chamavam de sorte, felicidade ela via apenas como resultado do seu trabalho. Segundo ela, tudo em sua vida tinha sido planejado. Desde criança ela planejou ser professora de português, disciplina em que sempre se considerou péssima, por isso decidiu estudar para aprender e acabou tornando-se doutora na língua. Doutorado para não ser uma professora qualquer, mas alguém com grande conhecimento. Elaine escreve livros sobre a língua portuguesa e é muito conhecida. 
    No casamento não foi diferente. A primeira vez que viu Paulo, ela decidiu que ele seria seu marido. Viu nele as características do homem com o qual queria casar e criar os seus filhos. Paulo nem a notava, envolvido com outras garotas, mas ela foi em frente e não demorou muito e eles estavam casados. Os filhos também foram planejados: um menino e uma menina. Nasceram Paulinho e Flávia.
     A casa com piscina, churrasqueira e tudo que uma família de classe média pode sonhar, o carro (na verdade, "os"), as viagens para o exterior, o doutorado para ela nada aconteceu por acaso. Pelo menos, ela pensava assim. Ela não acreditava em acaso, acreditava em planejamento, trabalho, dedicação. Era o que se pode chamar de uma pessoa pragmática.  De vez em quando ela gostava de lembrar o passado. Recordava a casa dos pais muito pobres, os seis irmãos... Ela foi a única a estudar. Estudou em colégios públicos, com esforço entrou na universidade. Chamava atenção para esse nosso contra senso: os alunos das escolas públicas geralmente não conseguem entrar para as universidades do governo, mas ele conseguiu. E da primeira vez.
    A vida de Elaine ia como ela desejava e planejava até que o destino lhe pregou uma peça. Algo que ela não planejou aconteceu. Numa tarde de sábado o telefone tocou e do outro lado uma voz:
- A senhora é dona Elaine?
- Sim. - respondeu ela, distraidamente.
- É que aconteceu uma coisa... Seu filho Paulo, ele foi assaltado.
- O que? Onde está meu filho? Quem está falando? Deixa  eu falar como meu filho. Passa o telefone para ele. - disse ela, com a autoridade de sempre.
- Eu sinto muito, dona Elaine. Seu filho está morto.
Naquele momento, Elaine sentiu seu mundo desabar. Aquilo não poderia ser verdade. Afinal, ela planejara um futuro brilhante para o filho. Ele ainda tinha que se formar, casar, ter filhos, ganhar muito dinheiro, ser um homem bem sucedido. Não poderia morrer assim de uma hora para outra mal começando a vida, sem mais nem menos.
     Porém, não teve outro jeito: Elaine, juntamente com o marido, Paulo, e a filha, Flávia tiveram que enfrentar a realidade: um bandido fortemente armado roubou o carro de Paulinho e, não satisfeito, atirou contra ele, covardemente, à queima roupa. Segundo as testemunhas, o bandido já estava de posse do carro quando efetuou os disparos contra Paulinho, que não ofereceu nenhum tipo de resistência. Parecia agir movido por raiva, ódio; Não como quem quisesse somente roubar um carro.
     A vida de Elaine e sua família sofreu uma forte transformação. Aquela mulher determinada, com um olhar sempre à frente, deu lugar a uma mulher triste e saudosa do tempo em que vivia feliz com os filhos e o marido. Como forma de extravasar sua dor, Elaine participou de passeatas, protestos, jurou que lutaria até o fim para que o assassino de seu filho passasse o resto de seus dias na prisão. O ódio e o ressentimento tomaram conta de sua vida. Elaine passou a viver para vingar a morte de seu filho. Abandonou o trabalho e a família. Quando deu por si o seu casamento já tinha acabado, sua filha tinha saído de casa e os amigos, antes tão próximos, tinham desaparecido. Elaine estava sozinha.
     Na sua solidão ela descobriu que a felicidade realmente existia e ela tinha sido muito feliz quando seu filho estava vivo e todos viviam confiantes e harmoniosamente. Agora sabia que aquilo que ela achava que era apenas fruto de seu planejamento era na verdade felicidade em estado puro. Agora tudo aquilo tinha acabado. Elaine lamentava não ter aproveitado mais aqueles momentos e quanto mais pensava nisso, mais ódio sentia do assassino do filho.
    Um dia Elaine teve uma ideia um tanto absurda. Resolveu ir até o presidio onde estava o assassino de seu filho. Queria olhar frente à frente para ele, interrogá-lo, saber por que ele destruíra a vida de seu filho e a sua própria. Teve dificuldade para conseguir seu intento, pois todos achavam aquilo fora de propósito. Não tinha cabimento ela fazer aquilo. Determinada, ela acabou conseguindo. Chegou o dia, e lá foi ela. Quando bateu os olhos no rapaz, ela não pode acreditar: ele era tão jovem quanto seu filho e por um momento ela chegou a pensar que estava reencontrando o seu Paulinho. Todo o seu ódio veio por terra. Ela que planejava partir para cima dele, dizer aquilo que estava preso em sua garante desde o assassinato do filho sentiu vontade, não de maltratá-lo, mas de dar-lhe um abraço apertado e chamá-lo de filho.
     Sem dizer nenhuma palavra Elaine saiu porta à fora. No caminho de volta para casa, sentia-se mais leve. Chegou em casa e, depois de muito tempo, dormiu um sono reparador. Durante o sono teve um sonho com o filho. No sonho ele estava abraçado com o seu assassino. Sorrindo, o filho lhe pedia que perdoasse aquele rapaz e acrescentava:
- Tudo faz parte de um plano infinitamente maior.
Quando acordou, Elaine tomou uma decisão que chocaria a todos: voltou ao presidio, teve uma longa conversa com o rapaz, coincidentemente também Paulinho, onde se inteirou de toda a vida rapaz: ele tinha vinte e dois anos, a mesma idade que seu filho teria, vivia com uma garota e tinha  uma filha. A partir daquele dia, Elaine os tomou como sua família. Aquele rapaz. antes o assassino cruel de seu filho, agora tomava o seu lugar.  Assim ela retomou sua vida e quando perguntada já consegue responder:
 - Sim, felicidade existe.